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terça-feira, 11 de setembro de 2012

O Sal, o Peixe e o Vinho

*M. Nogueira Borges

Chegavam, de manhã cedo, a apregoar, “Sardinha fresca!... É de Ovar!...”

- De Ovar?... – perguntava-me intrigado.

- Então a sardinha não chega do Porto?... – continuava eu na minha estranheza.

Vinham em barricas, sem cabeça e sem vísceras, dispostas simetricamente, acamadinhas entre sal. Comiam-se, assadas nas brasas da lareira ou fritas na sertã, com batatas cozidas e nacos de broa, regadas com azeite poupado que, antigamente, as pessoas não besuntavam os queixos e uma almotolia tinha que dar para muitas e muitas refeições. Havia, até, quem as comesse cruas acompanhadas com uma cebola cortadinha aos bocados e enfeitadas com sal. Quando ia à Régua, lá estavam elas, bem à mostra, ali para a beira-rio, na Rua das Vareiras (há quem lhe chame Custódio José Vieira), a serem regateados com o dinheiro escondido num nó do lenço.

Lembrei-me desta memória ao ler, recentemente, um opúsculo do nosso escritor Camilo de Araújo Correia, intitulado NA ROTA DO SAL, escrito para a primeira sessão oficial do processo de geminação das cidades do Peso da Régua e de Ovar, ocorrida nos Paços do Concelho desta cidade, em 25 de Julho de 1991.

Nestas histórias de geminações são sempre mais abundantes as tradições orais do que a documentação de arquivo (dispersa e muitas vezes omissa) a justificarem, ancestralmente, a irmandade hodierna.

Camilo de Araújo Correia perguntou, procurou, e fez contas: “Há cerca de duzentos anos que a Régua e Ovar andam de mãos dadas pois se admite como cerca a fixação das primeiras colónias vareiras na Régua, logo a seguir à construção dos armazéns da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, em 1790”.

A partir de então o futuro parece ter nascido com o plantio da vinha e o disciplinar do comércio vinícola. À nossa terra, afluíram gentes de muitos lugares, em demanda da melhoria económica, como se um eldorado de prosperidade resplandecesse na margem direita do Rio defendia pelos contrafortes do Peso com as suas casas senhoriais. Vieram muitos, mas, principalmente, vareiros e galegos que saibraram montes abandonados aquando da filoxera, plantaram americano, abriram lojas e tabernas, e transformaram a Régua num grande BALCÃO onde se fizeram e desfizeram fortunas pesando os comestíveis e medindo o tinto.

Os vareiros abandonaram as terras da beira-mar, trazendo, rio acima ou pelas estradas do Porto, o peixe e o sal que não tínhamos. Chegaram para governar a vida e não lhes recusaremos a façanha da aventura. Eram solidários, não se invejando nas vestimentas ou nos sorrisos de satisfação pelos negócios bem conseguimos. A montes e vales (mais a montes do que a vales), as quintas e casebres, as aldeias próximas ou remotas, levaram o sal ou a sardinha, à cabeça ou aos ombros, em carros de bois ruminando distâncias ou em jumentos resvalando nos pedregulhos. Alimentaram pobres e ricos quando a carne era luxo e as jornas mal davam para a sonhar. Misturaram o sangue com os autóctones e com os de além-Minho, criaram filhos e netos nesta fogueira de Verão quando acaba a Primavera e neste Inverno de gelo quando os vinhedos amarelecem e por cá andam nos nomes e nas caras com quem nos cruzamos no dia-a-dia.

Nesta hora de Festa, de amor e devoção à nossa Padroeira, é acto religioso lembrarmo-nos de quem nos ajudou a (re) criar o chão, a fermentar o sangue e a moldar as consciências.

Sem pretender adornar ou moralizar a saga duriense, lembremos, aos de hoje, os de ontem, e recordemos que o IMORTAL Escritor do Douro  - João de Araújo Correia - foi o único que soube retratar e elevar à verdadeira dimensão do seu esforço a gesta heróica deste povo: os de cá e os de fora que aqui se criaram e morreram libertando as almas por estes MONTES PINTADOS.

Quem desejar a abundância dos pormenores históricos que lhe leia O SEM MÉTODO e PALAVRAS FORA DA BOCA. Lá estão os vareiros e os galegos (lá estamos nós todos) na genuinidade rácica e na miscigenação sem adulterações.

- M. Nogueira Borges, Abril 1993, in Boletim da Festas de Nossa Senhora do Socorro.


 *Manuel Coutinho Nogueira Borges  é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
  • Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue.
Clique nas imagens para ampliar. Texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

VIDAS

As vidas irremediáveis
Não se conhecem.
São inviáveis,
Logo, não acontecem.
Não têm história,
Nem memória.
Banalidades das horas
E fastio da indiferença,
Não merecem demoras,
Nem um voto de esperança.

Há tantas vidas sem solução
A que ninguém deita uma mão.
Distantes,
Negligentes,
Morrem sós
Na hipocrisia do dó,
No egoísmo do eu,
Do tudo meu.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustrativa acima é recolhida da internet livre. Clique na imagem para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou: Não Matem A Esperança. (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da FonteManuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

LEMBRANÇA DE NATAL

Fixo-me nesta pedra tumular, branca-escura de quantos lustres, ervas à espreita misturadas com cera derretida e flores campestres caídas de uma jarra. Debruço-me no gradeado que delimita o jazigo e penso: “A minha geração paternal está toda aqui, com o meu Pai à frente, há mais tempo do que eu tenho de vida. Estão no silêncio da eternidade, indefesos, noites e dias sem uma Avé-Maria, sequer um ciciar dos que não esquecem. Uns, partiram, ainda jovens, sem a oportunidade de um arrependimento, um adeus; outros, velhos, cansados de tanto esperarem. O meu Pai foi sem ouvir o meu primeiro vagido (imaginou-me apenas), derrotado pela doença maldita a que chamam prolongada. Morreu sem me beijar, fazer uma festa na moleirinha, pegar-me ao colo, imaginar parecenças, mudar-me uma fralda, alvitrar um nome baptismal, embalar um sono, viver a maior seriedade amorosa da existência.

