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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Relendo: "História de um soneto" por João de Araújo Correia

Atualizado. Publicado inicialmente em 29-JUL-2008.
(Clique na imagem para ampliar)
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Na dramática noite do dia 8 de Agosto de 1953 estava em frente à estação da Régua, junto ao muro que dá para o rio Douro, assistindo ao dantesco espetáculo. Com seis anos de idade à época, acompanhava meu saudoso Pai Jaime Ferraz Rodrigues Gabão. Jamais saiu de minha memória a beleza assustadora e dramática das chamas envolvendo o edifício enorme da Casa Viúva Lopes. Experiência que marca até aos dias de hoje, com nitidez impressionante, minhas lembranças.
- J. L. Gabão, Brasil, Julho de 2008.
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O perigo anda de mãos dadas com a vontade de acudir e de servir a todos. A tragédia espreita a cada canto, e por vezes a morte sai a rua. Foi o que aconteceu no dia 8 de Agosto de 1953 com o Bombeiro João Gomes Figueiredo. João de Araújo Correia, homenageou o valente Soldado da Paz como se pode ler no texto abaixo:
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HISTÓRIA DE UM SONETO
- Por João de Araújo Correia
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Quando, em 1953, ardeu por completo, nesta vila, a CASA VIÚVA LOPES, empório de secos e molhados, como se diz no Brasil, morreu no incêndio o bombeiro João Figueiredo, mais conhecido por João dos Óculos.
No dia seguinte ao fogo, vi o cadáver, estendido de costas, do lado de dentro de uma abertura, que tinha sido, poucas horas antes, uma das portas da grande mercearia.
O corpo do João, ligeiramente vestido, como que ostentava, em toda a extensão das partes descobertas, o que se diz em Medicina, queimaduras do primeiro grau.
Não sei se a rápida morte do João foi devida às queimaduras, talvez mais extensas do que as ostentadas, se foi devida a asfixia ou queda. Não li relatório de autópsia nem sei até se o João foi autopsiado. Sei que morreu durantge o incêndio da CASA VIÚVA LOPES.
Era um pouco triste e um pouco frio, no trato, o João dos Óculos. Mas, homem bem comportado, honesto compositor na IMPRENSA DO DOURO. Vi-o trabalhar, muitas vezes, sem erguer os olhos do componedor.
Tive muita pena do desgraçado bombeiro. Tanto mais, que me eram simpáticos os seus padrinhos e pais adoptivos, o já cansado tipógrafo João Monteiro e sua mulher, a Senhora Glorinha, proprietários de uma arcaica tipografia quase morta chamada TRASMONTANA. Tinham descido de Vila Pouca de Aguiar à Régua, com seu prelo, como se tivessem embarcado para o Brasil. A Régua é chamariz de quem precisa de governar a vida.
Tive muita pena do João dos Óculos, falecido em 1953. Quando, em 1955, festejou as bodas de diamante a benemérita ASSOCIAÇÃO DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA, lembrei-me dele e da sua trágica morte. E, vai daí, andando a passear no meu quarto, improvisei um soneto à sua memória. Digo improvisei, porque me apareceu no cérebro, desde a primeira à última palavra. Nasceu-me, de mais a mais, a conversar com um dos meus filhos, o Camilo, que não é nada tolo, como toda a gente sabe.
Por ele não ser tolo, recitei-lhe o soneto antes de o escrever.
Mas que má impressão lhe causei! Premiou-me os catorze versos com uma coroa de catorze espinhos. Disse-me que eram versos de cego.
Versos de cego, em 1955, eram uma versalhada, que os ceguinhos entoavam na rua, ao som da viola, violão ou outro instrumento de corda, para apurar tostões. Levavam de terra em terra, tocando e cantando, o noticiário de grandes casos. Eram, quase sempre, eco de grandes crimes, principalmente crimes passionais.
Estou a ouvi-los entoar a versalhada, que, na opinião de meu filho, era mãe do meu soneto.
Embora... Publiquei os meus catorze versos numa folha ilustrada, comemorativa dos setenta e cinco anos dos nossos Bombeiros.
Aqui reproduzo o soneto como se repetisse a minha oferenda a um quartel que festeja, em 1980, o primeiro centenário. É como segue:
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BODAS DE DIAMANTE
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O João dos Óculos nasceu bombeiro.
Embora fosse pálido e franzino,
Cumpriu até o fim o seu destino
Com impoluta alma de guerreiro.
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Nenhuns braços lhe foram cativeiro
Mal da sereia ouvisse o som mofino...
Em uma noite de luar divino
Foi encontrar a morte num braseiro.
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A sua Associação, cândida amante,
Celebra hoje as bodas de diamante,
Quase cem anos de exostência honesta.
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Um bom diamante, sócios, é carvão.
Ide buscar o coração do João
E fazei dele o símbolo da festa.
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Mal chegou a Lisboa o sonetito, encontrou no Dr. Nuno Simões carinhoso acolhimento. Depois de o ler na folha única, não se conteve o ilustre publicista. Comunicou o seu entusiasmo à Associação dos Bombeiros.
Isto de críticos... Se todos pensassem o mesmo, a respeito de qualquer obra, tombava o mundo para uma banda, correria o risco de se perder na imensidade.
Todos os conselhos ouvirás e o teu não deixarás - reza o prolóquio. Todas as críticas ouvirás e a tua não deixarás - digo eu antes e depois de publicar os meus escritos. Sei ou suponho que sei até que ponto merecem ser publicados.
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Não se ficou somente pelo texto atrás reproduzido, a homenagem do "Mestre de todos nós" ao bombeiro falecido no incêndio da Casa Viúva Lopes...
Foi fatídico esse ano de 1953. A 24 de Dezembro, coube a desdita ao garboso e corajoso Afonso Pinto Monteiro, que acabado de almoçar, ao primeiro toque da sirene veio a correr atá ao Quartel. O incêndio era em Sedielos, e ainda a viatura subia a rua junto à Igreja Matriz de Godim, e já o Bombeiro falecia por indigestão provocada pela pela aflitiva corrida de momentos antes.
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Livro - "Bombeiros Voluntários do Peso da Régua-125 anos da sua História";
Propriedade - Bombeiros Voluntários do Peso da Régua;
Autor - Manuel Igreja;
Fotografia - B. V. do Peso da Régua, Foto Baía, Manuel Igreja;
Paginação, fotolitos e impressão - Imprensa do Douro;
Depósito Legal n. 234957/05;
Tiragem - 2.000 exemplares.

