quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O Quartel dos Bombeiros da Régua - Notas para a sua história

Instalaram em 1880 os bombeiros da Régua o seu primeiro quartel no rés - do chão e primeiro andar de  uma casa d que ainda existe no Largo dos Aviadores. Apesar de não haver informações exactas, mantiveram-se na naquele local até ao final do ano1923, sem aí terem as condições para guardarem o seu pouco material de combate incêndios e os bombeiros não terem condições para prestarem um serviço de socorro de qualidade à população.

Em 1923, durante o as cerimónias do 43º aniversário da Associação, os bombeiros mudavam o quartel para uma velha casa que existiu na Rua dos Camilos – o Cimo da Régua - onde se encontra, actualmente,  construído um prédio em propriedade horizontal. Esse quartel era exíguo e estava instalado numa exigia e velha casa.

Em matéria de operacionalidade, esse quartel seria muito inferior ao primeiro. Por regra, as formaturas de bombeiros faziam-se no meio da rua e “os carros entravam à justa na porta estreita sempre com grande vozearia de indicações e avisos”. Como o quartel era um lugar com espaço disponível e sem condições para os fins de socorro, mas serviu para o convívio dos associados e amigos que aí se reuniam para conversar, jogar as cartas, fazer a leitura de um ou outro livro que se guardavam nas estantes ou pelo prazer de merendar no improvisado bar uns bons petiscos.

É desse tempo, o conhecido quarteleiro e bombeiro Zé Pinto, que tomava conta desse quartel, servindo-se de num minúsculo quarto e, a partir daí, ficou e a dedicar-se à corporação até à velhice. Desde tempo, era o comandante do corpo activo era Camilo Guedes Castelo Branco, um cidadão reguense, reconhecido como poeta e dramaturgo de talento que, quem o conheceu, dizia que a sua “presença criava uma atmosfera de respeito e afectividade”.

Desde a fundação que a Associação ganhava mais prestígio quer a nível local quer distrital e a corporação aumentava os seus equipamentos e o número de bombeiros alistados no seu quadro activo. A construção de um quartel era uma obrigação que se imponha à direcção e ao comando. Apesar dos esforços e inúmeras tentativas dos dirigentes associativos com o poder político de então – o Governo e a Câmara Municipal -  para  resolução desta necessidade não encontravam  vontade nem  qualquer intenção de querem mudar esta realidade,  situação que  prejudicava a missão dos bombeiros.

Os bombeiros não desistiram e não perderam a esperança. Orgulhosos da sua missão tudo fizeram para que esse sonho se concretizasse. Em 1925, o Comandante José Afonso Oliveira Soares, no génio de artista, deu um contributo, ao fazer um anteprojecto de um quartel da sua autoria. Se segundo os seus registos, se este novo quartel, se fosse construído, deveria ser erigido no fundo do jardim municipal, o desaparecido Jardim Alexandre Herculano. O certo é que esse belo desenho, guardado em arquivo, não foi concretizada não tão desejada obra. A razão para tal deveu-se ao facto de não haver vontade politica da autarquia  nem de  a Associação  possuir os  necessários meios financeiros para a pagar a sua construção.

Nessa época, as dificuldades financeiras dos bombeiros eram mais muitas. O relato que o presidente da direcção, Dr. Ernesto José dos Santos, fez nas suas memórias que intitulou “Ao Correr da Pena”, comprova o mau momento que a Associação vivia em termos de recursos. Considera que a Associação estava sem meios e sem actividade, já que “tinha os seus órgãos de execução em mau e deficiente estado económico, faltando-lhe a todos os títulos a diligencia, dinamismo, ponderação e maleabilidade”. Aliás, um outro presidente da direcção, o Dr. Mário Bernardes Pereira, confirmava essas deficiências ao divulgar nas memórias, “Evocação”, o seguinte: “ pouco podia realizar-se naquela casa pobrezinha, onde faltava pecúnia e sobravam aspirações e boa vontade”, Com uma certa mágoa acrescentava: “era injusta a atitude da Câmara para com os bombeiros” porque na sua opinião, “tudo se resumia à concessão de um subsidio mensal demasiado pequeno, em face dos encargos que o município viria a contrair se viesse a organizar os seus serviços de incêndios, no dia em que a Associação, privada de recursos, tivesse de findar”.

Como cidadão e médico na Régua sabia que a associação não se extinguia assim, mesmo por maiores que fossem as crises ou a falta de meios. Os beneméritos que a rodeavam de protecção e ajudas e os seus bombeiros abnegados eram os valores seguros que a mantinha viva e actuante. Aquele seu discurso que reivindicava aos políticos locais ajuda para os bombeiros de nada valeu, pois tudo ficou na mesma por mais alguns anos. Ainda chegou desabafar “ninguém estranhou e nem eu não estranhei”.

Nas primeiras três décadas do século passado, o relacionamento dos bombeiros como poder local foi problemático. Os dirigentes de então sentiram falta de apoio e até um certo desdém pelos destinos da instituição. Se a protecção civil era uma obrigação da autarquia, a falta de verbas fazia com que não fosse considerada uma das suas prioridades. Contudo, a nomeação do Dr. Mário Bernardes Pereira para presidir a Comissão Administrativa da Câmara Municipal, os bombeiros serão finalmente reconhecidos. São-lhe concedidos os auxílios para resolver os seus problemas. Encontrando-se na Comissão Administrativa, Jaime Guedes Castelo Branco, como vogal, que havia sido director da associação e conhecia bem as dificuldades dos bombeiros, foi  ele que elaborou  as propostas  para,  que nas reuniões da Comissão Administrativa,   fosse concedido o aumento do subsídio e a cedência de uma parcela de terreno s para que os bombeiros  edificassem o seu quartel, o que está documentado nas actas das sessões de 12 e 19 de Novembro de 1930.

