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quinta-feira, 28 de março de 2013

O PECHE

Manhã cedo, o sol a erguer-se, já se ouvia a chiadeira do carro de bois do Peche que parecia vir da lonjura, acordando o silêncio da terra e despertando as gentes para a faina das vinhas. Era um ruído agudíssimo, de ferro oxidado, que aumentava à medida que se aproximava. Os cães vinham ladrar aos quintais, os galos cantavam nas casinholas, a neblina ressumava sobre a concha de Remostias, o vale de Abraão era ainda uma sombra, os caminhos entoavam as primeiras tosses, os homens esperavam os Feitores no Paredão, mastigavam-se as côdeas do dia anterior, a lamparina da Capelinha de S.Gonçalo continuava a cumprir a devoção dos vivos, abriam-se os portões, as lareiras expeliam os primeiros fumos e o perfume matinal alegrava os acordares.

O Peche vivia – é um modo de dizer - ali para os lados do Poeiro, num mísero saguão, paredes meias com a loja do Lindo – assim chamava ao animal –, partilhando cheiros e tecto, já que as camas, sendo ambas de poácea seca, tinham - ao menos isso - a diferença da condição. O Peche foi um grande carreiro do Douro. Ainda hoje sinto uma saudade tão forte que parece que o estou a ver: meão, boina esburacada como se tivesse servido para um qualquer caçador experimentar a pontaria, faces com sulcos de necessidades escondidas numa espessa barba cinzenta, um estrabismo acentuado (mirolho chamavam-lhe os velhacos), sempre com as mesmas calças de cotim coçado seguras por uma guita, as botas compradas, há um ror de anos, numa mal lembrada festa da Santa Eufémia. Mesmo no seu aviltante viver, tinha um modo tão cativante que até sonhei ser rico para com ele dividir um palácio onde nos sentássemos à mesma mesa. Foi ele que me despertou as primeiras revoltas pelas injustiças do mundo e a repulsa contra a pobreza mais deprimente. Quantas vezes, mal o via, me questionava porque dá a sorte, a uns, tudo o que querem e, a outros, nada.

Era o tempo do medo e da fome que não poupava nem os que tinham mais nem os que tinham menos - agrilhoava na proporção. O medo vinha de todo o lado, uma coacção que se sentia no bafo dos dias, na oralidade encadeada das estórias da submissão, um fatalismo que não concebia perguntas porque quem mandava não tinha rosto, só o nome amedrontava, e sabe-se que os grandes medos nascem na reputação. A fome, mais do que uma precisão do estômago, era uma indignidade que humilhava qualquer carácter, uma urgência de sustento que, não matando, moía a qualidade de se ser gente e dramatizava a repartição por diversas bocas; era a impossibilidade do ter e a indigência do ser.

Onde começava a rampa de S. Gonçalo, esburacada como se atingida por um obus, o Peche parava o carro, destravava-o por inteiro, colocava-se à frente com a mão direita na aguilhada e a esquerda na ponta direita do bovídeo, estimulava-o com carinho e um ou outro ligeiro toque com o ferrão, e o Lindo ganhava lanço, afocinhava até o chão, levantava o jugo, para só parar, com a sua pipa ainda vazia amarrada por cordas de vários nós, junto à porta do armazém em que se ia realizar a carregação. O carreiro chegava-se a ele, fazia-lhe festas, deixando-o lambuzar-lhe as mãos, «Meu Lindinho, vou dar-te de comer, sim?», dobrava a palha, metia-lha na boca, e o seu amigo ruminava com os olhos a piscarem. Nunca, ao Peche, lhe escutaram um azedume, um ódio contra a vida. O mutismo era o seu estado natural, falava por obrigação, e o seu olhar, apesar de divergente, tinha o determinismo da privação. O Lindo, mais do que o interesse da sua sustentação ou o justificativo da sua profissão, era o substituto das ausências humanas, a companhia que lhe recreava a vida.

Quando as portas do armazém se abriam, preparadas a balsa e a torneira, o vinho jorrava do tonel como sangue de veia explodida. O meu Avô, sentado num pipo na perpendicular, de bengala ao lado, fumando tabaco de onça, conferia mais com a presença do que com os olhos. Nesse tempo, os lavradores eram mesmo lavradores, viviam do que dava a terra e por isso a fiscalizavam com preocupação sobrevivente; nada lhes escapava do seu trato: a escava, a poda, a erguida, o herbicida, a cava, a adubação, o sulfato, o enxofre, a redra e a esfolha. Calculavam, com o saber da experiência, as (im)previsões do tempo e da vida; eram escravos dela e, mesmo que a saúde lhes dificultasse a passada, isso não lhes condicionava a exaltação dos montes e só deixavam de os percorrer e amar quando a morte os tolhia.

Carregar uma pipa, além de trabalho arrastado, era vender as preocupações e os suores de um ano, às vezes de muitos. Atestavam-se os almudes, até ao orifício da correcta medição, com as canadas bem cheias, e apontavam-se com quatro riscos verticais e um oblíquo como quem contava jogos de sueca. Depois, subindo pelo escadote, um homem despojava-os num enorme funil introduzido naquela, num vai e vem monótono. O fartum espalhava-se pelo caminho e infiltrava-se pelo soalho da casa numa antecipação inebriante de vindima. Os que passavam, rondando a porta, aproximavam-se e cumprimentavam com um brilho apelativo no olhar. O primeiro a provar era sempre o Peche. Tirava a boina, saudava à saúde dos presentes, escorripichava o quartilho, estalava os lábios de satisfação e limpava-os à manga da camisola. Era apreciador, embora, algumas vezes, abusasse na avaliação... Entretinha-se com uma tira de bacalhau salgado, num desenfastiado ougar. Os outros despachavam-se com a pressa de quem desejava repetir, alguns indo, para o fundo da rampa, acenar, pateticamente, a qualquer automóvel que, raramente, descia para a Régua ou subia para Santa Marta. Havia um, o Manuel Manco, arrastando-se, como um lagarto, de joelhos dobrados guarnecidos com umas patelas de borracha e umas solipas nas mãos que, ao terceiro ou quarto caneco, disparatava, encostado ao muro sobranceiro à estrada, numa imitação bronca de banda de música: «É a banda de S. Cipriano!», arremedava ele, cravando a manápula esquerda no sovaco direito e levantando e descendo o respectivo braço. Dava, então, um concerto peidorreiro. «É o trombone!», moinava, enquanto imitava os pratos com uma guturalidade de momo.

