sexta-feira, 27 de novembro de 2009

COMANDANTE CARLOS CARDOSO - O livro

UM CIDADÃO DE MEDIDA GRANDE (Prefácio)

Esta edição é dedicada à personalidade de um homem de carácter e de um cidadão que aceitou a missão de liderar o corpo de bombeiros da sua terra, embora nada conhecesse sobre a realidade específica dos “soldados da paz”.

Ciente da responsabilidade que assumira, elegeu a sua formação e a formação dos seus homens como prioridade, bem como passou a ser o primeiro a responder ao alarme da sirene do quartel. Justificava esta sua atitude dizendo que “O respeito dos subordinados conquista-se, não se impõe”. O mesmo é dizer, praticava a hierarquia do exemplo.

Ao longo dos 31 anos em que exerceu o comando do corpo de bombeiros da Associação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, estabeleceu sempre com os seus homens uma relação de grande humanismo e proximidade.

“Ao abeirar-se de qualquer pessoa em vista de alguma tarefa, fazia-o de tal maneira que ninguém juntava coragem para se negar. A sua presença no quartel enquadrava-se em espírito de camaradagem e de amizade. Exercia autoridade sem autoritarismo”, escreve o autor desta edição a propósito da liderança do comandante Carlos Cardoso.

Julgo que este livro pode constituir matéria de grande utilidade para a reflexão que urge fazer, relativamente ao exercício da função de comando nos corpos de bombeiros de natureza associativa e voluntária.

Existe uma indisfarçável crise de comando em alguns dos nossos corpos de bombeiros. Esta afirmação, que não agradará aos que se sentirem por ela visados, pode ser demonstrada pelo conhecimento que possuo hoje da realidade dos bombeiros portugueses. Há alguns comandantes para quem o seu corpo de bombeiros é secundário, em comparação com as missões que outras instâncias entendem confiar-lhes. Por isso, há bombeiros que, ao longo de dias sucessivos, não privam com os seus comandantes, que não os vêem nas acções de socorro a que são chamados a intervir, que não encontram espaço próprio para partilhar preocupações, problemas e anseios.

Segundo o autor, “o comandante Carlos Cardoso tinha três paixões, a Régua, os bombeiros e a família”. Uma trilogia que caracteriza bem a matriz genética da história das associações humanitárias de bombeiros, dos seus corpos de bombeiros voluntários e dos homens e mulheres, com e sem farda, que os servem.

Dois anos depois do comandante Carlos Cardoso ter falecido, a edição desta publicação constitui uma justa manifestação de reconhecimento pela obra pública de um cidadão, de um líder e de um bombeiro.

A admiração que o autor revela ter pela personalidade do comandante Carlos Cardoso enriquece este documento, envolve-o numa auréola de paixão, esse extraordinário sentimento que constitui o betão que solidifica esta forma particular de ser bombeiro em Portugal.
- Duarte Caldeira
Presidente do Conselho Executivo da
Liga dos Bombeiros Portugueses

Nota - O livro "Comandante Cardoso" da autoria de Damas da Silva, da Garça Editores, vai ser apresentado dia 28 de Novembro pelas 15H00, no Salão Nobre do Quartel Delfim Ferreira.durante as comemorações do 129º aniversário da AHBV do Peso da Régua.

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Camilo Guedes Castelo Branco: O Comandante Poeta

Encontramos nesta velha fotografia do fotógrafo Noel de Magalhães figuras proeminentes da história da Régua, nos anos 30 e 40, que se destacaram pela sua intensa actividade cívica, cultural e humanitária. Nesta imagem, cruzamos o nosso olhar com o olhar de alguns dos melhores bombeiros: vemos os “patrões” Gastão Mirandela, António Guedes Castelo Branco, Álvaro Rodrigues da Silva e o Comandante Camilo Guedes Castelo Branco (1930-1949), o Comandante poeta.