A proposta para a expropriação amigável de uma parcela de terreno, sito então na Av. da Liberdade – hoje Av. Antão de Carvalho – foi fundamentada nestes termos: “Tendo a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua necessidade imperiosa de um edifício próprio que sirva de quartel e arrecadação de todo o seu importante material de incêndio, que se encontra disperso por vários locais com reconhecidos prejuízos para os rápidos serviços do cargo…”

Na cerimónia solene, realizada no dia 30 de Novembro de 1930, na então Av. da Liberdade, a Comissão Administrativa da Câmara do Peso a Régua fez a entrega pública, ao presidente da direcção, Dr. Ernesto José dos Santos e ao Comandante Camilo Guedes Castelo Branco, de uma “ faixa de terreno, sito nesta Avenida, com cerca de duzentos metros quadrados, terreno que vai ser destinado à construção da sede da mesma Associação”.

Com esta doação, os bombeiros estão em condições de concretizar o seu sonho, o de construir o seu quartel. A sua Direcção mandava elaborar, em 1929, ao conceituado arquitecto Oliveira Ferreira o projecto de arquitectura do edifício e, de imediato, lanço o concurso para a construção da obra. Não há conhecimento se houve mais propostas, mas a empreitada da construção obra foi adjudicada ao empreiteiro Anastácio Inácio Teixeira, mestre pedreiro, natural da Régua.

Iniciava-se a construção do quartel. O momento ficou registado num curioso imagem que permite que observemos a erguerem-se as primeiras paredes e o arco frontal em granito. Esperava-se que a obra fosse concluída num curto prazo, o que não veio a acontecer. Devem ter sido várias as circunstâncias para tal acontecesse. Um erro no valor da proposta apresentada pelo empreiteiro, segundo consta, muito abaixo do valor previsto em orçamento, o qual também estaria errado, fez com que surgissem os problemas. Sem recursos financeiros, a Associação mandou parar as obras. Apenas estavam erguidas as paredes exteriores, mas sem telhado o edifício não podia receber os bombeiros nem guardar o seu material, os carros de fogo e as ambulâncias. 

Custa a crer, mas é verdade! Sem que ninguém faça mais nada, o edifício vai permanecer como obra inacabada até 1954. O quartel vai ficar reduzido a um esqueleto, sem portas, sem janelas e sem telhado. Durante mais de vinte e cinco anos, os bombeiros vão ainda ficar a trabalhar no quartel da Rua dos Camilos.


Para se entender os passos lentos da construção do quartel, recordamos o testemunho do Dr. Manuel Alves Soares, antigo presidente de Câmara Municipal da Régua, que o encontrou nesta situação: “ Aí por volta do ano de 1947, quando por circunstancias varias (…) me vi alcandorado no lugar de primeiro magistrado do concelho, tive ocasião de ajudar no seu arranque definitivo, o edifício inacabado daquela prestimosa associação…Tinha-se erguido um esqueleto de aspecto arquitectónico que prometia brilhar no futuro, mas durante alguns anos assim se conservou, sem portas, sem janelas e sem telhado. Servia unicamente de sentinas públicas mas sem saneamento (…) Logo no primeiro dia e por mera curiosidade, entrei nos baixos, para ver o seu interior que contrastava tristemente com aquela magnifica frontaria tão bem trabalhada, revelando o excelente artista que a tinha concebido. Fiquei indignado e enojado com o que vi! Grandes buracos abertos junto aos alicerces onde se lançavam as mais variadas porcarias e muita gente ali fazia as suas necessidades, e de tal maneira, que o cheiro lá dentro era repugnante e pestilento. Vindo que os bombeiros estavam pessimamente instalados na Rua dos Camilos, e ansiavam por ter a sua sede, tratei imediatamente de contactar a sua direcção, nomeadamente Jaime Guedes (…) no sentido de acabar o quartel”.

Não foi ainda desta vez que se concluíram as obras do quartel. De qualquer forma, esse presidente de câmara conseguiu do Ministro das Obras Públicas, Eng. José Frederico Ulrich, que veio a Régua visitar essa obra e não gostou nada do que viu -  um subsídio  para realizar mais umas obras de beneficiação no quartel. Mas como a verba era insuficiente para acabar a obra e a permitir a sua normal utilização como um quartel pelos bombeiros. Por mais anos, os bombeiros continuaram a fazer o seu serviço num quartel que não dignificava a sua missão e sem condições para prestarem melhores serviços à comunidade.

Em 1954, uma direcção presidida pelo Dr. Júlio Vilela (1954-1963) assume os destinos da Associação tendo como preocupação principal realizar a “primeira e mais premente fase de acabamento” do quartel. Numa hábil negociação política, obtém do Ministro das Obras Públicas, Eng. Arantes de Oliveira – que se fez deslocar numa vista à Régua - um subsídio no montante de 54.000$00,  o qual  possibilitou fazer algumas das obras  necessárias, isto é,  acabar o arranjo das fachadas e fazer todas as infra-estruturas no do rés-do-chão do edifício e primeiro andar do edifício.


Nas comemorações do 75º aniversário da associação, realizadas em 4 de Novembro de 1955, - ainda com uma segunda fase de trabalhos de acabamentos para concluir  - é feita a inauguração do quartel dos bombeiros da Régua.  O senhor bispo do distrito de Vila Real celebrou a bênção das novas instalações.

Finalmente, nesse ano de 1955, os bombeiros mudavam-se de casa. Deixavam, sem saudades, o velho quartel no Cimo da Régua para estrearem o novo – baptizado de Quartel Delfim Ferreira – que tinha todas as condições para prestarem à população um moderno serviço de socorro e de protecção civil.

Mas, em 1980 uma direcção dinâmica, liderada pelo Dr. Aires Querubim (1972-1981), com o apoio do Ministério da Administração Interna, tomava a decisão ampliar o quartel, construindo um novo corpo contíguo ao existente, a imitar rigorosamente a estética do projecto original. O edifício, para além de ficar com uma maior área social e operacional, tornava-se mais espectacular na dimensão das linhas arquitectónicas, fazendo-se sobressair o seu desenho na paisagem urbana da cidade.