Fiscalizava-se o enchimento do casco batendo-se-lhe, de tempos a tempos, com uma chave de apertar, e, quando testo, martelava-se um batoque envolto num pedaço de serapilheira. O Peche verificava a segurança das cordas e das estacas, incentivava o Lindo, soltava-lhe o freio, sentava-se na traseira com as pernas suspensas, e lá iam eles direitinhos à Casa do Comissário que comprara o vinho. Até ele voltar, fechava-se o armazém que outras tarefas aguardavam. Eu corria para o fundo do quintal e só parava de o ver depois da curva do Fial, a chiadeira num eco imperceptível.

Numa manhã de Maio, de fértil Primavera, encontraram-no, lavado em lágrimas, encolhido na ombreira do seu tugúrio. Quando acordou, não sentiu o Lindo; chamara-o, mas nada. Mal se ergueu, viu-o retezado na palha humedecida, rodeado de excrementos. Gritou, mas ninguém o ouviu; ele costumava despertar com a lua ainda em demora. Foram os primeiros cavadores, vindos do Ribeiro, que o encontraram no pranto de desespero. Passaram palavra e combinaram enterrar o animal num declive do Toimil entre uns castanheiros que rodeavam o poço. Ao fim da tarde, mal despegaram do trabalho, uma mancheia de homens içou o animal para a caminheta que o Zeferino emprestara. O sol ainda brilhava no vale de Jugueiros, apontando a sepultura. Esperaram um bom bocado até que a enorme vala - que outras boas almas se haviam prontificado a abrir – ganhasse a largueza e a fundura necessárias. Quando empurraram o corpo do Lindo, inchado como um odre, o Peche caiu redondo. Os presentes ficaram sem o que dizer e fazer; alguns não impediram uma lágrima, outros sentenciaram uma bebedeira. Solevaram-no com cuidado e berraram-lhe o nome até o rosto desfigurado mostrar a sua normalidade estrábica.
Depois disso, o velho carreiro, de mãos nos bolsos, caminhar de títere e olhar distante, arrastava-se, sumido, pela aldeia. Falava sozinho, como se o seu boi ainda o levasse na chiadeira da sonolência, mal respondia a um cumprimento e só comia o que lhe davam. Nunca pedia, embrulhado na resignação, mas muitos não lhe negavam uma ajuda. Andava dias e dias fora de Lobrigos, de feira em feira, à procura de um boi igual ao seu, que nunca encontrava e, que encontrasse, nunca poderia comprar, regressando sempre de olhos alagados. Diziam que enlouquecera, deixara de fazer a barba nas manhãs de Domingo, os joelhos ao léu nas calças de cotim, camisolão desgolado, a boina num benairo de sebo, os polegares saídos das botas. Um dia, alguém o chamou e o vestiu com umas roupas dispensáveis. Houve quem se risse, chamaram-lhe doutor e faia. Por pouco prazo. Retiraram-no da palha e enterraram-no, por misericórdia, no cemitério do Espírito Santo, numa tarde de Janeiro, quando a luz do dia se escapava por entre os socalcos. Quando lá vou falar com os meus, bem queria saber da sua campa. Já procurei e perguntei por ela, mas ninguém me sabe dizer. Nem uma palavra, nem uma letra. Sei-o ali, abandonado num canto qualquer, a dizer-me que a grande riqueza das pessoas é a boa recordação que deixam.
- M. Nogueira Borges - LAGAR DA MEMÓRIA, (Aos meus mortos e aos meus vivos).

Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

*Manuel Coutinho Nogueira Borges - escritor e poeta do Douro-Portugal: Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.

Clique nas imagens para ampliar. Foto original do Peche cedida por José Alfredo Almeida. Edição/actualização de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2013.  Também publicado no jornal semanário regional "O ARRAIS" edição de 27 de Março de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

OLHAR

Os meus olhos são um rio ressequido,
Em cada Verão de mangas curtas,
Que se enche em cada Inverno de tristeza.

Os meus olhos são um grito,
Aflito,
Que entoa em cada casebre
Carcomido
De Pobreza.

Os meus olhos são um rio de muitos barcos
Que navegam como revoltas e enganos,
Rectas e curvas feitas gráficos
De dias,
De meses
E de anos.

Os meus olhos são um rio de margens
Desenhadas pelas sombras das saudades,
Feitas memórias de viagens,
Umas realizadas,
Outras sonhadas.

Os meus olhos são um rio de desilusão,
Sofrida,
Dorida,
Mas sempre com uma esperança
- Quimera perdida -
Igual à de uma criança
Que ainda desconhece a mentira.

Os meus olhos são um rio de cansaços,
Repleto de fastio e alguns embaraços.
Sós como os choupos do esquecimento,
Sós como os vinhedos em Dezembro.

Os meus olhos são um rio de pensamentos
Diferentes,
Contraditórios,
Violentos,
Mas suaves como na Primavera os rebentos.