Destaca-se de entre eles Camilo Guedes Castelo Branco (1868-1949) nascido e falecido na Régua. Este reguense, uma personalidade ímpar, destacou-se em vários domínios da sociedade. Na história, o seu nome ficou mais conhecido por ter exercido o cargo comandante dos bombeiros. Quem com ele conviveu, como Dr. Mário Bernardes Pereira, antigo presidente de direcção, dizia que a sua presença no quartel, situado então na Rua dos Camilos, criava uma atmosfera de respeito e afectividade. A sua dedicação ao voluntariado era de grande generosidade pelo que sua memória permanece viva. As novas gerações de bombeiros podem não ter saber tudo do seu percurso de vida e dos seus valores cívicos, mas já apreenderam que o seu mérito o eleva a categoria dos mais notáveis bombeiros da Associação. Não há ninguém que não deixe de sentir orgulho e respeito quando observa o seu retrato de comandante, garbosamente fardado, que figura numa das paredes do Museu.

Camilo Guedes Castelo Branco fez-se bombeiro aos 17 anos. Alistou-se no corpo activo em 1 de Maio 1889 e aí se manteve até 1949. Aprendeu com alguns dos notáveis bombeiros e fundadores da Associação e partilhou a amizade e muitas experiências com os comandantes os seus antecessores José Afonso de Oliveira Soares e Joaquim Sousa Pinto. Por vontade própria ficou a comandar os bombeiros até à sua morte. Tinha a provecta idade de 81 anos. O seu grande lema de socorro que ensinava aos seus bombeiros traduzia-se na divisa “Vida por Vida” que ele afirmava assim: “Para se salvar uma criatura de uma morte certa, todos temos a obrigação de sacrificar seja o que for, mesmo que sejamos nós próprios”.

Mas, a sua acção não se ficou apenas pela responsabilidade operacional dos seus bombeiros. Se a Associação não chegou a “morrer”, no início do século passado, deveu-se em muito à sua determinação. Para a manter viva e dinâmica trabalhou muito num momento em que atravessou uma grande crise. Durante os anos de 1910-1920, quando a Associação se encontrava sem meios económicos para manter abertas as portas do quartel, situado no Largo dos Aviadores, não descansou a mobilizou os bombeiros e a sociedade civil, para encontrar garantir a sua sobrevivência. A ideia de criar um grupo cénico composto por bombeiros para fazerem espectáculos de teatro deu resultados positivos. Com as receitas obtidas conseguiu angariar o dinheiro que necessitava e evitou que o Corpo de Bombeiros não fosse extinto e o seu pouco material que tinham devolvido à Câmara Municipal. Outra relevante acção que realizou como comandante foi a de ter montado no Asilo José Vasques Osório, em 1918, um hospital onde os bombeiros da Régua socorriam e prestavam cuidados de saúde aos doentes afectados pela gripe pneumónica.

A partir de certa altura, teve a ajuda dos seus filhos, a quem soube incutir a mesma paixão pelos bombeiros. O Jaime Guedes distinguiu-se como director, chegando a ser presidente da direcção e da assembleia-geral. Defendeu a construção de raiz de um quartel para os bombeiros, o que possível dar início quando fez parte de uma vereação da Câmara Municipal, em 1930, liderada pelo Dr. Mário Bernardes Pereira. O António Guedes sobressaiu como bombeiro, atingido o posto de “patrão”. Lourenço de Almeida Medeiros escolheu para seu 2º Comandante. Deixou o seu testemunho como bombeiro ao escrever as suas memórias que publicou no jornal “O ARRAIS”, evocando factos históricas esquecidos, relatos de incêndios urbanos e a acção de alguns homens coragem.

Mas, este homem distinguiu-se ainda como político, jornalista e escritor, mais dramaturgo e poeta. Como politico foi várias vezes o Administrador do Concelho, nomeado pelo partido republicano. Soube influenciar a vida cultural e política da sociedade do seu tempo pela defesa moderada dos ideais da república (aderiu com o Dr. Antão de Carvalho que foi primeiro presidente de câmara da Régua republicano e Ministro da Agricultura) e fez parte do movimento social de apoio aos ex-combatentes portugueses, sendo o presidente da Junta Patriótica do Norte.

Como dramaturgo, uma sua peça de teatro fez sucesso representada por um grupo de actores amadores. A opereta “As Andorinhas”, musicada por Almeida Saldanha, alcançou êxito onde foi levada a cena, desde o antigo Salão Recreativo, na Régua, até ao Teatro Sá da Bandeira, no Porto. Apreciada pelos reguenses chegou a ser representada por três gerações: avós, pais e netos, “sempre com muito brio e entusiasmo, como se passassem uns aos outros um testemunho de ouro”.