Este processo de construção do quartel dos bombeiros da Régua foi demorado, complexo e árduo. Foram precisos muitos anos de trabalho, empenhamento, sacrifícios e, sobretudo, uma conjugação de vontades de gerações de pessoas, para que os bombeiros da Régua tivessem ao seu dispor um magnífico quartel – o Quartel Delfim Ferreira -, uma obra  que cativa a atenção de todos pela  excepcional beleza  da sua fachada principal, embelezada com granitos trabalhados à mão, é que por muitos é considerada a mais bonita  Casa dos Bombeiros Portugueses.

Deve reconhecer-se que o processo de construção do quartel foi demorado, complexo e árduo e cheio de vicissitudes. Foram precisos muitos anos de trabalho, empenhamento, sacrifícios e, sobretudo, uma conjugação de vontades de gerações de pessoas, para que tivessem ao seu dispor um magnífico quartel, uma obra que cativa a atenção pela singular beleza da sua fachada principal, embelezada com os  granitos trabalhados à mão, e  que é  por muitos é considerada a mais bonita  Casa dos Bombeiros Portugueses.

As grandes adversidades vividas pelos directores e os bombeiros foram evocadas pelo Chefe António Guedes. Na sua crónica, “Bombeiros Voluntários: Recordando…”, escrita no jornal O Arrais evoca passagens do o velho quartel da onde serviu como bombeiro e, em especial, de factos relacionados com a construção do novo quartel, para ele considerado, o primeiro e gigantesco passo para a concretização do grande e sublime sonho há muito embalava os velhos bombeiros:

O quartel dos Bombeiros Voluntários da Régua encontrava-se pessimamente instalado no rés-do-chão de uma velha e acabada casa, situada num local imprópria, não só devido à pouca largura da rua como, ainda, pelo transito intenso e continuo que por ela passava.
De facto, na estrangulada rua dos Camilos, quase na confluência com a rua Serpa Pinto, tornava-se extremamente difícil e, por vezes, perigosa a saída das viaturas, as quais eram forçadas a executar lentas e arreliadoras manobras para entrarem ou saírem do quartel. Por vezes produziam-se “engarrafamentos” de trânsito, que davam lugar a aborrecidos atrasos e que eram causados por condutores repontões, que se insurgiam contra nós, atribuindo-nos a culpa do que sucedia.
Era uma arrelia, uma constante dor de cabeça.
Em vista disso, a direcção e o Comando da Corporação concluíram que eram absolutamente necessário, para se acabar com aquele inferno, construir um quartel, embora modesto, mais situado num local amplo e apropriado, no centro da vila. Essa resolução veio precisamente ao encontro dos desejos do Corpo Activo, que se comprometeu (e cumpriu briosamente), a trabalhar para esse seu tão grande anseio se concretizasse.
Jaime Guedes, ao tempo presidente da Direcção dos Bombeiros e simultaneamente vereador da Câmara Municipal, aproveitou essa feliz oportunidade e falou sobre o assunto, com os restantes vereadores – Dr. Mário Bernardes Pereira, Capitão Afonso Alves de Araújo, Alberto Gonçalves Martinho e Dr. Abel Duarte Teixeira de Araújo -  e solicitou-lhe a sua concordância no pedido que em breve iria fazer (…)
De facto, numa das primeiras sessões realizadas, ele apresentou uma proposta, na qual solicitava que o município adquirisse e entregasse aos bombeiros um pequeno prédio, situado na Av. Sebastião Ramires, onde em tempos esteve instalada a Associação de Socorros Mútuos 1.º de Maio, e terrenos anexos, afim dos Bombeiros Voluntários ali construírem o quartel de que tanto careciam.
Essa proposta foi aprovada por unanimidade, demonstrando a vereação, por essa forma, a sua simpatia pela velha e gloriosa Corporação (…)

Mas, Jaime Guedes, não deixou arrefecer o entusiasmo do momento, numa outra proposta, que igualmente foi aprovada, solicitou a concessão, aos Bombeiros, de um subsidio de cinquenta mil escudos, destinado a custear as primeiras despesas da construção do tanto desejado quartel.

Estava dado o primeiro e gigantesco passo para a concretização do grande e sublime sonho que a nós, velhos bombeiros, há muito nos embalava.
Jaime Guedes, filho de bombeiro e irmão de bombeiros, iniciou imediatamente as necessárias demarches, destinadas a levar a cabo essa grande obra, que hoje constitui um motivo de orgulho para a gente da Régua – e que é o modelar quartel dos seus bombeiros.
A planta do prédio foi i imediatamente executada pelo distinto arquitecto Oliveira Ferreira, autor do projecto da capela do Asilo José Vasques Osório, e a empreitada da obra adjudicada ao mestre pedreiro Anastácio Inácio Teixeira, reguense de gema e artista admirável, que burilava a cantaria com primor, o mesmo enlevo e carinho como que as nossas lindas minhotas consagram às suas artísticas e primorosas rendas de bilros.
A sua proposta foi, muito sensivelmente, a mais baixa que se recebeu.
Já o prédio estava muito adiantado quando se constatou, com enorme surpresa e desgosto, que havia errado o orçamento que figurava na sua proposta e que, nessas circunstâncias, não poderia concluir a obra pela qual tanto se interessava e tanto o envaidecia.
Restavam-lhe, pois, duas alternativas:
A primeira, que muito a amigável e sinceramente lhe foi sugerida pela própria Direcção dos Bombeiros, era que parasse imediatamente com a obra e que se tranquilizasse, pois nada lhe seria exigido, - sugestão essa que terminantemente rejeitou.
E a segunda – que ele seguiu sem vacilar – foi concluir a obra, vendendo ou hipotecando os seus modestos bens, para poder cumprir com a sua palavra.
E não houve forças humanas que o demovessem, que o fizessem mudar de ideias.
E assim terminou a obra.
Sabe Deus com que desgosto, com que sacrifício esse homem, já velho e cansado, nessa altura, se despojou de um pequeno património (que levara a vida inteira a construir) para poder cumprir com a sua palavra”.
- Peso da Régua, Novembro de 2009, J. A. Almeida.  Texto revisto em Abril de 2011.
(Clique nas imagens acima para ampliar)

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Não Matem a Esperança de M. Nogueira Borges - Capítulo 1

MÃE: ESTE LIVRO FOI ESCRITO COM LÁGRIMAS, VERDADE E AMOR, NAS TUAS MÃOS O COLOCO.