História de um Soneto
João de Araújo Correia
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 27 de Janeiro de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
História de um Soneto

terça-feira, 20 de julho de 2010

Os bombeiros e o Sport Clube da Régua

Esta imagem é dos anos 50 e retrata uma cerimónia solene em que os bombeiros voluntários se faziam representar na sede social do Sport Clube da Régua, que existiu no prédio pertencente ao comerciante Arnaldo Marques, na Rua dos Camilos.

Naquela sala reunia-se gente simples e humilde que criara o clube de futebol, alguns carolas e também figuras notáveis da elite reguense. Discursava de pé um homem generoso, influente e muito respeitado: João Vasques Osório, antigo presidente da câmara e, nesse momento, a exercer o cargo de presidente da direcção do Sport Clube da Régua. Ao seu lado, sentados à mesa, estavam o reverendo José Miranda Guedes, arcipreste do Peso da Régua e Humberto Vasques, funcionário público, junto à porta, o advogado Dr. Júlio Vilela, presidente da direcção da Associação Humanitária, o jovem Homero Marques Vasconcelos, a representar a Mocidade Portuguesa com a bandeira nacional, hoje engenheiro químico, o engenheiro Heitor Vasques e António Ribeiro, comerciante do ramo da relojoaria, e no canto esquerdo, Manuel Braga, conhecido jogador de futebol da equipa. Enchem as primeiras cadeiras um grupo de associados que, por se encontrarem de costas, não os conseguimos identificar. Dando um ar solene e de pompa à cerimónia, os bombeiros garbosamente fardados de capacete e casaco de couro, fazem a guarda de honra, enquanto um deles, o José Clemente, ostentava o estandarte.

