Não Matem a Esperança - Capítulo IV
A cabeça inclinava-se para a frente, imóvel, sem o mínimo trejeito, o que tornava a sua corcunda mais pronunciada. Os olhos grandes, circundados por lívidas olheiras, eram dois candeeiros volantes que se destacavam débilmente daquele conjunto alvacento que as longas barbas formavam com a sua devastada cã. A cobrir-lhe a camisa, sujíssima, um casaco coçado, cheio de nódoas, bolsos rotos, um dos quais continha um pedaço de pão recesso, que a macienta mão daquele velho defendia ciosamente. As calças fendidas, nos joelhos, mostravam a magreza das suas pernas, que facultava a antevisão dum corpo sóbrio de carnes e abastado de ossos. Completavam a sua paradoxal indumentária uns sapatorros gastos e esburacados.
Fora assim: à luz duma noite, aquela estátua de homem moldada pelas mãos da vida, zurzida pelas surpresas do mundo. E, agora, voltava a vê-lo. Aproximava-se. Os seus passos eram concisos. Sentiu desejo de ir ao seu encontro, abraçá-lo e dizer-lhe: «Aqui me tens! Diz se precisas de mim!». Aquele velho, indiferente, passou, desprendido, absorto, como se no mundo só houvesse ele, atento ao lajedo do passeio que os seus pés calcorriavam apressados. Segui-o. Viu-o agachar-se e agarrar uma perisca. Correu para ele e ofereceu-lhe cigarros.
- Tome; Fume daqui!
- Pedi-lhe alguma coisa?
- Não, mas...
- A mim nunca ninguém me deu nada! Não é agora que vou aceitar! Não preciso de nada!
Estático, meio atarantado, deixou-o desaparecer, curvado, investigando o chão.
Não Matem a Esperança - Capítulo V
Chegou lá cima cansado e o suor a escorrer-lhe do corpo. A garganta ardia, a cabeça latejava como marteladas compassadas de martelo-pilão. Com cospe e o lenço limpou reticenciados de sangue que, ao longo da subida, as silvas tinham escrito nas partes dos pés que as sandálias não protegiam e a que algumas moscas se entregavam já inebriadas. Arrancou meia dúzia de giestas e sentou-se. Reclinou-se lentamente até se estender todo. Deixou-se estar. Olhou o céu: cinzento, dum cinzento negral, a acariciar os cerros dos montes. À sua direita, o sol sorri-lhe por entre as folhas. O ar do restolho, pinheiros e eucaliptos, alegra-o. Sôfrego, aspira-o bem para dentro, como a querer levá-lo ao fundo de si mesmo. Estorninhos esvoaçavam, uma toutinegra canta, escondida na copa de alguma árvore. As moscas nem aqui o largavam, mas quanto mais conhecia os homens mais adorava as moscas.
Lá no fundo, o rio, num S tipográfico, corre preguiçoso e envergonhado e quase seco. No outro dia andou lá com a malta e nem sequer se molharam. «Ingrato! No Verão não nos tiras o calor, mas no Inverno, se te der na real gana, até as casas nos levas!» - Isto diria aquele campónio, em frente, dobrado para a terra.
Encaixilhados pelos troncos, enormes manchas de vinhedos cobrem de verde montes ondulantes, ora espigando-se para o alto, ora descendo suavemente. Os socalcos, sustidos por paralelas paredes, lembram mastabas egípcias. Aqui e ali, como títeres impassíveis perante tamanha grandeza, casas de fachadas insensíveis, algumas com vestustos brasões a lembrar aos ignorantes que ali viveu gente da grande e à janela das quais alguma jovem enclaustrada sonha coisas lindas, suspira de amor pelo moço da lavoura; outras, insignificantes, à porta das quais alguma criança esfomeada suspira pão; postes com formas de foguetões levam a electricidade às casas dos que a podem ter.
Um ruído característico intromete-se-lhe. Vira-se. Lá vai ele: ronceiro, arrastando-se penosamente na subida de trilhos de linha reduzida. Apita forte, não vá algum distraído oferecer a vida a uma porcaria daquelas. Dobrou no fundo da recta-subida. E aquele pouca-terra-pouca-terra perde-se na distância.
Começa a escurecer. Muda de lugar. Um coelho salta-lhe aos pés. Vai para as rochas. É aqui, diz o povo, que aparece o Titonga. Sim, o Titonga morreu numa luta à navalhada com o Bragão que cumpre agora os vinte e cinco anos de cadeia. «Que luta rapazes! Ah! Caramba! Pareciam dois lobisomens! Até bufavam, pá! Porra! Aquilo metia impressão!». Sim, o povo diz que foi assim. E porquê? Ora... Porquê? «Uns copázios a mais e aí está a desgraça de um home... A cabeça começa a andar à roda, palavra puxa palavra, a família (que não devia ser chamada para nada) é ofendida e pronto...». O Titonga é que morreu. Calhou ser ele. Bem, «ele tamém era umfraca-chiças...». E, agora, a «alma penadinha» do Titonga anda por cá. Por volta das duas da manhã é que ele aparece nestas fragas. Houve já quem lhe falasse. Os guardadores de vinhas que vêm até aqui passar pelo sono, já todos o ouviram dizer: «Olhai rapazes, aquele que me matou está agora a sofrer enquanto eu sou feliz». Houve um daqueles, o Fernando Verde, que lhe chegou a responder: «Deixa-te lá estar muito tempo sem mim nessa tal felicidade. Eu prefiro esta de cá. E o Fernando Verde criou fama na aldeia e arredores.
O sol vai finando. No ocaso, apenas uma mancha semi-circular dum alaranjado castanho. A terra está em sombra. É a hora dos velhos do asilo virem para o seu passeio desentorpecer os músculos já no fim. Escuta-se mais distintamente, perdida no éter, a algaraviada das crianças. A tigela do caldo com migalhas de pão tornou-as alegres e satisfeitas, mas, logo, ao deitar, adormecerão com a fome a roer-lhes as entranhas. As avé-marias soam no campanário da Igreja, uma Igreja muito antiga e muito velha, amparada por escoras de pinho. No alto, pequenos novelos roxos de nuvens, aquelas nuvens que chegam com a noite para poderem galopar à vontade.
Põe-se de pé nas rochas. Abarca num relance tudo o que se lhe apresenta. Com avidez, absorve o ar já frio, e aí vai ele, coração contente, sorrir às crianças da sua aldeia.
- Continua.
- Continua.
- NÃO MATEM A ESPERANÇA - Capítulo I
- NÃO MATEM A ESPERANÇA - Capítulo II
- NÃO MATEM A ESPERANÇA - Capítulo III