Os meus olhos são um rio alteroso,
Conhecedor do seu nascer,
Certo do seu morrer,
Pejado de rochedos
E de medos;
Batido pelo sol ( de quando em vez ),
Um sol de bafo e de carinho,
Tão leve como a minha Mãe fez
Quando me abriu as portas do mundo
E disse: «Meu Menino...»
Com uma voz bem lá do fundo,
Um sorriso de amor e de calma
E um alívio na alma.

- De M. Nogueira Borges* 
*Pode ler M. Nogueira Borges neste blogue e no blogue "ForEver PEMBA". Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 5.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Está sepultado em Cambres - Lamego. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Diário (de Lourenço Marques - Página de Cabo Delgado), Notícias (de Lourenço Marques), Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
Extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado  dia 12 de Março de 2011 na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustrativa acima é recolhida da internet livre. Clique na imagem para ampliar. Atualização de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Em conversa com Nogueira Borges - JOÃO DE ARAÚJO CORREIA O MÉDICO, O ESCRITOR E O HOMEM

Em tempo do III Fórum João de Araújo Correia que se realiza a 20 de Outubro no Museu do Douro:

Por: M. Nogueira Borges*

João de Araújo Correia é o exemplo acabado do HOMEM DURIENSE na universalidade da sua encarnação telúrica, tão rijo e tão digno como os antepassados e os hodiernos que escreveram e escrevem com sangue, suor e lágrimas a saga heróica duma Raça por estes montes e vales onde florescem os vinhedos da nossa esperança. Nada lhe foi fácil, nada lhe veio ter às mãos sem trabalho e muito sacrifício. Fez-se Médico, Escritor e Homem à custa de muita luta, honra e dimensão moral.

Foi Médico depois de sofrer uma dolorosa interrupção a que a doença o obrigou. Calcorriou caminhos desconhecidos para atender aflitos do espírito e do corpo, criou nome e admiração dentro e fora das fronteiras do País Vinhateiro, viu em muitos lares “a face da fome e da doença desvalidas de pão e de farmácia” (1). Soube, como ninguém, que “a morte, em meios imbecis, é o que foi a vida: um quadro baço, quieto, sem frémito de asa, sem gota de água, sem nada” (2). Não andou de guarda-sol em cima de ginete cansado, em descrição dionisiana, antes um clínico que tinha de saber de tudo para acudir a qualquer dor em qualquer lugar, numa observação pronta que tanto usava a fala pausada e conselheira como o silêncio sem azedume e tolerante. Um doente era-lhe sempre um ser humano cuja sensibilidade se respeita, e aí, sim, foi para todos um João Semana de coração aberto que aliou a frieza da ciência ao afago da alma e à ternura do trato. Consultar João de Araújo Correia não era ir buscar receita com montes de medicamentos mas ouvi-lo, contemplar a serenidade daquele rosto, a benevolência daqueles olhos no ali, naquele corpo, havia uma alma grande, mais do que um profissional, uma personalidade culta que sabia do que falava e o que fazia e não esquecia o resto.
Como Escritor atingiu a plenitude no género cultivado. Um conto seu é uma aprendizagem da anatomia espiritual nos mais insondáveis pormenores da conflitualidade ou da paciência humanas. Um estudo sem fastio da nossa gramática, do modo correcto e puro de escrever português sem cedências à vulgaridade. A sua escrita é da textura do solo onde nasceu: fértil e trabalhosa, numa busca persistente da perfeição, preocupada com as ressonâncias da sintaxe, num belo exemplo de descrever as situações entusiasmando e educando os seus leitores. É que ler João de Araújo Correia não é, apenas, o acompanhamento da narração, mas também o ficar a saber como se escreve.

O nosso Escritor é um clássico onde se congregam anamneses românticas e sublimidades realistas numa constante preocupação ontológica.

Como cronista e conferencista cativou leitores de Diários prestigiados e plateias admiradas de salões alcatifados ou de soalho tosco. Todos aprenderam a experimentar a vida de quem dela falava com a sabedoria de a ter observado, tranquilo e perspicaz, na solidão do seu miradouro ou no convívio de algumas tertúlias esparsas e muito nos catres da miséria ou nos berços doirados onde a doença indistantemente o reclamava. As suas conferências são lições de literatura e de mundo. Usa as citações dos seus confrades sem presunções culturais e fala-nos deles com a naturalidade de quem conhece as suas vidas. A sua elevação linguística é tão bela e quente, simultaneamente calma e firme, que surpreende como é possível, numa frase, transmitir-se a ironia dum olhar ou a temática dum cronista supremo que pegando no mais singelo pretexto consegue a totalidade do desenvolvimento, carreando minúcias e aduzindo razões que ao comum dos mortais não lembravam.

João de Araújo Correia foi um HOMEM que não escapou ao desígnio histórico. Lidou com a morte desde que se conheceu, a ponto de “conversar com ela de mão em mão” (3) por reflexo no seu próprio sofrimento e no alheio. Não foi rico de bens materiais antes um rico homem que se guindou pelo seu pulso e adquiriu uma enorme fortuna que todos devíamos procurar: uma postura ética e moral acima das conjunturas dos tempos e dos procedimentos sociais. Deixou uma inesgotável herança: um exemplo irrepreensível de honra e de dignidade que nem todos somos capazes até de plagiar.

Ajudou quem merecia e não merecia, mas sempre quem e quando precisava. Sabia que há um tempo para tudo: para o carinho e para o ralho, para a negativa e para o assentimento, para o estímulo e para a supressão. Não cultivou a demagogia nem a excentricidade, não bajulou poderosos nem fingiu perante os humildes. Soube ser solidário para com os sulcos do seu suor.