Não se sabe ao certo, mas a cerimónia a decorrer seria a comemoração do aniversário do clube. Aquele ambiente invulgar ajuda a entender o que aí aconteceu. Escutado com atenção, João Vasques Osório profere um discurso, escrito numa folha de papel, por certo, a evocar grandes feitos do passado e a enaltecer a dedicação dos atletas, dirigentes e associados. Pode não falar da conquista de taças e troféus que não se encontram exibidos naquela sala, mas tem motivos suficientes para realçar algumas vitórias inesquecíveis contra equipas com a de Valongo ou a rival de Vila Real. Ao lado da bandeira do clube, porém, vislumbram-se as antigas fotografias, a recordarem as primeiras equipas cheias de nomes sonantes e craques como Abeilard Vilela, Jerónimo, Carriço, Canudo, um galhardete do Leixões Sport Club e outro a assinalar um torneio de futebol de 1949.
Na parede da sala sobressai ainda um retrato de João Vasques Osório. Aparenta ter menos idade e, é possível que seja, um retrato ainda do seu tempo de edil. Olhando de repente, entre as duas imagens parece que nunca existiu passado, como se a passagem do tempo se completasse em memórias tecidas por uma única realidade. Aquele homem fez história na Régua, nos anos 30, como um politico que mais trabalhou para o seu desenvolvimento e progresso.

Pertencendo a uma família benemérita da Régua, João Vasques Osório mais tarde, já retirado das suas funções públicas, aproveitando a sua experiência, assumia o desafio de dirigir o Sport Clube da Régua. O clube desportivo fundado em 30 de Novembro de 1944 (nascido da junção do “Ferroviário” e do “Régua e Porto”) caía assim em boas mãos. Ajudado pelo inegável bairrismo dos sócios, este dirigente aproveitava para fazer melhorias no campo de jogos de terra batida, construído, como então se dizia, na “volta da estrada” e não deixava morrer o sonho de tantos e tantos desportistas, ao fortalecer a mística do clube, numa fase de completo amadorismo, mas apostado em dar grandes glórias ao povo.

Com oportunidade, aproveitamos para citar algumas palavras que Abeilard Vilela escreveu numa carta dirigida aos dirigentes dos SCR, a evocar as suas memórias de jogador: “O Sport Clube da Régua nasceu, realmente, de um modo popular e os seus alicerces foram solidificados por trabalhadores humildes e persistentes, que tiveram que recorrer muitas vezes aos seus dinheiros que retiravam dos seus parcos salários. É tempo de os reguenses lhes prestarem as devidas homenagens…”.

Nessa carta, divulgava outras faces da personalidade do Dr. Júlio Vilela, um dos fundadores do clube, que também bem serviu a obra dos bombeiros: ”Quero ainda aproveitar para dar uns pormenores sobre os então directores do clube. Não me levem a mal que lembre especialmente o meu irmão Dr. Júlio Vilela. Eu ajudei a empurrá-lo para se responsabilizar pela legalização da agremiação e para a criação dos estatutos. Advogado de profissão, tinha uma vida sedentária. Pois, na altura das obras lá na volta da estrada, era frequente vê-lo cheio de genica a suar por todos os poros, a ajudar a arrastar um rolo de pedra sobre o terreno em construção, compactando e alinhando o terreno de jogo… Naquele tempo, lembro-vos, não havia caterpilares, que ainda nem sequer tinham chegado às vinhas, quanto mais aos futebóis…”.
A Associação Humanitária e o SCR estiveram sempre ligados por relações que ultrapassam a simples cortesia. Ao longo dos anos, existiu uma colaboração de inter-ajuda permanente. Os bombeiros prestam a assistência pré-hospital no Estádio Artur Vasques Osório, aos atletas lesionados. É assim ainda hoje. Uma ambulância para transportes de doentes e um piquete de bombeiros asseguram um serviço de primeiros socorros, sem qualquer despesa para o clube.
As duas instituições, apesar das dificuldades e dos problemas, resistiram a todas as crises e, com a boa vontade e os gestos beneméritos e altruístas de muitos desconhecidos cidadãos, continuam a dar vida aos seus ideais. Com o contributo de todos procuram realizar os seus fins sociais. O ideal seria que os cidadãos participassem mais na vida associativa, mas acontece que os que gozam de mais responsabilidades sociais abdicaram de ser dirigentes. Se nos bombeiros alguns aparecem para servirem nos órgãos sociais, no SCR poucos revelam essa disponibilidade.