Fez jornalismo numa época difícil, de tumultos, motins e muita agitação social na região duriense. Fundou e dirigiu os jornais “A Folha”, “O Dissidente” e “Cinco de Outubro”. Nas páginas dos dois últimos, os paladinos Douro escreverem artigos de opinião a reclamarem uma solução para os problemas dos viticultores durienses. Parece que os tempos de crise se repetem, os lavradores do Douro sofrem actualmente uma crise social idêntica. Há sinais de preocupação que no pensamento do escritor Miguel Torga mereceram esta profunda reflexão: “O Douro necessita de ser olhado pela nação como o seu Olimpo sagrado, o chão bendito que produz a única riqueza de somos senhores exclusivos: o Porto que o mundo assim conhece e saboreia, imita em todas as latitudes sem nunca o igualar. Mas esse carinho pátrio tem de começar pelo oficiante de mãos calosas que espreme os xistosos até os fazer ressumar. É ele, nunca presente nos salões dos congressos, nunca farto de banquetes oficiais, nunca tido nem achado nas reformas e nos decretos, que deve ser chamado à ribalta para expor as suas necessidades e formular as suas queixas. Para desdobrar diante dos olhos da justiça o sudário da sua crucificação. Porque se nas Sagradas Escrituras tudo começa pelo Verbo, no livro da pedra da nossa região bem amada a lição é outra. Aqui, no princípio era o homem: o homem duriense.”

Mas, na verdade, foi como poeta que mostrou o seu maior génio criativo. Deixou uma obra editada, o livro de poesia “Fraternalis Dolor”, um inédito com o título “Arias Sertejanas” e muita poesia dispersa em jornais. Abordou nos seus versos a figura dos soldados da paz e a beleza cénica região duriense. Na poesia “O bombeiro” evoca o seu lado anti-herói, onde há o dever de salvar das chamas do fogo uma criança. Numa outra, a “Marcha da Régua”, gravada na voz de Sandra Botelho, fala dos encantos da paisagem vinhateira da sua terra natal.

No livro “Lira Familiar” (de 1976), João de Araújo Correia inseriu uma poesia “Instantâneo VI”, de Camilo Guedes Castelo Branco, publicada no “Jornal da Régua, em 1937 e assinada com o pseudónimo de Gil Vaz, em que foca o autor do livro. Em nota final, desse livro, o escritor duriense acrescentou a seu respeito um insuspeito elogio: “Poeta lírico de altíssimo talento, pedem colectâneas, há muitos anos, os seus dispersos. Com eles se poderia formar um delicado ramo de flores”. Correspondeu-se também com o poeta Guerra Junqueiro que lhe dirigias as cartas chamando-o de “caro colega”.

Umas breves notas da sua biografia foram escritas por Manuel António, correspondente local do extinto jornal “O Comércio do Porto” que, por traduzirem a grandeza moral deste homem, se passam a citar: “Nasceu em Peso da Régua, numa casa do Adro do Cruzeiro, em 14 de Março de 1868. Desempenhou sempre as funções de notário – adjunto, sendo funcionário distinto e sabedor. Poeta, jornalista e escritor dramático, colaborou em todos os jornais que se publicaram nesta vila e em alguns diários de Lisboa e Porto. Em 1890 fundou na Régua, juntamente com o poeta Hamilton de Araújo, um semanário literário intitulado “A Folha”, que teve pouca duração. Mais tarde fundou “O Dissidente” e depois “O Cinco de Outubro”, de feição republicana moderada. Por duas vezes, e durante alguns anos, na vigência de ministérios de concentração desempenhou com muito brilho e a contento de todos, as funções de administrador do concelho tendo, com a sua política de apaziguamento, terminado com as violências políticas que por vezes aqui se praticavam. Criatura deveras bondosa e modesta, falava primorosamente e sempre de improviso. Alguns dos seus discursos constituíram verdadeiras jóias literárias. Publicou um livro de versos intitulado “Farternalis Dolor” e deixou escrito um outro livro denominado “Arias Sertanejas”, que não chegou a publicar. Escreveu centenas de poesias e sonetos em vários jornais do País, e todos esses versos dispersos, uma vez compilados, dariam uma obra valiosa. Autor de várias obras teatrais, expressamente escritas para o “seu teatro”, foi também autor da linda opereta “As Andorinhas”, com música do falecido e talentoso maestro lamecense Almeida Saldanha, cujo centenário a cidade de Lamego vai em breve comemorar. Esta peça teve muitas dezenas de representações, não só nesta vila como no Porto, Chaves, Lamego, etc., tendo-lhe a critica tecidos os maiores elogios. Bombeiro voluntário deste a idade dos 17 anos. E quando, há muitos anos já, a Associação esteve em riscos de soçobrar, por absoluta falta de recursos, organizou um corpo cénico com elementos da Corporação, o qual dava uma récita mensal e assim conseguiu manter a Corporação. Essas récitas efectuavam-se num armazém da Rua José Vasques Osório, onde hoje está instalado o Asilo e que foi devidamente adequado a casa de espectáculos. Sem isso, a velha e gloriosa Corporação teria deixado de existir. Mais tarde, e quando as finanças da Corporação já estavam nova e firmemente consolidadas, graças a essas récitas, por sua iniciativa distribuía a Corporação, no dia 28 de Novembro, dia do seu aniversário, um bodo a 50 pobres dos mais necessitados desta freguesia. Em 1918, quando da epidemia da pneumónica, por sua iniciativa e ainda com o produto desses espectáculos, foi montado no Asilo Vasques Osório um bem apetrechado hospital onde todos os doentes pobres atacados desse epidemia foram carinhosamente tratados. Possuía várias condecorações e faleceu com 81 anos de idade, em 25 de Agosto de 1949 ainda à frente do Comando da Corporação que tanto amou e tão bem soube servir.”