O que faz, afinal, a ilusão da vida? O que a dimensiona na escassez ou na lonjura dos anos? É a substância da dádiva e do amor, mesmo na brevidade biológica, ou o vazio desafectado no prolongamento biográfico? A vida nem ao menos tem lógica. Há quem morra sem uma ruga, com o sol e o pranto a adornar a despedida; há quem parta encolhido por remorsos velhos sem uma réstia de deixar saudades.

Morreu-me antes do tempo, sem tempo para lhe pedir um conselho, uns tostões para rebuçados ou para uma bola de futebol, para divergirmos quando não estivéssemos de acordo, para nos amarmos, sempre, até o sangue secar.

Aqui estou, só, com um sol fraquinho encoberto pelas nuvens de Dezembro a lembrar o Natal. Um Natal que nunca partilhei com ele e já nada me diz porque o transformaram numa hipocrisia, numa feira de vaidades, num símbolo pagão, materialista, sem solidariedade e sem virtude. Resta-nos as cruzes dos Cristos vivos e mortos, exemplos e memórias contra o ódio e a inveja que nos consomem. Um dia aqui estarei desde o nascimento sem ti até à morte contigo “. 

Um vento agreste varre o alto da Corredoura. O sussurro da folhagem dos eucaliptos acentua o abandono do palacete envelhecido onde brinquei em criança, diante do qual encolho um grito inominável e pergunto por que vendem os homens as histórias das suas vidas? Lá ao fundo, para os lados de Rio Bom, há uma paisagem amarelecida, desamparada, com os fumos das chaminés a acentuar o deserto dos caminhos. O Douro, esse, não morre, continua a correr, leva nostalgias, sonhos e destroços. Há muitos Meninos Jesus na encosta-presépio de Loureiro, mas eu nunca tive um Pai Natal Vivo.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".

Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Manuel Coutinho Nogueira Borges faleceu em 27 de Junho de 2012. A imagem ilustrativa acima é recolhida da net livre. Actualização em Dezembro de 2013.

quinta-feira, 31 de março de 2011

APRESENTAÇÃO DO LIVRO LAGAR DA MEMÓRIA DE M. NOGUEIRA BORGES

APRESENTAÇÃO DO LIVRO LAGAR DA MEMORIA DE M Nogueira Borges

APRESENTAÇÃO DO LIVRO LAGAR DA MEMÓRIA DE M. NOGUEIRA BORGES
FEITA POR ARMANDO FIGUEIREDO EM 12/03/2011 NA CASA-MUSEU TEIXEIRA LOPES
Vila Nova de Gaia
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
Informações para aquisição aqui !

quinta-feira, 3 de março de 2011

LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges


As páginas que se seguem são recolhas de alguns anos de vida guardadas no Lagar da (minha) Memória. Nasceram, como as uvas da PÁTRIA DURIENSE, de cepas de várias castas, idades e lugares. Umas têm o benefício da Região Demarcada, outras, os transcursos citadinos e africanos. Nenhuma delas rejeito: nem a doçura amadurecida, nem o amargo fora de época. (in “Apresentação”).

É a vida do Douro, as vidas à volta das vinhas e dos campos, dos fraguedos e dos socalcos, um cheiro a lagar ubérrimo e escravizante que salpicam o leitor ainda fiel às águas de uma pátria sempre rude para aqueles que não a foram abandonando. Tal como o autor.

 LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges
CONVITE

A Mosaico de Palavras Editora tem a honra de convidar V. Exª e Família a assistir à apresentação da obra LAGAR DA MEMÓRIA, de M. NOGUEIRA BORGES, que irá decorrer no próximo dia 12 de Março (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Apresenta a obra o Dr. Armando Figueiredo.
(Clique nas imagens para ampliar)
Alguns trechos do "Lagar da Memória" transcritos no Escritos do Douro.


Pedidos/compra poderão ser feitos desde já diretamente à editora MOSAICO DE PALAVRAS, via net (http://mosaico-de-palavras.pt/product.php?id_product=101) ou através de Elvira Santos - geral@mosaicodepalavras.com com pagamento por transferência bancaria, ou ainda por meio de envio à cobrança.
Preço - 15,00€.
MOSAICO DE PALAVRAS EDITORA, LDA
RUA COMENDADOR ANTÓNIO AUGUSTO SILVA, 127 - R/C, 4435-191 RIO TINTO -PORTUGAL.
Telefone fixo - 224801761; Telefone móvel – 963678534

sexta-feira, 11 de março de 2011

LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges - CONVITE para 12 de Março

As páginas que se seguem são recolhas de alguns anos de vida guardadas no Lagar da (minha) Memória. Nasceram, como as uvas da PÁTRIA DURIENSE, de cepas de várias castas, idades e lugares. Umas têm o benefício da Região Demarcada, outras, os transcursos citadinos e africanos. Nenhuma delas rejeito: nem a doçura amadurecida, nem o amargo fora de época. (in “Apresentação”).

É a vida do Douro, as vidas à volta das vinhas e dos campos, dos fraguedos e dos socalcos, um cheiro a lagar ubérrimo e escravizante que salpicam o leitor ainda fiel às águas de uma pátria sempre rude para aqueles que não a foram abandonando. Tal como o autor.

 LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges
CONVITE

A Mosaico de Palavras Editora tem a honra de convidar V. Exª e Família a assistir à apresentação da obra LAGAR DA MEMÓRIA, de M. NOGUEIRA BORGES, que irá decorrer no próximo dia 12 de Março (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Apresenta a obra o Dr. Armando Figueiredo.
(Clique nas imagens para ampliar)
Alguns trechos do "Lagar da Memória" transcritos no Escritos do Douro.


Pedidos/compra poderão ser feitos desde já diretamente à editora MOSAICO DE PALAVRAS, via net (http://mosaico-de-palavras.pt/product.php?id_product=101) ou através de Elvira Santos - geral@mosaicodepalavras.com com pagamento por transferência bancaria, ou ainda por meio de envio à cobrança.
Preço - 15,00€.
MOSAICO DE PALAVRAS EDITORA, LDA
RUA COMENDADOR ANTÓNIO AUGUSTO SILVA, 127 - R/C, 4435-191 RIO TINTO -PORTUGAL.
Telefone fixo - 224801761; Telefone móvel – 963678534

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Lagar da Memória na Feira do Livro de Stª Marta de Penaguião

CONVITE para 24 de Julho, pelas 21 h em Santª Marta de Penaguião.
Alguns trechos do "Lagar da Memória" de M. Nogueira Borges.
"Lagar da Memória" na Editora "Mosaico das Palavras".
::  --  ::
Biografia
Nascido em São João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, uma das “fronteiras” que une os socalcos durienses às fragas transmontanas, M. Nogueira Borges estudou em Lamego e no Porto, Mais tarde, já em Coimbra, matriculado na Faculdade de Direito, conheceu as praxes e as serenatas, a tradição lendária das “repúblicas” e as trovas de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira. Ligou-se à Gazeta de Coimbra e, esporadicamente, à revista Capa e Batina.
Mobilizado para a guerra colonial, e colocado em Moçambique pelo lápis amanuense, colaborou na Voz da Zambézia, Notícias da Beira, Revista Nova e Diário de Moçambique.
Regressado de África, tornou-se trabalhador bancário. Logo, publica, em edição de autor, Não Matem a Esperança, obra de fidelidade às origens, fidelidade que prosseguiu nas páginas dos semanários Miradouro, Voz de Trás-os-Montes, Arrais e Notícias do Douro.
Foi co-autor das obras Imagens da Nossa Memória e A Arte Pela Escrita Três, editadas pela Mosaico de Palavras Editora.


Sinopse
“As páginas que se seguem são recolhas de alguns anos de vida guardadas no Lagar da (minha) Memória. Nasceram, como as uvas da PÁTRIA DURIENSE, de cepas de várias castas, idades e lugares. Umas têm o benefício da Região Demarcada, outras, os transcursos citadinos e africanos. Nenhuma delas rejeito: nem a doçura amadurecida, nem o amargo fora de época” (M. Nogueira Borges, in “Apresentação”).
É a vida do Douro, as vidas à volta das vinhas e dos campos, dos fraguedos e dos socalcos, um cheiro a lagar ubérrimo e redentor que salpicam o leitor ainda fiel às águas de uma pátria sempre rude para aqueles que não a foram abandonando. Tal como o autor.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Em conversa com Nogueira Borges... REVOLTA!

Fosse mais novo e sem responsabilidades familiares, quem emigrava era eu. Não para um outro país desta Europa desigual e dependente de soberbas geográficas e políticas, dos cafés e dos bares – como diz George Steiner - , mas para a África onde a pobreza tem sol, e alimento no mato, e água nos rios, e serenidade nas madrugadas das buganvíleas, e espelho no mar azul dos corais, e silêncio nas sombras dos palmares, e emoção num embondeiro perdido na imensidão da savana, e amor na contemplação das estrelas nas noites de arrebatamento.

Fugir desta Europa falida, levada à desgraça por homens e mulheres que atraiçoaram o voto da democracia, servindo-se da crença popular para se encharcarem no enriquecimento, cozinheiros de ementas para os banquetes sequazes; dirigentes de branqueamento intelectual e sem estofo e sem exemplo, mentirosos no limite do desaforo, a pensarem só neles e nos mais chegados, sem letra e sem lei, nomes e caras que só de lembrar ou ver nos revoltam as entranhas. Chegamos à miséria total, a da bolsa e a da alma, onde tudo o que é canalha triunfa, ao ponto em que só nos destinam a tristeza e a solidão, em que temos que aceitar tudo, mesmo o inaudito!

Criou-se a pior violência social: a silenciosa! Um povo infeliz, em que, como dizia o poeta, nos roubaram Deus e a humanidade! Uma Nação de duas classes: os desgraçados e os ricos cada vez mais frios, descarados e milionários.

Em África escolheria o mato das machambas e das palhotas, cultivaria a cana e o caju, escutaria os ecos dos meus gritos nas ”terras do fim do mundo”, andaria descalço nas picadas vermelhas, usaria uma catana só para abrir o coco que matasse a sede, rir-me-ia dos entretidos que dizem que o voto é a arma do povo, revoltar-me-ia contra os que sabem usar gravata e jogam ao poker eleitoral. Longe deles não seria tentado a fazer o que pede o coração.

Pôr-me a milhas deste continente, que criou uma civilização e se deixou afundar por calaceiros e falsos; corruptos sem classificação, que, em nome da Democracia, desempregam trabalhadores aos milhões, arruínam as finanças das pátrias, desviam réditos incontáveis para as latrinas do capitalismo, enquanto apregoam ideais igualitários e se afirmam defensores das doutrinas repartidoras.