O tempo das figuras locais, tais como comerciantes, médicos, advogados e até o pároco, se envolverem na vida era normal na sociedade dos anos 50. O exemplo mais flagrante era o caso dos presidentes de câmara, pelos estatutos das associações eram sempre eleitos por inerência para a presidente da assembleia-geral, coisa que nos nossos tempos não acontece por politiquices, ou vai-se lá saber porquê…!
(Clique nas imagens acima para ampliar)

Na verdade, fazem falta pessoas simples e generosas às duas instituições. A experiência dos bombeiros ensinou-os a não perderem os elos de ligação à população e, sem desmerecer ninguém, às elites, os melhores cidadãos que estão disponíveis para trabalhar na realização do Bem… de uma sociedade mais solidária!
- José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Julho de 2010.
  •  *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Dr. Fernando Bandeira: Um homem que fez obra

Quase ninguém fala do Dr. Fernando Augusto Bandeira, Presidente da Câmara Municipal do Peso da Régua entre 1957 e 1961, mas nos bombeiros o seu nome é lembrado como um dos dirigentes que mais soube prestigiar o nome e história da instituição.

Nos bombeiros, o Dr. Fernando Bandeira exerceu o cargo de Presidente do Conselho Fiscal e também da Presidente da Assembleia-geral. Só lhe faltou desempenhar o lugar de Presidente da Direcção, muito embora tenha sido candidato numas das mais importantes eleições da Associação.

Os reguenses guardam dele uma boa memória. Consideram que foi um bom e dinâmico presidente de câmara. Apenas fez um mandato à frente dos destinos do concelho, mas não foi o pouco tempo, que o impediu de deixar obra feita e de importância para o desenvolvimento local. O mercado municipal, o tribunal judicial e as escadas monumentais dos correios, a servirem de ligação pedonal da rua dos Camilos à Av. Dr. Manuel de Arriaga e a remodelação do jardim da Alameda são as suas principais obras que deixou em execução ou concluídas. Conseguiu, pela sua influência, que o poder político autorizasse o funcionamento de moderna Escola Técnica, para resolver uma lacuna do ensino público profissional. Não teve a sorte de inaugurar a sua obra mais significativa, à qual o seu nome ficou marcado, mas a sua gestão no município trouxe mais progresso para a terra.

No exercício das suas funções de presidente do município nunca deixou de apoiar o corpo de bombeiros. Como conhecia as contas e as dificuldades da casa, esteve sempre na primeira linha para os auxiliar no que mais estavam carenciados, como melhoramentos nas instalações e a aquisição de equipamentos para o combate aos fogos e transportes de doentes.

Revelando a sua sensibilidade e respeito pela acção dos bombeiros, na qualidade de Presidente do Conselho Fiscal, escreveu na revista comemorativa dos 75 anos da associação, este sentido elogio:

“Quando na vida duma corporação se festejam setenta e cinco anos de existência, o facto não pode deixar de revestir daquela solenidade própria dos grandes actos comemorativos. A AHBVPR festeja neste momento setenta e cinco anos de vida, vida já bastante longa, toda ela votada ao serviço do seu semelhante, na defesa por vezes heróica, das suas vidas e valores.

Ao entrar no último quartel do século, deixa a Associação atrás de si o rasto luminoso duma história esculpida a oiro pelos muitos actos de abnegação, heroicidade e altruísmo dos admiráveis componentes do seu corpo activo. É bem grandiosa a sua história!...E, se o reconhecimento público ainda não envolveu todos estes bravos soldados da paz, no peito de alguns e ao pescoço de outros brilham já medalhas e colares como reconhecimento do Estado para com aqueles que mais de perto seguem a doutrina pregada aos homens por Jesus, filho de Deus.