I
Estirou-se na cama. Cansado, chatiado, triste, muito triste, mais triste que o dia cheio de chuva lá fora.

João era um tipo esquisito. Mesmo antes de ir para África usar arma e camuflado. Sempre fora um idealista. Trincava silêncios poéticos, gemia projectos políticos proibidos, juntava-se a um ou outro da sua condição – até ao momento de ser traído – e conversava longamente, dando murros nas paredes, atirando as pedras dos gritos recalcados. As outras pessoas metiam-lhe nojo. Detestava-lhes a rotina dos gestos e dos actos, a hipocrisia dos fingimentos, o egoísmo de quem quer submeter os outros à sua maneira de viver, ao seu comodismo, à sua falsidade. Achava que elas não viviam. Mentiam. Mas não podia dizer nada, esboçar um protesto. Tinha que calar. As pessoas estavam velhas, preconceituadas, atrasadas em tudo, mas acima de tudo, na cultura e no intelecto. Não sabiam raciocinar ou raciocinavam só para eles, acarretando-lhes a inimizade natural de quem não está para os aturar. Mas calar porquê? Cobardemente? Mas ele não existia só no mundo dos seres humanos. Tinha família e ter família, na maioria dos casos, é um aborrecimento porque uma pessoa tem que se atraiçoar. Refugiava-se dentro da sua concha, como o caracol quando lhe tocam. Vinha para o seu quarto. Um quarto alugado ao mês. Um quarto de uma pessoa única: ele. Ele dentro de quatro paredes frias, sem vida, sem revolta, sem dizerem nada. Fumava. Contava o dinheiro. Fazia contas. Quanto poderia gastar amanhã? E depois? Não lhe chegava? Fazia ginástica. Olhava o tecto, olhava o nada.

João pensava:«Isto é um problema. Um tipo quer trabalhar, ganhar algum para cigarros, fazer alguma coisa de jeito e mandam-lhe um pontapé no traseiro. Anda um tipo dois anos lá fora, estudos parados, a criar vícios e outros hábitos, a aturar este e aquele que nunca viu de lado nenhum e chega vendo tudo ao contrário do que sonhara. As palavras são bonitas e sentimentais. São, são. O pior é o resto. As cartas que se escrevem não têm rosto. Por isso é que as palavras são tão bonitas e sentimentais. Às vezes até dá vontade de voltar para lá. Beber água do coco e comer mandioca como o negro e amendoim como o macaco. Arranjar machamba e derreter os ossos no seu amanho. Deixar-se andar até as pessoas dizerem que um homem está «apanhado pelo clima». E há quem se safe. Vêm cá fazer de ricos. Depois voltam mais uns tempos. Vêm de novo e zás. E regressam. Acabam por lá. O calor obriga à cerveja e ao uísque. As barrigas medram. Pode-se ter um, dois, vinte criados. Sem receio de grandes despesas pois a mão de obra é barata. Há praia todo o ano. Anda-se à vontade, em mangas de camisa, e até de tronco nu, mas com calções se não era uma vergonha. O marisco é barato e acompanha-se com álcool gelado. Há sempre festas e festinhas para se encher a pança, em que o burguês mostra que é mais burguês que o outro, em que se dança com as esposas dos outros dentro do maior companheirismo e seriedade. Mas também se trabalha, lá isso é verdade. Mas aquilo é porreiro. «Sim senhor, Patrão!». Eu se fosse para lá só o mato me interessava. O mato metido lá bem para dentro, onde não me cheirasse aos bifes e aos cosméticos das cidades. Viver com a natureza selvagem. Aprender os dialectos. Construía uma palhota, abraçada a um imbondeiro, casava-me com uma negra (se ela quisesse ir à igreja até nem me importava nada) e devia ser giro eu ter filhos chocolates. Abastecia-me no cantineiro mais próximo e que não me enganasse muito, comprava uma ginga, um portátil, e, nas tardes em que não me apetecesse dormir a sesta, escreveria o meu livro de sucesso, intitulado, por exemplo, «Vai para o mato malandro» ou então «A comodidade selvática». Claro, teria que arranjar uma lavra de qualquer coisa para fazer tudo isso e os filhos não andassem de barrigas inchadas. Mas seria bom. Só queria que os negros não me elegessem chefe, nem por Sufrágio Universal. Se o fizessem mudava de sítio.».

Puxou de um cigarro. Olhou o relógio. O próximo só poderia ser fumado daí a quarenta e cinco minutos.

«Mas porque será que não arranjo um emprego compatível? Claro que não vou servir burgueses nos Restaurantes ou nos Cafés, nem atender clientes a quem tem sempre de se dar razão, mesmo quando não a tenham. Trabalhar seis horas por dia e ganhar dois mil escudos por mês! Isso quase que ganha um empregado qualquer, numa semana, em um daqueles países em que até as greves acontessem. E mais: no fim de um ano, se não servisse, ia para a rua! Bonito, sim senhor. E ainda estão os estudos que tenho que prosseguir para amanhã não andar a pedir esmolas. E se eu fosse para o estrangeiro? Lavar pratos, limpar retretes, cortar as ervas dos jardins, cuidar das crianças dos ricos? Nos intervalos tiraria um curso de línguas e pintaria quadros para expôr às portas dos teatros. Juntar-me-ia a uma sueca ou francesa ou a uma qualquer liberal e faríamos amor no palheiro mais próximo duma quinta abandonada. Seria engraçado até ao dia em que um de nós se saturasse e dissesse: «Good bye». Não. Quero ser mais do que isso.».