Na África recôndita, sem cheiros de perfumes das alcofas de alperce, de tiques dos entendidos serventuários do sistema, dos que jogam e se vendem nos casinos do euro, afastado de toda a súcia desta desacreditada democracia, viveria feliz mesmo com o chirriar da coruja ou o uivo das hienas; é que a verdade é suportável, o fingimento sofrido.

Assim, não tenho outro modo senão partilhar o sofrimento…
- M. Nogueira Borges, 11 de Abril de 2012
Clique  na imagem para ampliar. Imagem original não editada recolhida da net livre. Edição de J. L. Gabão para os blogues "Escritos do Douro" e "ForEver PEMBA" em Julho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.

sábado, 30 de junho de 2012

Em conversa com Nogueira Borges...

"... palavras sobre o homem amigo e o escritor nascido em S. João de Lobrigos, terra simples e de vinhos, para que sua grandeza humanista continue a brilhar no Douro. Uma vez me disse com um espanto infantil: "CARAMBA!!! ISTO É MESMO LINDO!!!!!!...

Hoje, ao anoitecer, fiz estas fotos a ele dedicadas, enquadradas no Céu do Douro lembrando-me que só pode está lá em cima a dizer-me: "CARAMBA!!! ISTO É MESMO LINDO!!!!!!"
- Jasa, Peso da Régua, 29 de Junho de 2012
A MINHA CIDADE
A minha cidade
Tem o visco da saudade
E o nevoeiro do futuro.
A minha cidade
Tem a tristeza do escuro,
Mas, sobretudo,
O brilho da verdade.
- M. Nogueira Borges in "O Lagar da Memória" -

O tempo que passa não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que passou.
- Vergílio Ferreira

Clique  nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Junho de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo contém colaboração de José Alfredo Almeida e pertence ao blogue Escritos do DouroÉ proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Uma crónica intemporal - Era em Agosto…

*M. Nogueira Borges
Era em Agosto com as águas deslizando para as hortas, os vinhedos repletos de verde e de doçura, os homens de coletes a tiracolo e sacholas pelos ombros, as mulheres mastigando broa e encolhendo ciúmes, as crianças a jogarem às escondidinhas no adro da capela e nas curvas dos quelhos, os cães e os gatos a barafustarem nos terreiros do casario perseguindo galinhas e garnizés, o bêbedo de sempre arrancado à taberna pelo filho desgostoso ou pela mulher já habituada.

A tarde acabava assim, com o sol a morrer devagarinho por detrás das montanhas, uma fresca macia alegrando as almas, os velhinhos do Asilo a derreterem minutos para a ceia e o médico a abandonar a Casa do Povo.

A menina senta-se ao piano e os seus dedos brancos deslizavam suavemente pelo teclado.

As Rosas da Despida desfolhavam-se em emoções e os sons espalhavam-se pelos corredores e escapuliam-se, serenamente, pelas janelas abertas, flutuando no silêncio da noite como fantasias de crianças. Ecoavam além, nos contrafortes dos montes ou no fundo do vale a quem os antigos chamavam poço do vinho.
Era Agosto e as festas do Socorro anunciavam-se. As ornamentações engalanavam as ruas, os carrinhos e os carrocéis enchiam a Alameda e as iluminações não deixavam sombras para namorar. Quando as lâmpadas desenhavam o campanário da Igreja do Peso muitos olhos se desviavam lá para cima a ver se os Remédios já cintilavam.

Era um tempo em que a perseverança não se excepcionava e a terra cavada com suor dum esforço ancestral tinha uma história feita de lendas e as gentes sonhos sem fim onde se recriavam a habitualidade, se espevitavam futuros, se diversificavam motivações e se engrandeciam espaços.

As Festas do Socorro eram um compasso de espera na roda do tempo e do trabalho, estreias de fatos e vestidos, arranjos de cabelo nos salões da Vila que a Régua ainda não era cidade de nome.

Era a romaria dos desenraizados do litoral em retorno aos almoços de cabrito assado e arroz de forno nas mesas familiares. As estradas enchiam-se de carros e de excursões, os comboios fumegavam na Estação, um mar de gente inundava a princesa do Douro e todos eram conhecidos.

Havia crianças ao carrachol e idosos amparados a bengalas, cantadores de chulas, tocadores de realejos, bombos, ferrinhos e concertinas. Dançava-se no meio das ruas e em todos os cantos onde o pó escondia feições.

Os rapazes sopravam em cornetas de barro, mercavam-se panos, mantas e potes para a vindima, voavam ilusões sobre o murmúrio humano, as gargalhadas estrondeavam, avinhadas, nos tascos e cafés, à mistura com o tilintar dos copos, e as tristezas estavam trancadas nas casas vazias das aldeias em redor.
Era em Agosto e, quando a Senhora do Socorro se passava, no andor florido, por entre alas de bombeiros e anjinhos, a multidão esquecia a profanidade e ajoelhava-se em silêncio de Fé encomendando promessas, gemendo aflições e cantando alegrias. A Senhora a todos sorria numa magnanimidade de ternura e perdão que marejava os olhares dum povo cheio de memórias de sacrifício glosadas por poetas e prosadores.

Era Agosto e as uvas amadureciam à espera dos cestos…
- In  Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro.


*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
  • Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue.
Clique nas imagens para ampliar. Texto e imagens cedidas pelo Dr. José Alfredo Almeida. Fotos de Miguel Guedes. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

PRECE

Volta Jesus Cristo!

Volta a este mundo de sacripantas,
De escárnio e mal dizer.
Volta a esta terra de vaidade,
De desamor e egoísmo,
Fria e vazia como um poço abandonado,
Repleta de Sanhedrins da corrupção
E de Zerahs gananciosos.

Volta Jesus Cristo!