E na sua bandeira, rota e velhinha, bordada por mão caridosa de mulher, sentem-se perpassar imagens duma história vivida, clarões a iluminar os passos dos novos que entram, chamas que aquecem os corpo já cansados dos que partem com saudade! A bandeira da Associação a todos envolve, a todos acarinha, a todos obriga…

A Régua, melhor dirá, todo o concelho, tem nesse dia a grande e quase única oportunidade para tributar à sua Associação, o respeito, a admiração e a sua estima que sente pelos seus “rapazes”. À singeleza desta deverá juntar-se o muito obrigada de toda a gente, numa exaltação espontânea do muito que lhe quer e do muito que lhe deve.

Estamos certos de que esse punhado de bravos, que garbosamente vai desfilar ante os nossos olhos, há-de sentir um carinho diferente a envolve-los, uma onde de ternura a afaga-los, uma admiração e respeito maiores pelas venerandas cãs da nossa velhinha Associação!...É que, quem da voluntariamente a sua vida necessariamente tem direito à maior consagração que é possível fazer-se.

Por isso, quando na rua passarem, em desfile marcial, esses soldados da paz, que toda a gente se descubra, porque debaixo das fardas azuis batem corações que albergam um grande sentimento: o sentimento humanitário.”

No dia 3 Março de 1961, uma comissão de ilustres senhores e senhoras reguenses organizou-lhe uma homenagem, à qual a Direcção dos bombeiros apoiou e se associou. No oficio nº 61/61, o Vice-presidente da Direcção, José Pinto da Silva comunicou-lhe “ser a primeira como em tudo (…) a apresentar-lhe os mais entusiásticos cumprimentos (….) em que todo o concelho lhe rende sentidas homenagens pelo obra deveras notável com que tem caracterizado o mandato de V. Ex.ª como presidente da municipalidade.”

Com o título “A Régua agradecida - homenageia o seu Presidente da Câmara”, o jornal “Vida por Vida”, em suplemento, destacou mais pormenores dessa homenagem. Começa logo por destacar a sua acção como autarca na ajuda ao corpo de bombeiros: “Como reguenses, regozijamo-nos por verificar a onda de melhoramentos já existentes, mas como elementos directivos dos bombeiros da Régua, temos que nos sentir agradecidos, pois que a sua acção em prol desta Casa, excedeu tudo o que seria legítimo esperar de um homem.

Nunca qualquer pedido que se lhe dirigiu – aliás sempre justos - deixou de ter a melhor atenção e carinho para que tivesse a feliz resolução que seria traduzida em benefícios. Por isso mesmo, por esta maneira de proceder, a nossa acção tem sido imensamente facilitada e porque sabemos que a sua actuação continuara a ser no futuro como foi no passado e no presente, não nos cansaremos de nos mostrar reconhecidos, como sempre o soubemos fazer para todos quantos nos auxiliem, nos mais variados aspectos.”

No seu discurso, perante o Governo Civil de Vila Real e o Presidente da Comissão Concelhia da União Nacional, capitão Afonso Alves de Araújo, o homenageado agradeceu com estas palavras: “Pode o Presidente da Câmara errar, pode a sua inteligência não abarcar suficientemente a extensão deste ou daquele problema, mas a verdade é que – e nisso com vaidade vos digo, têm-me feito justiça – é sempre com olhos postos no bem da terra que se tem actuado na defesa das legítimas aspirações e anseios. Mas o fardo que recaiu sobre meus ombros tem sido bem pesado. Administrar uma casa em que as receitas mal cobrem as despesas e muitas vezes estas superam aquelas, é tarefa ingrata para quem tem à sua frente a inexorável espada das realidades.”