A AHV prestou-lhe uma sentida homenagem, em 2007. Uma nova ambulância de socorro, que ia ser posta a serviço da comunidade, foi baptizada com o seu nome. Na cerimónia estiveram presentes os seus descendentes para testemunharem este singelo reconhecimento de uma nova geração de homens. As palavras de agradecimento que proferiu a sua bisneta Maria Teresa Castelo Branco comoveram os presentes. Vale a pena recordar o que disse: “Estou certa de que gestos como estes, ao contribuírem para consolidar laços com o passado, avivam no presente a necessidade de seguir a lição dos que deram algo de si à nobre causa dos soldados da paz, tal como fez a seu tempo, o meu bisavô, Camilo. Num tempo em que a amnésia colectiva nos parece afastar das nossas raízes, esta homenagem, para além de ser uma honra para a família, é pelo simbolismo, a prova que a corporação que V. Exª dirige, soube resgatar do esquecimento o exemplo de uma vida de entrega a uma causa nobre. Agradeço, pois, comovida, esta oportunidade de trazer até nós e sobretudo aos meus filhos a figura do meu bisavô Camilo Guedes Castelo Branco”.

A história do Corpo de Bombeiros da Régua não se faz de só pequenas coisas. Ela faz-se da vida e da obra de grandes homens, como era o Comandante Camilo Guedes Castelo Branco, que com o seu exemplo, permite ter muito orgulho no passado e olhar o futuro ainda com mais ambição para os bombeiros do actual século.
- Peso da Régua, Novembro de 2009, J. A. Almeida. (Nota: Peso da Régua, 29 de Junho de 2010: Este texto constitui uma versão revista e ampliada da anterior aqui publicada.)

O Bombeiro
No silencio da noite, de repente,
Erguem-se a voz estrídula dos sinos
  num longo baladar
E a distância brilhou, sinistramente,
Um clarão, que tingiu a luz do luar
  de laivos purpurinos.
“Fogo! Fogo!”-alguém diz com aflição.
E logo a pobre gente do lugar,
toda cheia de espanto e de canseira,
Pôs-se a correr, gritando, em direcção
  da medonha fogueira.

O incêndio crepitava
e, batido do vento, devorava
Uma pequena casa arruinada.
E, perto, uma mulher d`olhar aflito
erguia as mãos ao céu calmo e infinito
a chorar e a gemer desesperada.
Ali, em meio da fogueira, tinha
essa mulher um filho, a criancinha
mais bonita da velha povoação,
e o fogo, em seu horrível avançar,
iria dentro em breve transformar
o seu pequeno corpo num carvão.

Metia dó a pobre mãe! Mas como
Salvar-lhe o louro e cândido filhinho,
  se a labareda e o fumo,
num espantoso e horrível torvelinho,
ameaçam devorar rapidamente
quem se abeirar dessa fornalha ingente?