Volta à medula das nossas misérias
Para curares as chagas da inveja,
Perdoar com a serenidade de quem ama,
Limpar todas as Jerusaléns do nosso tempo.
Volta depressa às nossas consciências,
Aquecer a indiferença que nos rói,
Gritar uma esperança para amanhã
- Para sempre -
Não morrermos sozinhos e tristes.

Volta Jesus Cristo!

Vem dar força aos Nicodemus sinceros,
Encorajar os Josés de Arimateia verdadeiros,
Julgar todos os Tibérios modernos
Desprezar todos os Pilatos covardes,
Apontar os Barrabás perdidos.

Volta Meu Senhor e Meu Profeta!

Vamos falar aos que morrem de ambição,
Pregar a doutrina que nos salvará,
Escorraçar os que comem na opulência,
Agasalhar as crianças que tremem de frio,
Sem carinho, abandonadas como destroços.

Volta Jesus Cristo!

Para devolveres às pessoas o riso da vida,
Amar os que nada têm,
Ensinar de novo o que todos esqueceram.
Volta para me enxugares os rios da tristeza,
Nas angústias dos fins de tarde
E me abraçares nas horas de desassossego.

Volta Mestre!

Vamos berrar contra a alegria falsa,
Contra o sorriso falso,
Contra a amizade falsa,
Contra os irmãos falsos,
Contra os políticos falsos,
Contra toda a falsidade.
Quero ir contigo entoar a nossa Fé,
Derrubar os déspotas com a nossa Cruz,
Correr do Poder os que mandam sem saber.

Volta Jesus Cristo!

Eu quero abraçar-Te!

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

quinta-feira, 31 de março de 2011

A MINHA CIDADE

(Clique na imagem para ampliar)
Fotografia pertencente à galeria pública de Jaime Gabão 

A minha cidade
Tem o visco da saudade
E o nevoeiro do futuro.
A minha cidade
Tem a tristeza do escuro,
Mas, sobretudo,
O brilho da verdade.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima pertencente à galeria pública de Jaime Gabão e poderá ser ampliada clicando nela com o mouse/rato.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

GERAÇÂO ESQUECIDA - II

África das manhãs morenas,
Dos risos nas areias molhadas,
Das noites suadas e serenas,
Fora dos tiros das emboscadas.

Beijei a tua boca em Porto Amélia,
Acariciei os teus seios em Quelimane,
Fiz amor contigo em Lourenço Marques
E chorei por quem ficava,
Do outro lado do mar,
A contar os dias da chegada.

África tão longe
E tão longa,
Corpos ao léu
Em camas de céu,
Amor às claras,
Fremente de vida,
Carne despida
De falsos pudores.

África das anharas,
Dos caminhos da coragem,
Das horas a sonhar
O regresso da viagem;
Negra risonha ao amanhecer,
Mulata dolente ao anoitecer,
Branca namorada de um Maio a nascer.
Terra de fogo, de sangue e de gritos,
Inúteis mortos e feridos,
O sol a ver
Um homem a morrer:

Adeus até ao meu regresso,
Sou este que me despeço.
Fui corpo e, agora, sou alma.
Uma bala me levou.
Finalmente tenho a calma
Que a guerra me roubou.

Recados de condenados,
Bocas espumas de sangue,
Corpos destroçados
Que viveram um instante.
Nacala, Nampula, Molocué, Quelimane,
Namacurra, Mocuba, Chire, Pebane,
Porto Amélia, Mocímboa, Beira,
Mueda, lá em cima, e Macomia perto.
Madrugadas sem eira nem beira,
Olhos de sono, mas sempre desperto.

Que é feito das cruzes enegrecidas,
Símbolos de uma geração sacrificada?
Estão todas desfeitas, esquecidas
A bem da Nação libertada?

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

terça-feira, 28 de junho de 2011

ÚLTIMA VONTADE


Quando eu morrer,
Que seja em Agosto
Com toda a gente de férias.
Quero morrer sem desgosto,
Sem dor e sem aborrecer,
Envolto na brancura de um lençol,
Só um padre, a família e os amigos,
Sem mais ninguém saber.
Quero morrer sem choros, sem gritos
E sem anúncio no jornal.
Morrer não é o fim,
E quem me diz a mim
Que a minha vida, afinal,
Não se renovará num caminho
De amor e carinho,
De risos verdadeiros,
Todos os dias renovados
Como se fossem os primeiros?
Quando eu morrer,
Lavem-me com a lágrima do adeus
Que quem morre sempre deita,
Não com pena de morrer,
Mas triste pelos que ficam,
Mais tristes e abandonados,
Sem saberem o que os espera:
Se a disputa de uma herança
Ou o fim de uma esperança.
Quando eu morrer,
Metam-me num jazigo
Com uma ampla janela
Para ver, através dela,
O sol de cada domingo.
Ponham-me flores e uma vela,
Uma cruz e um poema
Que aqui deixo escrito:
Nasceu sem saber porquê,
Viveu sem que o entendessem.
Morreu sabendo para quê:
Para que na ausência o lembrassem.
Basta para dizer tudo,
O que foi o meu mundo
Em criança e em adulto.
Atravessei mares e continentes,
Chorei nas noites de abandono,
Amei raças diferentes
E não sei se matei por engano.
Quando eu morrer,
Não quero ir para a terra;
Em vez de morrer uma vez,
Morreria, então, duas vezes.
Concordem que não o merecerei
E, se o fizerem, garanto-vos,
Nunca o esquecerei.
Afinal, quem vive com os remorsos
De uma última vontade não cumprida,
Naquele instante de amargura e despedida
Em que o sangue se esvai,
No grito intolerável que a vida dá,
Até se esbater cansado num ai
Que até parece que, depois dele, nada mais há?
Quando eu morrer,
As andorinhas farão ninhos
No beiral da casa onde nasci,
Cantando de mansinho
Para que não me interrompam o fim.
Apanhem uma que seja dócil e bela,
Prendam-na às minhas mãos
E deixem-me ir assim com ela,
Caixão aberto e o sol a brilhar,
As pessoas espantadas a olhar
Para um funeral nunca visto.
Batam palmas devagarinho,
Não se importem de parecer mal,
Não falem durante o caminho,
E vejam se vou a voar.
Quando eu morrer,
Se calhar, não terei tempo de dizer
O que sempre calei em vida:
Que amei tanto os outros
E alguns não me mereceram,
Que chorei por loucos
E por quem não devia,
Que encolhi silêncios
Pelos que nunca me lembraram
E alguns até se afastaram.
Quando eu morrer
Vai ser penoso ir-me embora,
Deitado, estrada fora,
Sem me mexer,
Sem poder beijar os frutos da minha felicidade,
Virtudes e defeitos do meu ser,
Os seus rostos mais lindos do que o sol a nascer
E sorrir-lhes, então, até à eternidade.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustrativa acima é formada/editada por diversas fotos recolhidas da internet livre. Clique na imagem para ampliar.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