Foi à janela. Parara de chover. As ruas estavam semilavadas e os automóveis desciam com cuidado. Um polícia, arrogante e espectacular, comandava o trânsito, no fundo.

«Como as pessoas correm, esquivando-se aos encontrões. Sem ordem, sem método. À balda, sem definição. Dir-se-ia que um frio e calculista cérebro electrónico as move, gozando a seu belo prazer o efeito que resulta de as ter lançado na confusão. Para que fim correrá esta gente? Terão algum objectivo? A angústia de perder os tostões com que se vestem e se alimentam, com que vão aos domingos ver o futebol e possam preencher o totobola. A esperança de que um dia seja melhor. E oxalá que sim. O que é preciso é que não matem a esperança, embora muita gente diga que já morreu no determinismo dum contexto social apócrifo. Mas é necessário continuar a acreditar. A minha fé é esta. Não uma fé pagã. É uma fé lúcida mesmo que, por vezes, se fundamente na ilusão como todas as fés. Só queria saber os pensamentos daquele barbeiro velhote que passa as manhãs à porta da barbearia conservadora, onde nem há sequer um secador de cabelo, fazendo uma barba de quando em vez, lendo a página de desporto do jornal. Que é que ele espera? A morte? Mas isso todos esperamos. A morte ceifa tudo. Até as fragas do silêncio das serras se desfazem na morte dos tempos, do vento e da chuva. E aquele arrumador, vesgo que se farta, que torce a boca quando fala e tem sempre uma perisca na orelha? E aquela mulher feia, com varizes nas pernas, que vende pentes, lapiseiras e preventivos para furtar homens às guerras? A vida é uma maçadoria. As gentes arrastam-se. Arrastam-se como o combatente na selva sempre à espera que um tiro lhe rebente os miolos e diga adeus, por uma vez, a todas as cavalgaduras que inventaram as guerras. Mas, afinal, tudo isto é uma guerra. E as cidades são a selva. Uma selva mais civilizada (se o termo é correcto), talvez, mas, por isso mesmo, mais perigosa. A selva da sociedade com bichos de variada espécie que roncam de modos estranhos e não se fazem rogados para morder um qualquer, achincalhar a sua dignidade, matar o seu pensamento, a sua liberdade. Porra!, o sacrifício que um tipo passa para os aturar. Quando há vontade de os mandar ter com as mães – que, ao fim e ao cabo e bem vistas as coisas, não têm culpa de parir tais bestas – e não se pode? E assim se anda...».

O telefone tocou.

- Tou. Olá pá! Diz lá. O quê? Bolas, estou farto disso, pá! Aparece amanhã e depois conversamos. O telefone é pouco próprio, pá. Adeus.

«Este anda iludido coitado. Julga que está no mar da tranquilidade. Lê de manhã à noite e vai a caminho da maluqueira. Ignora que esta porcaria não se explica – consome-se. Ou se vive assim ou então dá-se um tiro na cabeça. Sei lá se é solução. Ainda não pensei nisso a sério.».

Fechou o rádio, mal uma voz começou a fazer propaganda facciosa. Deu um murro na cabeceira da cama. Sorriu. Tirou o sapato direito e atirou-o ao candeeiro. Nenhuma lâmpada se partiu. Aquele ficou só a marcar segundos como o pêndulo de um relógio de sala, daqueles que assinalam os quartos, as meias e as horas com um fadinho monótono e sonolento. Foi buscar o sapato. Enfiou-lhe metade do pé e lançou-o ao tecto. Foi buscar outra vez o sapato e riu-se. Mirou-se ao espelho e disse: «Estás cada vez mais na mesma. Tens montes de estupidez.». Sentou-se junto da máquina de escrever e acabou o poema que há quinze dias aguardava desfecho com os seguintes versos: «Sorri e fala enquanto és criança / Quando fizeres a barba e usares calças compridas a sociedade calar-te-á.». E ficou satisfeito. Pareceu-lhe viril, duma virilidade triste e irremediável, aquele final. Olhou o relógio: Ainda não podia fumar.

«Apetecia-me nadar. Flutuar nas ondas cansadas duma cansada praia africana onde até o amor é cansado. Caramba!, aqueles noites de calor quando um tipo ia para a baía e, todo nú, com a lua envergonhada a ver tal descaramento, se enfiava por ali fora e deixava que a água salgada entrasse para os ouvidos e a sensação doce e gritante de possuir, naqueles instantes, a liberdade no corpo. Correr depois pela praia aos saltos, aos berros de «aioé», e rir, rir alto para as estrelas, sem nada no corpo, sem nada nos dedos da noite, ouvir as palmeiras a chorar a solidão, o tam-tam do batuque, lá ao longe, no meio do mato, festejando rituais de principiantes, corpos de cores diferentes rebolando-se na areia com risos sufocados pelos prazeres da carne, prazeres adquiridos pelo dinheiro. Noites de descontrole natural pelos ambientes dia-a-dia ruminados, noites de lágrimas em que, olhando-se o longínquo das águas, se lembravam os nossos e se gemia: «Mãe, diz a ela que me espere com uma esperança igual à tua!”. E aquela vez em que me deixei cair e esgadanhei a areia até os dedos serem derrotados e gritei: «Não! Mil vezes não!» Mas que lucrei? Quem me ouviu? O nada sem voz, o silêncio das coisas mortas. E agora? Agora que já só cumprimento quem me apetece, sem ser por obrigação? Que vou fazer? Andar por aí a cuspir palavras, salivar complexos, continuar sendo escravo desta miserável sociedade que me persegue e me quer destruir, sorrir quando a minha vontade era dar murros, acenar-que-sim para poder continuar a sentar-me a uma mesa, sujando-me na incoerência por necessidade, masturbando porcamente os meus princípios, ouvir palavras de fingida comiseração? Pois sim. Acordar todas as manhãs num quarto escuro dum terceiro andar, com a chuva a castigar as vidraças, o movimento dos carros, acelerando, travando, apitando, roncando e as pessoas, de umbelas, fugindo ao choque, dançando o tango pluvial, e eu, cá em cima, sentindo o vazio à minha volta, uma indiferença tão fria como a da máquina de escrever sobre a mesa, um hábito de vida sempre igual em que nada de novo sucede nem um exaltado a oferecer pancada.».