Nesta hora, de Festas em honra de Nossa Senhora do Socorro, aqui fica a minha contribuição para o seu livro-programa que a respectica Comissão generosamente me solicitou e a que, probo e agradecido, correspondo.
Tamanha prerrogativa tinha que ser paga com seriedade e sinceridade.

Como João de Araújo Correia dizia: “O ESPELHO DE UM HOMEM FOI (É) SEMPRE O SEU CORAÇÃO.”

(1)   (2) (3) – in palavras fora da boca. - *Manuel Coutinho Nogueira Borges, escritor e poeta do Douro-Portugal, nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943 e faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. 
Clique  nas imagens para ampliar. Imagem de M. Nogueira Borges de autoria de J. L. Gabão. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2012 em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES e assinalando o III Fórum sobre o escritor e médico João de Araújo Correia. O texto de M. Nogueira Borges é cortesia do Dr. José Alfredo Almeida. Duas imagens fotográficas sobre monumento a João de Araújo Correia na cidade de Peso da Régua de autoria do Dr. José Alfredo Almeida. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

MEMÓRIA

Naquele tempo podia-se sonhar. O sonho era a ingenuidade de criança, poesia de um quotidiano que não se esgotava nem se rejeitava nele. Os limites eram imprecisos por desconhecidos ou não sentidos. Os sorrisos das pessoas “pareciam” sinceros e honestos. Não via neles nem ambição, nem inveja, nem ódio. Até os que zaragateavam nas tardes de domingo não se me antipatizavam como se tudo fizesse parte da naturalidade da vida. Aqueles de quem um dia me separava não  os inimizava nem disso necessitava. O que hoje se apresenta como sentimentalismo fácil, daquele tempo nascia sem segundas intenções e espontâneo.

O Verão era a época desejada do ciclo” estacional”. Os vinhedos tinham a cor da alegria e da esperança; ornamentados de verde e os bagos “pintavam-se” prenhes e fecundos. A minha terra tinha a beleza duma gestação sem dor. O céu assemelhava-se a uma gigantesca “ clarabóia” sob a qual se poderia dormir iluminado pelas estrelas e acordar, ao outro dia, com o sol acariciando-nos. Mas os homens da minha aldeia também arrastavam as grilhetas da angústia e traziam nos olhos a perturbação dum fatalismo irremediável. Eles viviam uns para os outros. Tivessem, ou não, terra esta era o fruto de que se alimentavam. Uns com mais, outros com menos ou com nada, eu dizia várias vezes que tinham de ser mais iguais e havia quem se espantasse. Os homens não eram maus, a realidade do ser levava-os, porventura, à repulsa do visionado.

Naquele tempo o viver não se projectava no cálculo geométrico dos gestos e a saudade era o desejo de estar onde não se estava… As palavras proibidas haviam-se fixado nos tempos de escola com os dois “retratos” lá no fundo a ladearem a grande lousa preta, onde os algarismos se escreviam debaixo da “vigilância” daqueles quatro olhos que nos infundiam o respeito das coisas intocáveis. Eles eram os “chefes”, os todo poderosos, perante quem o mais ligeiro altear da voz se tornava criminoso. E, no fim da tabuada e da redacção, a merenda, das uvas com broa, tinha um dobrado sabor. Então, estrada fora, sacola às costas, em juvenil algazarra, nos libertávamos sem sabermos de quê, jogando ao “ agarra”, pontapeando a bola ou correndo com o arco. E o sino da Igreja, sinalizando as Avés-Marias, quedava-nos por instantes, olhando os adultos que se “descobriram”.

Naquele tempo eu ia ao monte da minha terra, sentindo prazer no suor que a íngreme subida provocava, picando-me, aqui e além, nas tapagens de silvas, tentando descobrir ninhos no alto das oliveiras, estimulando com uma palha a saída dos grilos das suas loras, imitando com a ajuda das mãos o cantar das perdizes como via fazer aos caçadores...E lá no alto, bem no cimo das fragas, entretinha-me a escutar o eco dos meus brados – notas de satisfação duma forte impressão de liberdade. Sentado, via o Douro lá no fundo, superfície silenciosa de toda uma façanha de barqueiros, descobridores do caminho fluvial para a foz. Porque haveria homens assim? Fazendo trabalho tão duro com simplicidade quase complacente? E porque eram “eles” e não outros? O que determinava, afinal, a condição das pessoas? Seria a “sorte” uma aquisição irrevogável do nascer? Ou uma imagem de cada ser humano um modelo único sem hipótese de alteração? Homens havia que davam tudo e acabavam no esquecimento, que entregavam as energias da sua vitalidade à construção dum amanhã de crescimento e se viam de repente, com a brutalidade dum imprevisto estúpido transformados em anátemas. Mas as perguntas passavam, como a brisa por entre eucaliptos, para um posterior regresso interrogativo que nada conseguia evitar.

Naquele tempo, ainda muitos dormiam a sesta breve dum Verão encalorado que antecedia as vindimas, íamos de passo apressado para o adro da Capela romper os sapatos (os que os tinham) em jogos de futebol de mudar aos seis e acabar aos doze…Eram tardes de pó e suor, de ralhos e de “juras”, de nos “esfarrapar” para vencer aqueles Portos-Benficas da rapaziada da minha aldeia. Eram tardes de sol a pino e de correrias sem doseamento com ligeiras tréguas para deixarmos passar as mulheres que, de bacias à cabeça, regressavam do rio com a roupa lavada ou para ouvir as advertências do “guardador”, não fosse o entusiasmo dum pontapé mais forte levar a bola à vinha e esborrachar um cacho…

Era já com o sol a morrer e as mães em casa preparando as “contas”, que voltávamos, molhados e satisfeitos, discutindo os golos perdidos e combinando a desforra. A noite iria ser o interlúdio dum amanhã novo.
- *M. Nogueira Borges in Noticias do Douro de 21 de Junho de 1975
  
*Manuel Coutinho Nogueira Borges  é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
  • Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue
Clique nas imagens para ampliar. Texto cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição e imagem de Manuel Coutinho Nogueira Borges de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

O Sal, o Peixe e o Vinho

*M. Nogueira Borges

Chegavam, de manhã cedo, a apregoar, “Sardinha fresca!... É de Ovar!...”