CONTRA A CORRENTE

Pega de caras o teu desencanto,
Toureia-o no redondel da multidão,
Numa qualquer praça, num qualquer canto,
E não autorizes que te ponham a mão.
Não vendas a tua palavra
Nem a tua verdade
Nem o teu amor.
Vale mais, quando morreres,
Teres o aceno de uma flor
Do que um coro de fingidores.
Podes contar os tostões,
Uma vida inteira que seja,
Podes contar as traições,
Venham de onde menos se deseja,
Podem-te vencer,
Naturalmente,
Podem-te roubar,
Cobardemente,
Mas não te podem prender
Nem convencer
A ficares calado,
Humilhado.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" será apresentado  no próximo dia 12 de Março (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Convite e informações aqui.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

OS IGNORADOS

Falo-vos da África dos matos sem fim,
Dos ecos perdidos no capim,
Das picadas vermelhas mas livres,
Tão livres como a liberdade.
Em cada curva uma palmeira,
Em cada lugar uma saudade,
Em cada sorriso uma clareira
De brancura e de amizade.

Falo-vos das noites de encantamento,
Das queimadas para lá do pensamento,
Da lua a beijar a baía de Pemba,
Do batuque e das esteiras na temba
Onde o meu corpo se satisfazia
Em outro corpo que, depois, dizia:
« São cinco quinhentas, patrão! »
E eu, cá dentro, aqui onde bate o coração,
Nem sei o que sentia.
Só sei que, depois, voltava
Com mais quinhentas na mão,
Roído pelo tédio e a solidão.

Falo-vos dos poemas proibidos,
Alguns esquecidos,
Outros lembrados
E agora publicados.

Falo-vos dos loucos a berrarem no entardecer,
Das sentinelas a dispararem para a escuridão
Com o medo aos saltos, na indecisão
Da manhã que não se sabe se vai nascer.

Falo-vos dos rios em que lavei o rosto,
Matei a sede ao sol- posto,
Gritei que não queria a guerra,
Mas não desertaria da minha terra.

Falo-vos da África onde não voltarei
Para matar a fome das minhas recordações,
Abraçar os irmãos que deixei
E lamber as feridas de todas as desilusões.

Falo-vos da África dos nossos soldados,
Dos seus sorrisos e dos seus abraços,
Uns, já mortos, outros, vivos-despedaçados,
Mas, todos eles, ignorados.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima representa parte do Parque Tsavo no Quénia/África e foi recolhida no site "Viajologia-Época-Viajando com Haroldo Castro". Composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

sábado, 25 de setembro de 2010

A CASA

(Clique na imagem para ampliar)

Todos, uns mais que outros, estamos ligados às casas onde morámos. As peripécias da existência levam-nos, muitas vezes, a geografias diferentes das que conhecemos na nascença. São as condições do destino, contrariando a vontade ou os desejos de mudança para a concretização (ou não) de um sonho. As casas são o canto das confidências ou o altifalante dos destemperos, a alcofa do amor ou o antro da repulsa, o espelho da harmonia ou da truculência, o retrato da ternura ou do gelo, a redoma das inocências ou o estilhaçar das más criações.

As casas são pedaços da nossa memória povoada de risos e de choros, de zangas e de perdões, de vida e de luto, de realizações inesquecíveis e injustiças traumatizantes, de brincadeiras e de recriminações, de opulência e de escassez, de grandezas e misérias – de tudo, afinal, de que é feita a roda da vida.

Quantas vezes uma casa é a referência de uma cronologia, o antes ou o depois de uma casualidade, a justificação de uma luta, o renascer de uma afirmação, o hiato de uma dificuldade, a certeza de uma vida inteira. As casas são sempre a moldura de uma época, figurantes imóveis da mobilidade do nosso filme.

Há dias, vi, na longa avenida onde moro, uma dessas casas, por onde passei, ser demolida como quem esmaga uma inutilidade. Subia-se por uma escada em cotovelo, que dava a um longo corredor, marginado por quartos, até terminar numa pequena cozinha aproveitada numa reentrância da sala de jantar, frente à qual se estendia uma frondosa ramada que, todos os anos, dava alguns almudes de vinho americano, e onde, à sombra dela, as crianças faziam tropelias diante da complacência de uma bondosa avó. Foi ali que escutei, enquanto o sono não vinha, o ruído dos eléctricos nas suas correrias nocturnas, no tempo em que passear à noite ainda era uma liberdade; que, surpreso, ouvi sagas africanas de esplendor e de debandada, contos de honra e de abdicação; que ri com satisfação e me silenciei nas preocupações; afaguei nascidos e chorei por quem abandonava o mundo; que confirmei o ensinamento da minha meninice aldeã: a partilha do pão tanto pode ser por dois como por quatro.