Podes chorar, mulher! ninguém te acode.
Chora, que és mãe; mas vê que ninguém pode
esse anjinho das chamas libertar.
Olha: em meio da tétrica fogueira
anda a morte, feroz e traiçoeira,
  a acenar, a acenar…

Mas nisto, junto ao prédio incendiado
surge um homem soberbo de valor.
A multidão ansiosa solta um brado
  de espanto e terror.

Ele caminha sempre com firmeza
e a intrepidez estóica dos heróis;
escala a casa em chamas com presteza,
escala a casa em chamas…e depois…
  depois desaparece.
E a pobre mãe aflita cai de bruços
A murmurar baixinho, ente soluços,
  Uma prece…

Na multidão, silêncio. Só se ouvia
um secreto rumor, que parecia
o palpitar de muitos corações…

Senhor! És pai e cheio de bondade!
estende lá do azul da imensidade
O teu olhar repleto de perdões!

E eis que em meio trágico do braseiro
surge a figura altiva do bombeiro
Trazendo ao colo o pequeno ser.
Passou…desceu…e dentro em pouco, ansioso,
depositava o fardo precioso
no regaço da pálida mulher.
- Poesia inédita do Comandante dos B V Peso da Régua, Camilo Guedes Castelo Branco (1930-1940.
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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos IV e V


Não Matem a Esperança - Capítulo IV
A cabeça inclinava-se para a frente, imóvel, sem o mínimo trejeito, o que tornava a sua corcunda mais pronunciada. Os olhos grandes, circundados por lívidas olheiras, eram dois candeeiros volantes que se destacavam débilmente daquele conjunto alvacento que as longas barbas formavam com a sua devastada cã. A cobrir-lhe a camisa, sujíssima, um casaco coçado, cheio de nódoas, bolsos rotos, um dos quais continha um pedaço de pão recesso, que a macienta mão daquele velho defendia ciosamente. As calças fendidas, nos joelhos, mostravam a magreza das suas pernas, que facultava a antevisão dum corpo sóbrio de carnes e abastado de ossos. Completavam a sua paradoxal indumentária uns sapatorros gastos e esburacados.

Fora assim: à luz duma noite, aquela estátua de homem moldada pelas mãos da vida, zurzida pelas surpresas do mundo. E, agora, voltava a vê-lo. Aproximava-se. Os seus passos eram concisos. Sentiu desejo de ir ao seu encontro, abraçá-lo e dizer-lhe: «Aqui me tens! Diz se precisas de mim!». Aquele velho, indiferente, passou, desprendido, absorto, como se no mundo só houvesse ele, atento ao lajedo do passeio que os seus pés calcorriavam apressados. Segui-o. Viu-o agachar-se e agarrar uma perisca. Correu para ele e ofereceu-lhe cigarros.

- Tome; Fume daqui!
- Pedi-lhe alguma coisa?
- Não, mas...
- A mim nunca ninguém me deu nada! Não é agora que vou aceitar! Não preciso de nada!

Estático, meio atarantado, deixou-o desaparecer, curvado, investigando o chão.

Não Matem a Esperança - Capítulo V
Chegou lá cima cansado e o suor a escorrer-lhe do corpo. A garganta ardia, a cabeça latejava como marteladas compassadas de martelo-pilão. Com cospe e o lenço limpou reticenciados de sangue que, ao longo da subida, as silvas tinham escrito nas partes dos pés que as sandálias não protegiam e a que algumas moscas se entregavam já inebriadas. Arrancou meia dúzia de giestas e sentou-se. Reclinou-se lentamente até se estender todo. Deixou-se estar. Olhou o céu: cinzento, dum cinzento negral, a acariciar os cerros dos montes. À sua direita, o sol sorri-lhe por entre as folhas. O ar do restolho, pinheiros e eucaliptos, alegra-o. Sôfrego, aspira-o bem para dentro, como a querer levá-lo ao fundo de si mesmo. Estorninhos esvoaçavam, uma toutinegra canta, escondida na copa de alguma árvore. As moscas nem aqui o largavam, mas quanto mais conhecia os homens mais adorava as moscas.

Lá no fundo, o rio, num S tipográfico, corre preguiçoso e envergonhado e quase seco. No outro dia andou lá com a malta e nem sequer se molharam. «Ingrato! No Verão não nos tiras o calor, mas no Inverno, se te der na real gana, até as casas nos levas!» - Isto diria aquele campónio, em frente, dobrado para a terra.