João espirra. Tosse. Escarra no penico. Assoa-se. Abre um livro. Começa a ler. Fuma o cigarro que passaram os quarenta e cinco minutos. Levanta-se para ir buscar o lápis vermelho. Sorri e sublinha: «É mais fácil organizar e dirigir uma sociedade de escravos do que uma sociedade de homens livres.».

João poisa o livro na mesinha. Vira-se para o outro lado e adormece com o seu sonho de esperança, enquanto a chuva recomeça e se faz amor, comprado ou grátis, na cidade-selva.
- Continua.
  • MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES NASCEU EM SÃO JOÃO DE LOBRIGOS, SANTA MARTA DE PENAGUIÃO, EM 1943. É ALUNO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA. CUMPRIU SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO, COMO ALFERES MILICIANO, NA PROVÍNCIA DE MOÇAMBIQUE. COLABOROU EM VÁRIOS JORNAIS: INICIAL, GAZETA DE COIMBRA, DIÁRIO DE LISBOA – JUVENIL, MIRADOURO, NOTÍCIAS DO DOURO, REPÚBLICA-JUVENIL, DIÁRIO (DE LOURENÇO MARQUES), VOZ DA ZAMBÉZIA. NÃO MATEM A ESPERANÇA É O SEU PRIMEIRO LIVRO ESCRITO EM 1970.
«NINGUÉM CONSEGUIRÁ BARRAR O CAMINHO DA VERDADE, E ESTOU PRONTO A MORRER PARA QUE ELA AVANCE.» (SOLJENITSYNE)

«SEJAMOS POIS IMPOPULARES, NO MUNDO DE HOJE, ESSA É A FORMA ÚNICA DE NOS SABERMOS HIPOTÉTICAMENTE CERTOS.» (NELSON DE MATOS)

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

As palavras de Camilo de Araújo Correia



Quando encontrei esta fotografia do Dr. Camilo de Araújo Correia (1925-2007) - médico, escritor e antigo presidente da direcção dos bombeiros da Régua - perdida das folhas do seu álbum, fora do seu sítio devido e do seu tempo, amontoada com outras que descoravam num velho armário cheio de poeira, tive necessidade de refazer o seu passado e escrever-lhe a sua história.

Sem nada mais saber, comecei por arrumá-la no seu tempo e enquadra-la no seu espaço. De imediato procedi, como se faz nas investigações, à identificação das pessoas que escutavam as palavras de Camilo de Araújo Correia. Encontravam-se na sua mesa presentes pessoas conhecidas no meio da sociedade reguense e dos bombeiros, a começar pelo Eng. Álvaro Mota, presidente da câmara da Régua, Dr. Aires Querubim Governador Civil de Vila Real, Rodrigo Félix, presidente da direcção Federação dos Bombeiros de Vila Real, Guedes de Moura, Inspector Regional dos Bombeiros do Norte e o Comandante Carlos Cardoso dos Santos (1922-2007).

Para começar a sua história, faltava apenas saber o que faziam aquelas pessoas em volta de uma mesa, num dos salões do quartel dos bombeiros da Régua. Pouco me ajudaram as buscas nos meus arquivos. Acreditei na sorte de encontrar publicadas as palavras que Camilo de Araújo Correia lia nesse momento, socorrendo-se da ajuda de um papelinho, a sua prótese da memória, como lhe gostava chamar.

Não satisfeito pelos resultados demorei-me em mais pesquisas na esperança de reencontrar as memórias que pudessem reconstituir esse momento. Os velhos jornais “O Arrais” da época não divulgaram qualquer notícia do acontecimento fotogrado. Ainda pensei que me pudessem valer as lembranças de pessoas amigas, mas não deram mais informações. Contudo, ao reler o opúsculo dedicado ao Comandante Carlos Cardoso dos Santos, da autoria do Manuel Igreja, fui surpreendido pelo relato alusivo ao momento histórico que fotografia documentava e pela transcrição das palavras lidas nessa cerimónia por Camilo de Araújo Correia.



Como estes novos elementos, podia dizer que tinha desvendado o passado esquecido que a fotografia, só por si, não podia revelar. A agradável leitura do discurso de homenagem de Camilo de Araújo Correia, se é assim que lhe posso chamar, deu-me os pormenores que interessavam m para concluir as memórias perdidas e esquecidas nas cores da fotografia. Essa deliciosa crónica – posso a entender como tal - tinha sido escrita para a homenagem ao amigo Carlos Cardoso dos Santos, pelos 31 anos de brilhante e abnegado desempenho ao comando dos bombeiros da Régua. Uma homenagem que, como ele sublinhou, nunca poderia faltar.

Marcada para o dia 3 de Março de 1990, a homenagem ao Comandante Carlos Cardoso dos Santos teve o significado de reconhecimento ao cidadão reguense que, por vontade própria, deixava o seu lugar no comandado dos bombeiros da Régua. O modesto programa abriu com uma sessão solene no salão nobre dos Paços dos Concelho, onde não faltaram os bombeiros, os grandes amigos e as entidades oficiais. Mas, o momento mais emocionante para todos, foi quando o velho comandante passou a última revista aos bombeiros, formados na entrada principal do quartel. Nesse adeus ao comandante, conta-se que viram lágrimas de tristeza nos rostos dos bombeiros.