Quando o mastodonte de tijolos e cimento parar de crescer para o céu, vou pedir ao novo dono que ponha uma bandeira, lá no alto, com um coração desenhado. É A ÚNICA MANEIRA DE EU VOLTAR A OLHAR PARA LÁ.
- Texto de M. Nogueira Borges*, Porto, Setembro de 2010.
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua.

    quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

    A SESTA

    As amendoeiras estão secas, as favas-ricas espalham-se no chão, as buganvílias resplandecem nos jardins e os chorões beijam a relva. Os pinheiros mansos, oliveiras e raras acácias protegem os carros de latas escaldantes sob o calor do meio-dia.

    Caminho por entre alas de arbustos, administrando as sombras, derreado com os sacos de praia engordados de toalhas, calções e cremes anti-solares. A petizada chilreia em volta da piscina, as Mães, com pratos de cerelac, imploram-lhes as bocas; anafados passeiam cães de marca, deixando-se levar pelo esticar das correias; mulheres de ondulantes proeminências derretem, sem precauções, a sua celulite; as esplanadas enchem-se de estrangeiros a enfardar batatas fritas com canecas de cerveja que mais parecem cubas, numa algazarra que a desinibição em terra estranha facilita. Respira-se uma mistura de cheiros a cloro, ambre solaire, perfumes franceses, sardinhas assadas e febras grelhadas.

    Vim por aí abaixo, numa noite sem sono, para fugir ao calor e às bichas de esmigalhar paciências. Atirei-me, mal arrumadas as tralhas, à liberdade de um mar sereno e à vastidão dum areal que me imaginei, há muitos anos atrás, naquelas imensidões africanas com as palmeiras franjando o Índico. Quem me visse, tão criança, esbracejando como quem afasta repressões, julgar-me-ia fugido de algumas grades, mas, apenas abandonara as neblinas do litoral nortenho que, sem possibilidades de se virar o mapa ao contrário, se vingam aqui.

    Ao longe, depois de uma ponte pênsil sobre o rio Gilão e ramificações da Ria Formosa, um comboiozinho artesanal ronrona tão lento – em estirar de mamba - que parece ali andar desde o exórdio do mundo. Vai e vem sempre esgotado, levando e trazendo banhistas, entusiasmados na ida, arrastando-se na vinda.

    Os toldos amontoam-se ao pé de um antigo abrigo de pescadores em que restaurantes ocasionais gananciam em três meses pelo que não facturam em nove. A praia, de areias açucaradas, beijada por uma irresistível mansidão líquida, estende-se até os confins do olhar. Por ela se dispersa, num mosaico complacente, uma fauna de muitos lugares, condições, espécies e maneiras: há seios ao léu aprumados como setas, outros descaídos como moncos de peru, fios dentais a fazerem de conta que tapam sexos rapados, barrigas de maternidades, banhas de abafar, securas de espantar, esculturas de ébano, remedeios matrimoniais, cabelos loiros deslizando água, carecas sem um pêlo para flutuar, palhaços fora do circo a fazerem o pino para as palmas de senhoras que falseiam júbilos, vendedores de bolos cozidos pelo sol, sorveteiros esganiçados com
    arcas a tiracolo, rostos felinando as ancas e os traseiros que passam, velas de windsurf que enfunam como barbatanas de tubarões, figuras televisivas que escondem, sob óculos de escuro espesso, a autenticidade que não é igual à que dá a sala da caracterização, iates atulhados de nudistas a cortar as águas junto à costa, pantominas de motos espirrando jactos como baleias, mamas em carne viva e besuntadas com guinchinhos de chamar a atenção. No meio disto tudo, um velhote, vestido à marinheiro com botas de montanha, chama os netos com um apito de ajuntar cães, observo-lhe a cara, os olhos alienados, e penso que deve ser triste conviver com a loucura. Deixo, com alívio, essa ontologia diversificada, morto por um chuveiro que me limpe as areias e a aspereza salina.

    Quando o almoço acaba e a sonolência chega, a sesta é um prazer antes do gozo. Adormeço com um búzio nos ouvidos, numa leveza anestésica, já mal escutando o passar distante do comboio de Faro.
    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
    • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

    quarta-feira, 1 de junho de 2011

    TEMPO MOÇO

    Deitados na caruma, de olhos fechados, sentíamos os voos das pegas–azuis, os estalos dos pinheiros e, ao longe, na ondulação dos montes, os zumbidos dos pulverizadores.

    Não sei quantos anos tínhamos, talvez dezasseis, talvez dezoito ou talvez aquela idade em que não se sabe, ainda, contar os anos.

    Da pequena cachoeira, a deslado de um renque de salgueiros (pareciam salgueiros...), vinham os ralhos das mulheres que lavavam a roupa, misturados com a gritaria da canalha entre barrigadas na água e correrias pelas margens.

    Flutuavam aromas de Verão, o cheiro a terra e a flores silvestres entranhava-se nos corpos. Ficávamos, assim, colados ao restolho, cansados da subida, à espera que o comboio nos acordasse.

    Quando o pouca-terra-pouca-terra da via reduzida atravessava a ponte, sentávamos-nos a ver aquilo: carruagens esverdeadas, andar bocejante, fumaradas de cigarro, brinquedo de cascata sanjoanina. Os nossos cabelos eram fios de sol e trocávamos olhares tão ternos como a lua contempla o mundo nas noites quentes de Agosto.