- De Ovar?... – perguntava-me intrigado.

- Então a sardinha não chega do Porto?... – continuava eu na minha estranheza.

Vinham em barricas, sem cabeça e sem vísceras, dispostas simetricamente, acamadinhas entre sal. Comiam-se, assadas nas brasas da lareira ou fritas na sertã, com batatas cozidas e nacos de broa, regadas com azeite poupado que, antigamente, as pessoas não besuntavam os queixos e uma almotolia tinha que dar para muitas e muitas refeições. Havia, até, quem as comesse cruas acompanhadas com uma cebola cortadinha aos bocados e enfeitadas com sal. Quando ia à Régua, lá estavam elas, bem à mostra, ali para a beira-rio, na Rua das Vareiras (há quem lhe chame Custódio José Vieira), a serem regateados com o dinheiro escondido num nó do lenço.

Lembrei-me desta memória ao ler, recentemente, um opúsculo do nosso escritor Camilo de Araújo Correia, intitulado NA ROTA DO SAL, escrito para a primeira sessão oficial do processo de geminação das cidades do Peso da Régua e de Ovar, ocorrida nos Paços do Concelho desta cidade, em 25 de Julho de 1991.

Nestas histórias de geminações são sempre mais abundantes as tradições orais do que a documentação de arquivo (dispersa e muitas vezes omissa) a justificarem, ancestralmente, a irmandade hodierna.

Camilo de Araújo Correia perguntou, procurou, e fez contas: “Há cerca de duzentos anos que a Régua e Ovar andam de mãos dadas pois se admite como cerca a fixação das primeiras colónias vareiras na Régua, logo a seguir à construção dos armazéns da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, em 1790”.

A partir de então o futuro parece ter nascido com o plantio da vinha e o disciplinar do comércio vinícola. À nossa terra, afluíram gentes de muitos lugares, em demanda da melhoria económica, como se um eldorado de prosperidade resplandecesse na margem direita do Rio defendia pelos contrafortes do Peso com as suas casas senhoriais. Vieram muitos, mas, principalmente, vareiros e galegos que saibraram montes abandonados aquando da filoxera, plantaram americano, abriram lojas e tabernas, e transformaram a Régua num grande BALCÃO onde se fizeram e desfizeram fortunas pesando os comestíveis e medindo o tinto.

Os vareiros abandonaram as terras da beira-mar, trazendo, rio acima ou pelas estradas do Porto, o peixe e o sal que não tínhamos. Chegaram para governar a vida e não lhes recusaremos a façanha da aventura. Eram solidários, não se invejando nas vestimentas ou nos sorrisos de satisfação pelos negócios bem conseguimos. A montes e vales (mais a montes do que a vales), as quintas e casebres, as aldeias próximas ou remotas, levaram o sal ou a sardinha, à cabeça ou aos ombros, em carros de bois ruminando distâncias ou em jumentos resvalando nos pedregulhos. Alimentaram pobres e ricos quando a carne era luxo e as jornas mal davam para a sonhar. Misturaram o sangue com os autóctones e com os de além-Minho, criaram filhos e netos nesta fogueira de Verão quando acaba a Primavera e neste Inverno de gelo quando os vinhedos amarelecem e por cá andam nos nomes e nas caras com quem nos cruzamos no dia-a-dia.

Nesta hora de Festa, de amor e devoção à nossa Padroeira, é acto religioso lembrarmo-nos de quem nos ajudou a (re) criar o chão, a fermentar o sangue e a moldar as consciências.

Sem pretender adornar ou moralizar a saga duriense, lembremos, aos de hoje, os de ontem, e recordemos que o IMORTAL Escritor do Douro  - João de Araújo Correia - foi o único que soube retratar e elevar à verdadeira dimensão do seu esforço a gesta heróica deste povo: os de cá e os de fora que aqui se criaram e morreram libertando as almas por estes MONTES PINTADOS.

Quem desejar a abundância dos pormenores históricos que lhe leia O SEM MÉTODO e PALAVRAS FORA DA BOCA. Lá estão os vareiros e os galegos (lá estamos nós todos) na genuinidade rácica e na miscigenação sem adulterações.

- M. Nogueira Borges, Abril 1993, in Boletim da Festas de Nossa Senhora do Socorro.


 *Manuel Coutinho Nogueira Borges  é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
  • Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue.
Clique nas imagens para ampliar. Texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Relendo: Em tempo de Festas de Nossa Senhora do Socorro recordo Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Crónica sobre duas pessoas que marcaram nossas vidas. Lembrando-os sentimos que estão (e estarão) sempre presentes!

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994. (Atualização)

Conheci-o em Porto Amélia. O meu destacamento, sediado em Quelimane, viera substituir uns "cocuanes"* que estavam de regresso à Metrópole. Para trás deixava a luxúria dos palmares de Penabe, o esmagamento das infindáveis plantações de chá do Gurué, o silêncio e os ruídos da selva esplendorosa de Mocubela ou Maganja da Costa, a confraternização da boa gente da capital da Zambézia.