Depois de servido o almoço de confraternização, coube ao Dr. Camilo de Araújo Correia fazer, e muito bem, o papel de orador principal, para distinguir a brilhante acção humanitária do homenageado. Como seu velho amigo conhecia-lhe o seu carácter e a sua personalidade. Mantinham laços de amizade desde o tempo, em que fora médico no hospital e mais tarde presidente da direcção dos bombeiros. Pelo que só podia sair-lhe do coração, o maior e melhor elogio de gratidão que era merecedor o Comandante Carlos Cardoso dos Santos, que aqui transcrevemos:



“Estivesse onde estivesse, a fazer fosse o que fosse, eu viria a esta homenagem ao senhor Carlos Cardoso dos Santos, pelos seus 31 anos de brilhante e abnegado comando dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.

E viria, vencendo distâncias e afazeres, porque não sou apenas um reguense devoto dos seus bombeiros e grato a quem, ao longo de tantos anos, os disciplinou e dirigiu nos tempos difíceis caminhos da protecção e salvação do próximo. E nós sabemos que essa dificuldade pode ir do sacrifício familiar ao sacrifício da própria vida. Viria porque também sou um velho amigo e um inabalável admirador do forte temperamento altruísta do senhor Carlos Cardoso dos Santos.

Se admitirmos que uma pessoa volta a nascer, quando começa a trabalhar, exercendo a sua profissão que escolheu, pode dizer que sou natural do Hospital D. Luiz I e amigo do senhor Carlos Cardoso dos Santos, desde que nasci…  (…)



E foi com todo esse altruísmo, amadorismo e capacidade de relação, largamente exercidos no Hospital D. Luiz I, que o senhor Carlos Cardoso dos Santos apareceu nos Bombeiros Voluntários da Régua. Não admira, pois, que os 31 anos do seu comando tenham sido de negável eficácia e brilhantismo. E é por isso que aqui estamos com o ruído dos nossos aplausos e o silêncio da nossa gratidão.

O calor do meu brinde não ficara completamente explicado se não lhe dissesse que passei pela Direcção dos Bombeiros da Régua, ao que julgo, por influência ou, pelo menos, franca concordância do senhor Carlos Cardoso dos Santos. Mal chegado de uma penosa mobilização em Moçambique, pode dizer-se que foi uma partidinha dos meus amigos. Uma simpática e honrosa partidinha, devo confessar.

Peço licença para que o meu brinde seja extensivo à esposa do senhor Carlos Cardoso dos Santos e às esposas de todos os bombeiros. No peito de todas a sirene só deixa de tocar, quando o marido regressa a casa molhado, cansado…mas feliz”.

As palavras de Camilo de Araújo Correia, sejam elas no estilo de um discurso de homenagem ou de uma sua elegante crónica, como mais preferirem, deixa qualquer um de nós ainda comovido pela ternura dos sentimentos e do brinde feito ao velho comandante que, acredito tenha sido celebrado com vinho fino! Como são merecedores os grandes homens que viveram para fazer a paz e o bem. Elas são como que o retrato do comandante de corpo inteiro e fardado a rigor, para sempre. E, ao mesmo tempo, guardam um sentimento de admiração que ficou do primeiro dia em que se conheceram…no velho hospital da Régua, ainda instalado no Solar dos Lemos e ao cuidado da Santa Casa da Misericórdia.

Para muitos, se calhar, esta foi a primeira oportunidade de recordarem este grande comandante e mais um discurso inesquecível de Camilo de Araújo Correia e entenderem o testemunho dos seus ideais com nitidez e mais paixão. Mas, para quem sempre os admirou, este momento permitiu um reencontro destes dois grandes homens na história dos bombeiros da Régua.


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Com eles já na Eternidade, cada um de nós deve agora olha-lhos como símbolos de fraternidade e reconhecer-lhe gratidão.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O patrão Álvaro: coragem e valentia


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Ao lado do velho pronto – socorro Ford, o patrão Álvaro Rodrigues da Silva olha-nos com a nostalgia de um velho herói que a Câmara Municipal do Peso da Régua agraciou com a Medalha de Ouro (de valor e altruísmo), durante as cerimónias solenes das Bodas de Ouro da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua – os primeiros 50 anos de existência – celebradas em 30 de Novembro de 1930.

Nascido na Régua em 17 de Julho de 1873, o Álvaro Rodrigues da Silva foi um dos melhores bombeiros. Talvez de sempre. Conviveu com muitos bombeiros da velha que, é como quem diz, com os homens que criaram a corporação. Entrou muito jovem no corpo de bombeiros e, durante muito anos, serviu-o devotamente. Ser bombeiro era uma das suas paixões. Por mérito pessoal atingiu o posto de patrão, que hoje corresponde ao de chefe. Os companheiros apreciavam o seu talento para a chefia e elogiavam-no por ser um poço de valentia - um bombeiro destemido - e muito competente.

Considerado um cidadão simples e honrado, fez toda a sua vida a trabalhar como serralheiro, numa oficina que tinha montada no rés-do-chão de uma casa, a meio da Rua General Alves Pedrosa, hoje conhecida como Rua da Alegria. Faleceu em 12 de Fevereiro de 1952, com a idade de 78 anos, reconhecido meio social reguense como um homem que, ao serviço dos bombeiros, se tornou um dos seus primeiros heróis.

Foi o herói que, em 1930, o presidente da câmara Dr. Mário Bernardes Pereira quis homenagear. O edil, ao lado da distinta benemérita D. Branca Martinho, escolhida para presidir ao acto, e da população que enchia o Salão Nobre dos Paços do Concelho, num eloquente discurso reconheceu que o patrão Álvaro, num justo somatório de brilhantes valores individuais, destacava-se pelo seu espírito altruísta e paixão ao voluntariado. A emoção levou-o a pedir aos presentes que “diante da sua farda devíamos todos descobrir-nos com respeito”.

O patrão Álvaro não era homem que trabalhasse para ouvir elogios. Quem o conhecia, sabia que era um bombeiro que gostava de servir a sua terra e sua corporação. Sentia-se mais à vontade, pela sua maneira de ser, nos teatros das operações de qualquer tragédia humana quer elas fossem causadas por fogos, cheias do rio, acidentes ou calamidades naturais. E, por mais graves que fossem, sempre as enfrentou sem medo. Ele sabia que, quando a sirene tocava, os perigos não seriam obstáculo para deixar de salvar vidas e bens.