Encaixilhados pelos troncos, enormes manchas de vinhedos cobrem de verde montes ondulantes, ora espigando-se para o alto, ora descendo suavemente. Os socalcos, sustidos por paralelas paredes, lembram mastabas egípcias. Aqui e ali, como títeres impassíveis perante tamanha grandeza, casas de fachadas insensíveis, algumas com vestustos brasões a lembrar aos ignorantes que ali viveu gente da grande e à janela das quais alguma jovem enclaustrada sonha coisas lindas, suspira de amor pelo moço da lavoura; outras, insignificantes, à porta das quais alguma criança esfomeada suspira pão; postes com formas de foguetões levam a electricidade às casas dos que a podem ter.

Um ruído característico intromete-se-lhe. Vira-se. Lá vai ele: ronceiro, arrastando-se penosamente na subida de trilhos de linha reduzida. Apita forte, não vá algum distraído oferecer a vida a uma porcaria daquelas. Dobrou no fundo da recta-subida. E aquele pouca-terra-pouca-terra perde-se na distância.

Começa a escurecer. Muda de lugar. Um coelho salta-lhe aos pés. Vai para as rochas. É aqui, diz o povo, que aparece o Titonga. Sim, o Titonga morreu numa luta à navalhada com o Bragão que cumpre agora os vinte e cinco anos de cadeia. «Que luta rapazes! Ah! Caramba! Pareciam dois lobisomens! Até bufavam, pá! Porra! Aquilo metia impressão!». Sim, o povo diz que foi assim. E porquê? Ora... Porquê? «Uns copázios a mais e aí está a desgraça de um home... A cabeça começa a andar à roda, palavra puxa palavra, a família (que não devia ser chamada para nada) é ofendida e pronto...». O Titonga é que morreu. Calhou ser ele. Bem, «ele tamém era umfraca-chiças...». E, agora, a «alma penadinha» do Titonga anda por cá. Por volta das duas da manhã é que ele aparece nestas fragas. Houve já quem lhe falasse. Os guardadores de vinhas que vêm até aqui passar pelo sono, já todos o ouviram dizer: «Olhai rapazes, aquele que me matou está agora a sofrer enquanto eu sou feliz». Houve um daqueles, o Fernando Verde, que lhe chegou a responder: «Deixa-te lá estar muito tempo sem mim nessa tal felicidade. Eu prefiro esta de cá. E o Fernando Verde criou fama na aldeia e arredores.

O sol vai finando. No ocaso, apenas uma mancha semi-circular dum alaranjado castanho. A terra está em sombra. É a hora dos velhos do asilo virem para o seu passeio desentorpecer os músculos já no fim. Escuta-se mais distintamente, perdida no éter, a algaraviada das crianças. A tigela do caldo com migalhas de pão tornou-as alegres e satisfeitas, mas, logo, ao deitar, adormecerão com a fome a roer-lhes as entranhas. As avé-marias soam no campanário da Igreja, uma Igreja muito antiga e muito velha, amparada por escoras de pinho. No alto, pequenos novelos roxos de nuvens, aquelas nuvens que chegam com a noite para poderem galopar à vontade.

Põe-se de pé nas rochas. Abarca num relance tudo o que se lhe apresenta. Com avidez, absorve o ar já frio, e aí vai ele, coração contente, sorrir às crianças da sua aldeia.
- Continua.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Biblioteca de Maximiano Lemos


Não há ninguém que não saiba que a AHBV do Peso da Régua possui uma magnífica biblioteca, e que apesar de não se encontrar aberta ao público, está ao dispor de qualquer de um, no 2º andar do edifício do quartel. Aliás, em tempos ainda recentes, ela foi a única biblioteca que sucessivas gerações de jovens da Régua puderam frequentar para aí lerem ou levarem para casa os seus primeiros livros.

Mas, poucos devem saber que essa biblioteca tem um grande passado. Embora não pareça pode dizer-se que é muito antiga. Ela começou por existir no primeiro edifico do quartel que ficava no Largo dos Aviadores e funcionou depois no quartel instalado até 1954, numa velha casa da Rua dos Camilos, onde alguém dizia que “havia uma estante de livros sonolentos, perturbados, muito de longe em longe por esporádico leitor.”