Foi em Março de 1968. Em Lisboa, Salazar ainda não agonizava, e Marcelo Caetano repartia o seu tempo entre a Faculdade de Direito, a reescrita do seu Manual de Direito Administrativo e o seu escritório de jurisconsulto ali para os lados da Rua do Ouro, mal sonhando que, em finais desse ano, ocuparia S. Bento para assistir, num desterro brasileiro, ao funeral do Império. Em Lourenço Marques, a Polana estava cheia de sul-africanos e os ecos do Norte mal chegavam às esplanadas.


O Jaime Ferraz Gabão era, a par da sua actividade profissional numa empresa algodeira, o correspondente, para o distrito de Cabo Delgado, do mais prestigiado jornal Moçambicano - o Diário de Moçambique** - e criava, semanalmente, uma página regional onde dava oportunidade a jovens colaboradores. Uniu-nos a paixão pêlos jornais. Essa afinidade gerou entre nós uma profunda estima e, com o tempo, à medida que nos íamos conhecendo, uma amizade tão grande que, ainda hoje, à distância de vinte e seis anos, nem sei como definir.


O Jaime era uma alma generosa e não queria morrer com remorsos nem deixá-los aos vivos. Abandonara a Régua quando os seus sonhos se desfizeram e a realidade que os seus olhos contemplavam era tão crua que não hesitou quando um velho amigo o convidou para abalar até às paragens do indico.


Feito, posteriormente, o reencontro com a Mulher que sempre o acompanhou até ao fim dos seus dias, o meu saudoso amigo ganhou a paz a que todo o ser humano tem direito quando se está de bem com Deus e os seus semelhantes.


África dera-lhe a razão da vida e a justificação para a partilhar. Sob o tecto africano, nos dias abrasadores ou nas noites do cacimbo, o Jaime consumia e retemperava as energias de um homem que, no nosso Douro, herdara o amor do trabalho honrado. Nunca foi patrão nem capataz, nunca ostentou ou humilhou, nunca cortejou poderosos nem desprezou deserdados, nunca separou brancos de um lado e pretos do outro. Amou a África porque a África - caros leitores - é encantamento deslumbrante, um chamamento emocional que arrebata, uma sedução tão arrepiante que não há palavras para a descrever, só sentindo-a, calcorríando as picadas inóspitas e engolindo o seu pó, bebendo água do coco ou dos pântanos solitários, aganando sob o fogo do seu sol ou tremendo nas suas madrugadas de névoa.


Eu entrava em casa do Jaime Ferraz Gabão sem bater à porta, sentava-me à sua mesa sem perguntar onde era o meu lugar, conversávamos horas sem fim no deleite do entardecer, íamos e vínhamos pelas ruas e cafés de Porto Amélia com a naturalidade de quem vivia o tempo todo na fruição plena da fraternidade e as areias da praia de Wimbe já conheciam os nossos pés nas manhãs de Domingo.


Findo o meu tempo de serviço militar regressei à minha aldeia e o Jaime por lá ficou. Ainda recordo, comovido, as nossas lágrimas de despedida.


Um dia, nas sequelas da tal exemplar descolonizaçâo, ele voltou, também, às suas origens. Foi um trauma de que nunca se curou. Aquilo foi como uma traição que, na sua boa fé, não contava; um murro medonho na esquina da sua vida, na pureza da sua certeza patriótica. Desgastado e amargurado, vendo, mais uma vez, o seu ideal a fugir-lhe, mastigou em seco muitas desilusões e incompreensões. Pertencia àquele tipo de homens que não tem pele de elefante porque cultivava a franqueza e a capacidade de perdão. Custava-lhe a ruindade à sua volta, os anátemas dos retornados, a indiferença por uma terra e por uma causa que interiorizara tão profundamente que alturas tinha em que já não sabia se as raízes eram mais fortes - ou mais fracas - do que as saudades dolorosas dos batuques, do cheiro das queimadas, dos dias em mangas de camisa, da leveza das brisas da baía de Pemba, do carregado das trovoadas no mato, do odor a catinga ou dos gritos da hiena sem companhia.


O jornalismo enganou-lhe as recordações, sublimando-as em descrições sempre apaixonadas mas nunca desonestas. Sabia que um jornal, fosse qual fosse o seu dono, não era um palco de propaganda, nem um púlpito de ressabiados pessoalismos, nem um ócio de frustrados a envenenarem relações, nem um palanque onde os vencidos políticos ruminassem vinganças. Praticou um jornalismo de transparência porque não ocultava o relevante e, quando assumia a opinião, não ofendia sentimentos nem provocava a consciência alheia. Tinha a educação herdada do berço e cultivada no pragmatismo do quotidiano. Escreveu muitas páginas de memórias das terras e das gentes por onde andou e viveu sem verbalismos ou maniqueísmos. Viveu o dilema dos que, conhecedores dos largos espaços, se ressentem, sofrídamente, das estreitezas dos horizontes, onde, afinal, a poesia da alma se reflecte no limite dos muros da indiferença das coisas e das pessoas. Sem sabedorias arcádicas ou carreiras/academistas, mas possuidor de um entusiástico autodidactismo. O Jaime Ferraz Gabão transformava a simplicidade escondida na mais bela descoberta. Homem solidário, condoía-se de um pé descalço e não dominava as revoltas do seu sangue. Se é preferível a responsabilidade dos gestos que não praticamos porque outros nos impedem aos que não fazemos porque a eles nos recusamos, o Jaime culpava-se de todas as injustiças do dia a dia da vida. Era um espírito em permanente responsabilização e nunca contente de ver realizar-se o que se deve. Se aqui recordo o Jaime Ferraz Gabão neste livrinho das Festas em Honra de Nossa Senhora do Socorro, onde ele sempre colaborava com alegria, não é só para que conste, mas também para implorar à nossa Padroeira que, não se esquecendo de todos nós - os vivos - não olvide o meu querido e saudoso Amigo que, na Fé, viveu sempre, mesmo quando a morte já lhe rondava os passos.