    Corríamos os bardos à cata de ninhos de melros, e havia sempre, ao entardecer, um rouxinol que cantava para os lados da ramada que sombreava o poço.

    Tudo era verdadeiro, a amizade existia mesmo e ninguém invejava ninguém.

    Tínhamos a novidade do princípio que nunca se inicia nem acaba qual a sede num sonho.

    Trepávamos ao pinoco de cimento, que comemorava o ponto mais elevado do monte, e dali abarcávamos uma vista delirante: medonhas penedias forradas por simétricas fieiras de verde tão a pique que parecia impossível um homem conseguir lá botar sulfato; estavam mesmo junto às nuvens, numa adoração telúrica que nem sabíamos se era herética ou sagrada, enquanto o comboiozinho, ao longe, pronunciava uma curva larga, em câmara lenta, pedindo que algum santo o empurrasse.

    Ignorávamos o ódio que é feito daquele martírio de linguagem escolhida para a ofensa gratuita, expressa por olhos esbugalhados para perturbar a boa fé. As mãos das pessoas tinham calos e terra nas unhas, as barbas faziam-se aos domingos de manhã e o Padre madrugava com o sino da Capela a interromper os sonos.

    Ecoavam os cânticos das aleluias, o toque dos santos, a adoração da hóstia e, depois, os homens iam, abençoados, de sacho ao ombro, desviar as águas para as hortas.

    Líamos, às escondidas, o Crime do Padre Amaro ou Andam Faunos Pelos Bosques, enquanto as moçoilas, de caneco à cabeça assente em rodilhas, mostravam os vestidos de chitas floridas; as Mães, cansadas, catavam ganapos; os homens, nas tabernas, jogavam o monte ou o sete e meio, mastigando tabaco de onça e escarrando no chão térreo; os leilões de cravos, cestas de fruta e galos de crista vermelha fomentavam vaidades aldeãs em nome das festas de Santa Bárbara; os bailaricos de poeira, suor e olhares de soslaio alimentavam rivalidades ciumeiras.

    Naquele tempo desconhecia-se a morte. Ela estava cercada por quatro paredes, no canto mais afastado da terra, e não gostávamos daqueles toques metalóides dos sinos da Igreja quando uma multidão vestida de negro se arrastava, estrada fora, como uma cobra do rio.

    A morte era um eco difuso, pouco audível, que a noite, por vezes, avivava em receios de fantasmas. Depois, adormecia com a sensação de que me faltava alguém.

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustrativa acima foi recolhida da internet livre e editada. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
    • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.

    quarta-feira, 20 de abril de 2011

    PRETÉRITO IMPERFEITO

    Íamos, meios tontos, inebriados pela fantasia de que era tudo nosso, correndo pelos caminhos de sombras da mata, arrancando, aqui e além, ramitos de mimosas, até nos quedarmos, ofegantes, no encosto de um tronco, o suor a escorrer pelos corpos.

    Não sabíamos que o Mundo tinha hospitais e cadeias, lágrimas nos cantos da tragédia e ódios recalcados na desventura de vidas desconhecedoras do perdão.

    Ignorávamos que o amor é, tantas vezes, uma hipocrisia sustentada pela comodidade de não romper interesses ou ferir o futuro dos nascidos sem culpa.

    Julgávamos eternas as juras de fidelidade e que os dedos entrelaçados nunca se desatariam.

    Não conhecíamos a ingenuidade porque, entre nós, tudo era seguro e limpo.

    Troçávamos dos conselhos dos mais velhos como se fossem frustrações de quem não encontrara a felicidade. Esta nascia-nos nos brilhos dos olhos e na sofreguidão dos afagos. O dinheiro não contava porque matávamos a sede na água do riacho e a fome nos frutos que amadureciam sob o calor das férias.

    Da cidade chegava-nos a confusão, amortecida pela muralha do arvoredo, e os passarinhos cantavam connosco. Era lindo ser-se novo! Sentir na cara a seda da brisa e nas veias o sangue do desejo, libertos dos ralhos e das sinetas, sem vultos negros nos corredores semi-iluminados, sem o cheiro lixiviado das camaratas e as imposições dos recolheres vespertinos.

    Não voávamos que não tínhamos asas, mas os risos e os sussurros acompanhavam-nos na leveza de quem não fazia contas. O futuro não existia, ou antes, era o momento, tinha a dimensão de uma ternura e a certeza de que a luz da tarde nos daria o tempo suficiente para nos vingarmos da noite.

    Sentávamo-nos num banco de pedra a contemplar a colina do castelo, enlevados em romances de cavalaria e princesas encantadas. Do lado de lá, depois de um abismo rochoso, ficavam os lameiros onde se abatiam as codornizes enquanto não chegava o tempo das perdizes e dos coelhos. Eram terrenos férteis, de vales amplos, acordados pelos tiros e pelos gritos das manhãs cinegéticas.

    Não sentíamos as lágrimas da humilhação, a indiferença das almas egoístas, as cobiças insensíveis, a inveja deprimente.

    Éramos vazios do mal, só a boa-fé nos comandava. Traçávamos as linhas da honra sem imaginarmos que, um dia, mais repentinamente do que começáramos, as estradas dos nossos passos nos levariam cada um para seu lado com o mar a separar continentes e a guerra a enlouquecer uma geração.

    Mas valeu a pena acreditarmos, percorrermos a ilusão. Se conhecêssemos tudo o que a vida nos trouxe, desistiríamos, logo ali, de sermos felizes. A felicidade, por pouco tempo que seja, vale sempre, ao menos, uma memória.

    - De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustratrativa acima foi recolhida da internet livre. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
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