A existência da biblioteca foi uma intenção dos fundadores e dos primeiros sócios. Embora o primeiro objectivo fosse a criação de uma companhia de bombeiros, aqueles homens entenderam que se justificava um fim complementar que proporcionasse nos tempos de lazer e de ócio algumas actividades recreativas e culturais aos bombeiros e aos associados. Como havia a intenção de concretizar rapidamente essa ideia, consagraram a sua criação na redacção dos estatutos primitivos, com indicação expressa de que a “associação pode também ser recreativa, havendo casa de leitura (…) quando circunstâncias especiais do cofre o permitirem.”

O historiador José Afonso Oliveira Soares, autor da História da Vila e Concelho do Peso da Régua, fala da biblioteca dos bombeiros, a qual chegou a conhecer pelas suas funções de comandante do corpo de bombeiro. No seu livro, ele afirma que a biblioteca foi inaugurada em Janeiro de 1885, dando-nos conhecimento que ela surgiu “devido a um desejo de um contribuinte e à muita iniciativa e valiosíssimos esforços do Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro, a quem no dia em que foi aberta aos seus associados, se referiram com grande aplauso em brilhantes discursos Paulo de Barros, Afonso Mesquita Chaves e José Joaquim Pereira Soares Santos.”

A biblioteca dos bombeiros, ideia original dos primeiros associados, foi uma prenda oferecida por um benemérito que, por modéstia, não permitiu que seu nome fosse conhecido ou revelado. A ele se deve a concretização da ideia e, apesar do anonimato, merece o nosso maior elogio de consideração e gratidão. Pelo menos, este reconhecimento histórico ninguém o acha injusto. Não sendo possível evidenciar o seu nome, a sua ajuda ficou perpetuada no tempo, com a sua continuidade da biblioteca até aos nossos dias. O grande escritor reguense, uma crónica intitulada “Primórdios”, publicada em Dezembro de 1963, no antigo jornal da associação “Vida por Vida”, comenta esta situação com as considerações seguintes:

“ Pena é que o saudoso historiador da nossa vila e concelho mão tenha nomeado o sócio contribuinte, que tanto desejo ver o nosso quartel espiritualizado com uma livraria. Dizemos tanto desejou, porque o seu desejo moveu a vontade do Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro.

Devemos a um anónimo a fundação, em 1885, da nossa Biblioteca. Se soubéssemos o nome dele, seria obrigação perpetuar-lhe a memória com algum voto condigno. Como não se sabe, imagine-se que foi o humilde benemérito. Algum obscuro artista, amigo da Instrução…

Obscuro não deve ter sido o Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro, propulsor da luminosa ideia do sócio contribuinte. Inscreva-se-lhe o nome numa lápide se não pudermos eternizar-lhe o retrato entre os nossos livros. Devemos gratidão a esse antepassado.

As coisas são como os rios. Têm origem que, embora tímida, nunca é desprezível. A nossa Biblioteca nasceu em 1985.Ninguém esqueça essa data.

Nascida em 1885, só em 1960, em pleno século actual, veio a ser baptizada. Na província, a marcha de qualquer intuição é sempre lenta.”

As palavras do grande escritor duriense mantêm-se plenas de actualidade. Desde logo, elas mostram o carinho que dedicou a esta biblioteca que, ao que sabemos, ajudou a melhorar e a crescer. Pelo que se conta, o nome do seu patrono - o insigne Dr. Maximiano Lemos - deve ter sido uma sua proposta, que foi aproveitada pela direcção do Dr. Júlio Vilela. Pena é que ninguém dos sucessivos directores, tenha dado ouvidos ao seu prudente conselho. Ainda está lembrar, para que o tempo e o esquecimento dos homens não apaguem, o gesto do anónimo benemérito responsável pela criação da biblioteca.

A história da biblioteca dos bombeiros não se resume a este importante episódio. Na década de 60, com o novo quartel em funcionamento, a direcção dos bombeiros decide instalá-la numa sala condigna e baptiza-la com o nome do ilustre médico reguense – e importante professor da história da medicina portuguesa - o Dr. Maximiano Lemos.

Durante as cerimónias do centenário do nascimento deste reguense, em 3 de Dezembro de 1960, o Governador Civil de Vila Real, o Coronel Pinto de Sequeira, que se fez acompanhar do Dr. Fernando Bandeira, Presidente da Câmara Municipal da Régua, do Dr. Júlio Vilela, presidente da direcção da associação e pelo saudoso Chefe Claudino Clemente, preside à inauguração da biblioteca Maximiano Lemos.