O patrão Álvaro socorreu e salvou muitas vidas em perigo. Para as missões de socorro onde era chamado mostrava o génio da sua coragem e valentia. Conta-se que, em algumas delas, foi graças à sua presença, que se evitaram males e desgraças maiores. Conhecemos, pelos relatos das notícias, a seu grande e eficiente desempenho num salvamento e regaste de dois homens que haviam ficado soterrados no fundo de um poço, numa povoação do concelho de Santa Marta de Penaguião. Quando a convicção de todos era de que esses dois chefes de família estavam mortos, e bem mortos, o seu arrojo e estímulo para bombeiros abatidos de cansaço e desânimo, ficou conhecido ao proferir a seguinte expressão: “Mortos os vivos, daqui não sairemos sem os arrancar de lá de baixo”.

A firmeza do patrão Álvaro fez com que os bombeiros que comandava acreditassem a levar até ao fim o salvamento de duas vidas, que pensavam já perdidas, após longas 16 horas de trabalhos de remoção de terras. Melhor do que as nossas palavras, podemos consultar mais pormenores dessa missão de salvamento – ocorrida a 10 de Agosto de 1929 - nas memórias do Chefe António Guedes, publicadas no jornal “O Arrais”, onde esteve também presente, que aqui temos o gosto de transcrever:

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“Se a memória não me atraiçoa, foi em dois ou três de Agosto de 1929, fomos chamados para Laurentim, povoado situada a poucos quilómetros da Régua, onde dois homens haviam fica soterrados num poço de dezoito metros de profundidade e quando procediam ao trabalho de ampliação de uma mina no fundo do mesmo poço.

Seguimos imediatamente para lá, cerca das nove horas da manhã…

Eu e chefe Álvaro analisamos a situação e ficamos com uma vaga esperança dos homens se encontrarem ainda vivos – isto no caso de se refugiarem na mina, na ocasião em que se deu a derrocada. E essa esperança recrudesceu ao depararmos com um cano galvanizado, emergindo apenas dois ou três dedos do solo, pelo que passava quase despercebido. Estaria esse cano ligado à mina? Não custa nada experimentar. E assim, colocamos ali dois bombeiros a fornecer ar, por meio da bomba braçal nº2, ligada ao cano encontrado.

Estávamos presentes dois chefes – Álvaro Rodrigues da Silva e eu, e dois sub-chefes -Armando Vicente e Augusto Costa.

O serviço de salvamento ficou assim estabelecido: no poço, dirigindo e auxiliando os serviços de desaterro, ficaria um dos chefes durante duas horas, no fim das quais outro iria o outro substitui-lo. E, cá em cima, dirigindo e auxiliando os serviços de transporte e descarga de aterro, em sitio que não estorvasse, estavam dois sub-chefes.

Por volta das 11 e meia da manhã, fui abordado por uma simpática velhinha – mãe de um dos homens soterrados - que me disse que desejava falar como o Comandante. Mandei chamar o Chefe Álvaro, a quem como o graduado mais antigo, competia exercer as funções de comando, e a velhinha então, de mão erguidas e o enrugado rosto banhado em lágrimas, suplicou: -Tirem dali o meu filhinho…

O angustiante fervoroso pedido daquela velha e pobre mulher comoveu-nos, emocionou-nos profundamente e dirigimos-lhe palavras de conforto e de esperança. Mas eram muitas toneladas de terra e pedregulhos que era necessário remover e guindar para a superfície…
(…)

Veio a noite e o cansaço estava a apoderar-se de nós. Havia já alguns bombeiros feridos e outros com as palmas mãos transformadas numas chagas autênticas. As dez horas já tínhamos a certeza que os homens estavam vivos, pois que nos falaram através do abençoado cano. As onze hora e um quarto da noite tiramos daquele horrível buraco o primeiro homem. Vinha quase desfalecido e completamente encharcado e enlameado. Logo a seguir tirou-se o outro, que se apresentava em melhores condições físicas mas igualmente coberto de lama.

E chegou então – para mim - o momento mais comovente e emocionante deste drama. A simpática velhinha veio novamente procurar-nos, a mim e ao chefe Álvaro, para nos agradecer o “milagre” de lhes termos salvo o seu filho. Com lágrimas de alegria e reconhecimento…abraçou-nos e beijou-nos com emoção e sinceridade. Considerei-me compensado dos tormentos que naquele dia passei”.

Era assim, cumprida mais uma missão de socorro com sucesso que se ficou a dever a todos os bombeiros que souberam compreender o apelo do seu chefe num momento de desânimo.

Percebemos o que sentiu o chefe António Guedes quando estava terminada a operação de salvamento. Há um sentimento de felicidade que o contagiava pela alegria sentida no rosto de uma mãe, agradecida aos bombeiros que tinha salvo a vida do filho. As suas comoventes palavras mostram a grande satisfação pelo dever cumprido, apesar dos tormentos e aflições de muitas horas de trabalho exaustivo, sem descanso nem alimentação, sob o sol escaldante de um dia de Agosto.

E, também percebemos porque o patrão Álvaro tornou, sem o querer, num herói amável e inesquecível.

Quase 80 anos passados sobre esse acontecimento faz todo sentido recorda-lo como um exemplo do ideal romântico de “Vida por Vida”, o lema que deve estar sempre presente no coração dos actuais bombeiros.

O milagre conseguido por aqueles bombeiros, sob o comando do patrão Álvaro, é uma das páginas mais brilhantes e sublimes da história da Associação, ainda molhadas pelas lágrimas de alegria de uma velha mãe. E, são essas lágrimas que, por anos que passem, nos fazem lembrar – sobretudo as gerações mais jovens de bombeiros - a lição de coragem e valentia do nosso voluntário patrão Álvaro.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.