- Por M. Nogueira Borges – Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro de 1994 (“recorte” cedido gentilmente por J A Almeida).

* - "cocuanes" termo adaptado do idioma macua e que quer dizer velho(os), no caso: "...viera substituir uns militares mais antigos".
**retifico - Jaime Ferraz Gabão era correspondente e distribuidor para Cabo Delgado do Diário de Lourenço Marques com sede em Lourenço Marques, atual Maputo. Embora colaborasse eventualmente com outros jornais moçambicanos e portugueses, o Diário de Moçambique estava sediado na cidade da Beira e, se a memória não me falha, seu correspondente para Cabo Delgado era o também saudoso Administrador Zuzarte.
  • Sobre M. Nogueira Borges;
  • Jaime Ferraz Rodrigues Gabão citado no portal do Sport Club da Régua - Aqui!
  • Cartal de Longe - Lembrando o cidadão e  o jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
  • UM DE NÓS - Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Aqui!
  • Várias 'ligações'(post's) que comentam Jaime Ferraz Rodrigues Gabão - Aqui!
RECORDANDO... Por Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, a propósito das Festas de Nossa Senhora do Socorro

Em Memória de Jaime Ferraz Gabão - Por M. Nogueira Borges – Publicado no boletim de Festas de Nossa Senhora do Socorro – Peso da Régua - 1994.


Clique  nas imagens para ampliar. Imagem de M. Nogueira Borges de autoria de J. L. Gabão. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012 e em homenagem a meu saudoso Pai JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO e ao estimado Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. O texto de M. Nogueira Borges é cortesia do Dr. José Alfredo Almeida, também Amigo prezado destas personalidades da Régua e do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Uma crónica intemporal - Era em Agosto…

*M. Nogueira Borges
Era em Agosto com as águas deslizando para as hortas, os vinhedos repletos de verde e de doçura, os homens de coletes a tiracolo e sacholas pelos ombros, as mulheres mastigando broa e encolhendo ciúmes, as crianças a jogarem às escondidinhas no adro da capela e nas curvas dos quelhos, os cães e os gatos a barafustarem nos terreiros do casario perseguindo galinhas e garnizés, o bêbedo de sempre arrancado à taberna pelo filho desgostoso ou pela mulher já habituada.

A tarde acabava assim, com o sol a morrer devagarinho por detrás das montanhas, uma fresca macia alegrando as almas, os velhinhos do Asilo a derreterem minutos para a ceia e o médico a abandonar a Casa do Povo.

A menina senta-se ao piano e os seus dedos brancos deslizavam suavemente pelo teclado.

As Rosas da Despida desfolhavam-se em emoções e os sons espalhavam-se pelos corredores e escapuliam-se, serenamente, pelas janelas abertas, flutuando no silêncio da noite como fantasias de crianças. Ecoavam além, nos contrafortes dos montes ou no fundo do vale a quem os antigos chamavam poço do vinho.
Era Agosto e as festas do Socorro anunciavam-se. As ornamentações engalanavam as ruas, os carrinhos e os carrocéis enchiam a Alameda e as iluminações não deixavam sombras para namorar. Quando as lâmpadas desenhavam o campanário da Igreja do Peso muitos olhos se desviavam lá para cima a ver se os Remédios já cintilavam.

Era um tempo em que a perseverança não se excepcionava e a terra cavada com suor dum esforço ancestral tinha uma história feita de lendas e as gentes sonhos sem fim onde se recriavam a habitualidade, se espevitavam futuros, se diversificavam motivações e se engrandeciam espaços.

As Festas do Socorro eram um compasso de espera na roda do tempo e do trabalho, estreias de fatos e vestidos, arranjos de cabelo nos salões da Vila que a Régua ainda não era cidade de nome.

Era a romaria dos desenraizados do litoral em retorno aos almoços de cabrito assado e arroz de forno nas mesas familiares. As estradas enchiam-se de carros e de excursões, os comboios fumegavam na Estação, um mar de gente inundava a princesa do Douro e todos eram conhecidos.

Havia crianças ao carrachol e idosos amparados a bengalas, cantadores de chulas, tocadores de realejos, bombos, ferrinhos e concertinas. Dançava-se no meio das ruas e em todos os cantos onde o pó escondia feições.

Os rapazes sopravam em cornetas de barro, mercavam-se panos, mantas e potes para a vindima, voavam ilusões sobre o murmúrio humano, as gargalhadas estrondeavam, avinhadas, nos tascos e cafés, à mistura com o tilintar dos copos, e as tristezas estavam trancadas nas casas vazias das aldeias em redor.
Era em Agosto e, quando a Senhora do Socorro se passava, no andor florido, por entre alas de bombeiros e anjinhos, a multidão esquecia a profanidade e ajoelhava-se em silêncio de Fé encomendando promessas, gemendo aflições e cantando alegrias. A Senhora a todos sorria numa magnanimidade de ternura e perdão que marejava os olhares dum povo cheio de memórias de sacrifício glosadas por poetas e prosadores.

Era Agosto e as uvas amadureciam à espera dos cestos…
- In  Boletim das Festas de Nossa Senhora do Socorro.


*Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.
  • Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue.
Clique nas imagens para ampliar. Texto e imagens cedidas pelo Dr. José Alfredo Almeida. Fotos de Miguel Guedes. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012 e em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O UNIVERSALISMO DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIA

M. NOGUEIRA BORGES

João de Araújo Correia é, definitivamente, um vulto saliente do neo-realismo português que faz, quanto a mim, a perfeita justaposição entre o naturalismo concreto e um superior regionalismo que ultrapassa os limites do espaço onde a sua obra se realiza. É visível a ligação ficcionista do meio rural ao urbano através da sua actividade de cronista e palestrante nos ambientes citadinos e também (ou acima de tudo), nos seus contos, onde a aristocracia em decadência de regime e a ascendente burguesia se degladiam, surdamente, na expectativa dos melhores bocados, saltitando entre a terra produtiva e a urbe gastadora em azáfama de fim de ciclo.

É na sua matriz regionalista que, todavia, João de Araújo Correia atinge a pujança determinante do seu carisma. António José Saraiva e Óscar Lopes, na sua “História da Literatura Portuguesa”, distinguem-no: “(…) assimila à mais correntia e elegante prosa a fala oral dos seus aldeãos, e tornou-se capaz como poucos de organizar a narrativa de modo a dispensar a mínima nota judicativa extrínseca à acção, convertendo muitas vezes o próprio narrador rural da primeira pessoa em personagem bem caracterizada e que se mexe à nossa vista.”

A sua obra contém uma marca que sempre me impressionou: um elevado sentido ético, um enorme respeito para consigo e para com os outros; a preocupação de não inventar o verbalismo normalmente associado à incapacidade de (re) criar o enredo; o esforço pelo apuro linguístico e pela verdade da tradição do seu povo. A sua obra é o espelho da simbiose por muitos tentada e não conseguida: a identificação entre o Escritor e o Homem da (con) textura literária e da insígnia cívica. Não há fingimento ou disfarce entre a escrita e o ser que a expressa, aquela dualidade que, muitas vezes, acontece entre a áurea literária e a pequenez humana, entre as tiradas de fraternidade e a frieza e o egoísmo do nome que titula os livros.

Há quem, ao debruçar-se sobre a obra de um Autor (na globalidade da sua estrutura), se preocupe em decifrar ao milésimo os fonemas das palavras, os pormenores da pontuação, a concordância gramatical, a originalidade de coisas novas ou a novidade perante coisas velhas, o ritmo da composição, o estilo que é o cunho do escritor, a intimidade psicológica da sua definição, a distinção entre a forma e o fundo, a beleza estética entre a moldura e o conteúdo que naquela se delimita. João de Araújo Correia não foge a nenhuma exigência, suporta todas as equivalências e dimensiona-se em todas as características críticas.

Aqueles que o apelidam de escritor exclusivamente ruralista pecam por imprudência e precipitam-se na apreciação redutora. O ruralismo não é - bem se sabe- qualidade que calhe a todos. Dir-se-ia, até, raridade que só a pente fino se apanha. Numa sociedade enlatada, plastificada, computorizada e robotizada, escrever-se com e pelo povo é literatura que muitos depreciam por inabitualidade cultural ou presunção elitista. Mas não só hoje. Ontem, um ontem onde muitos românticos se excepcionam, a ficção rural surgiu como uma tipocromia que a muitos pareceu uma revelação pitoresca de uma criação restrita a uma determinada extensão geográfica.

João Araújo Correia rompeu essa esfera local, transportando, para além dos Montes, a saga duriense num eco de genética universalidade. Foi porta-voz e protagonista dos sacrifícios de uma raça que ergueu com sangue, suor e lágrimas a mais bela arquitectura geodésica; ilustrou para o mundo que sabe pensar e amar as grandezas ou as misérias (que também as há em qualquer nobreza) de gentes heróicas ou velhacas, joviais ou taciturnas, francas ou mangadoras, decadentes ou evolutivas, directas ou evasivas, supersticiosas ou desembaraçadas – retrato de qualquer povo em qualquer atlas actual ou passado.

João Araújo Correia escreveu não para ter nome, mas para o dar aos outros, para dar voz a quem não a tinha. Esticou as horas num desinteressado esforço para que as cinzas nos nossos lares nunca se apagassem; para que, em nenhuma parte do mundo, ninguém roubasse a gesta da nossa experiência e as gerações soubessem (saibam) que o sofrimento aqui não é diferente do de qualquer sítio onde não morre o lume da esperança que nos ilumina.

João de Araújo Correia recusou, por feitio e formação, a propaganda das ideologias culturais que alcandoram os apaniguados a símbolos da consciência nacional; afastou-se, por visceral repulsa, de todas as franjas onde se misturam o sofisma da (in) dependência com a mistificação da (im) parcialidade; não foi atracção de luxo em palcos de concentrações de massas, nem deixou que a sua palavra servisse de bandeira para fins diferentes do da Arte: a comunhão entre os homens no respeito pela diversidade.

Nasceu e morreu no chão que o modelou, resistiu à tentação das entronizações, ficou no seu canto sabedor de que, depois da passagem física do ser, é sempre a eternidade da sua memória criativa que resta. Voou longe como uma ave sem gaiola; pousou nas árvores da sua paixão e revoltou-se contra quem as cortou; conheceu os beirais da sua terra porque peregrinou pelos miradouros do sonho; ouviu, nos catres da doença, os gemidos anunciadores da morte e por isso exaltou a vida sem deslealdades.

Nota: Este excelente texto de análise sobre o carácter humano e a obra  “universal” do escritor reguense escrito por M. Nogueira Borges, foi publicado no jornal "O Arrais", do Peso da Régua, em 13 de Julho de 1995.
Clique nas imagens para ampliar. Sugestão de texto e imagem feita pelo Dr. José Alfredo Almeida (Jasa). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012 em homenagem de saudade ao Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Permitida a copia, reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue só com a citação da origem/autores/créditos.