Essa nova fase da biblioteca dos bombeiros foi evocada pelo escritor João de Araújo Correia, na crónica “Biblioteca de Maximiano Lemos”, que em Novembro de 1963 escreve para o jornal “Vida por Vida”, da qual transcrevemos uma elucidativa e interessante parte:

“A Biblioteca de Maximiano Lemos, inaugurada em 1960, ao comemorar-se o primeiro centenário do seu ilustre patrono, vai ser enriquecida, no próximo Novembro com uma valiosa colecção de livros oferecidos pela Fundação Calouste Gulbenkian. Diremos, para ser precisos, que vai funcionar, dentro da Biblioteca de Maximiano Lemos, uma das bibliotecas fixas da Fundação Gulbenkian.

Queremos crer que as suas bibliotecas não brigam uma com a outra, antes se auxiliam e completam. A de Maximiano Lemos é uma livraria pobre e livraria velha herdeira da primitiva estante dos Bombeiros e acrescida de alguma oferta particular. Mas, sempre conterá, como velha, embora pobre, alguma espécie rara, útil a estudiosos ou bibliófilos. A da Fundação, constituída por livros em barda e todos em folha, será útil ao comum dos leitores. Será própria para os desbravar e lhe estimular os gostos da leitura.

Uns e outros deverão acautelar-se de inúteis desvios. Não falta quem se aproprie de livro alheio só para o ter ou deixar perder, nanja para o ler e se instruir com ele. É como cultivasse a arte de tirar por tirar.

Ninguém deve esquecer, aqui na Régua, o que aconteceu à antiga biblioteca municipal, fundada pelo Dr. Claudino de Morais, no século passado. Quando, em 1937, houve incêndio nos Paços do Concelho, já os livros tinham desaparecido. Oxalá não suceda o mesmo aos livros da biblioteca de Maximiano Lemos, agora enriquecida com a inestimável oferta da Fundação Gulbenkian.”

Com salienta o escritor reguense na última crónica, a Biblioteca de Maximiano Lemos recebeu, em Novembro de 1963, no seu espaço a Biblioteca Fixa nº 54 da Fundação Gulbenkian que aí funcionou até aos inícios da década dos anos 80. Durante muitos anos, na Régua não havia qualquer biblioteca pública. Não admira que a biblioteca dos bombeiros tenha feito as delícias de muitos adolescentes. Nas férias do verão, aquela biblioteca era o lugar preferido para se lerem os livros de aventuras de Emílio Salgueri e de Jack London, acompanhados pelo sabor de uma cremosa “Bola de Berlim”da Confeitaria Pinheiro e, já mais tarde, escolher os das poesias de Fernando Pessoa. Nem a D. Lurdes, a simpática secretária, com os seus permanentes avisos para não fazerem barulho, os conseguia manter quietos e calados enquanto o desejado livro não viesse parar nas mãos. Bons tempos aqueles… em que se vislumbrava da imponente varanda da sala, nos longos dias de sol, uma paisagem fantástica sobre o rio Douro.

A Fundação Gulbenkian fechou a sua biblioteca fixa há alguns anos. Foi uma pena…para a Régua. Mas, não levou nenhum dos livros desse tempo. Deixou-os nas estantes de madeira da Biblioteca de Maximiano Lemos. Como assim a quisesse ainda deixar viva, apesar de ser velhinha, mantendo os livros antigos e de edições raras. Só não tem os seus leitores como devia e merecia para melhor honrar a memória do seu patrono. Acertadamente, o escritor reguense avisa-nos: “Os livros privativos da Biblioteca de Maximiano Lemos são, quase, todos, livros veneráveis. Contam, de idade, 78 anos. Necessitam de restauro, que só poderá ser feito por especialistas. Embora…É para nós ponto de fé que nos ajudem nesse empreendimento. Merece-o a ideia do sócio contribuinte de 1885.”

Merecem ainda todos aqueles para quem a biblioteca dos bombeiros é um lugar sagrado que guarda os maravilhosos livros que nos fizeram pensar e crescer. Um lugar mágico, onde aprendemos a gostar mais dos bombeiros da Régua.
- Peso da Régua, Novembro de 2009, J. A. Almeida.
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