Mas, em 6 de Janeiro de 1968, o Dr. Fernando Bandeira concorreu aos órgãos sociais dos bombeiros da Régua. A outra lista era liderada pelo Dr. José Vieira de Castro. O acto eleitoral atraiu à sede da Associação muitas dezenas de associados. O jornal da Associação “Vida por Vida” dava a informação de “que nunca esta instituição viveu tão intensamente o significado do acto eleitoral.”
Quem participou na assembleia eleitoral garante - ainda hoje - que os resultados finais causaram dúvidas quanto à lista vencedora. A contagem dos boletins fez-se sem controlo. Pedida uma recontagem dos votos, a mesma não se fez porque os boletins foram imediatamente queimados. Esta irregularidade causou reclamações e fez adensar ainda mais as incertezas. Isso fez com que alguns associados contestassem o modo de apuramento. Rapidamente se originou uma confusão entre os associados que provocou incidentes e desacatos. Pela madrugada, por volta das 5 horas da manhã, uma força da Polícia de Segurança Pública foi chamada ao Quartel para apaziguar os ânimos e manter a ordem entre os associados mais revoltados. Os apoiantes da lista do Dr. Bandeira não se conformavam, mas já nada podiam fazer para repor a verdade que clamavam.

Como nada tivesse acontecido, o Dr. Rui Machado, como Presidente da Assembleia-geral, na tomada de posse dos novos Corpos Gerentes deu uma explicação para o sucedido nas eleições. Se não foi clara e convincente ele conseguiu, pelo menos, depreciar todas as divergências, recorrendo à evocação desta verdade irrefutável para todos: “nesta casa só pode haver uma finalidade: servir a humanidade.”

Algum tempo depois de empossado, numa cerimónia entre bombeiros, o Dr. José Vieira de Castro desvalorizou os factos. Lamentava-se, dizendo “que no período eleitoral tudo parecia uma tempestade medonha, um mar sem fundo, não que passou afinal de uma pequena borrasca cujo único inconveniente foi termos andado todos metidos nas bocas do mundo.”

O que terá motivado este caso que ensombrou um período da vida associativa nunca ficou bem esclarecido. Alguns acreditam que se passou o mais grave, algo que como o desprezo pelas regras da participação cívica e democrática num confronto eleitoral entre dois homens de grande valor. O Dr. Fernando Bandeira era uma figura conciliadora e influente no partido do poder, a União Nacional. O seu brilho de pessoa elegante, culta e com espírito altruísta e liberal faziam dele um cidadão estimado e respeitado. O eleito para a direcção, o Dr. José Vieira de Castro, subdelegado de saúde, gozava de consideração social e era visto como um médico de bom carácter humano.

Mas, há quem continue a dizer – agora decorrido muito tempo - que esteve aqui metida a política. Se assim foi, o Dr. Fernando Bandeira não chegou a ser Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua, em 1968…! Desta vez, a ser verdade, os interesses concelhios da União Nacional se não mudaram os rumos da história da Associação, alteraram a vida de um homem bom. Mas isso aí, será tema para se contar numa outra história…!
- Colaboração de J A Almeida para "Escritos do Douro". Peso da Régua, Junho de 2010.
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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A catástrofe das Caldas do Moledo

Encontra-se publicado no Diário do Governo, em portaria de 12 de Março de 1904, o seguinte louvor: “SUA MAGESTADE El-Rei, a quem foram presentes as informações do governador Civil de Villa Real acerca do philantropico procedimento da Câmara Municipal do concelho do Peso da Regoa e dos humanitários e importantes serviços prestados pelos BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS da mesma villa por ocasião da catastrophe que em 10 de Fevereiro se deu na povoação do Moledo: há por bem determinar que seu REAL NOME, sejam conferidos pelo dito magistrado às mencionadas Câmara Municipal e CORPORAÇÃO DE BOMBEIROS os merecidos louvores”-Paço, em 10 de Março de 1904 -Ernesto Rodopho Hintze Ribeiro”.

Em 1904, o Rei D. Carlos concedia este louvor aos bombeiros da Régua como reconhecimento dos seus importantes serviços humanitários, prestados na missão de socorro, realizada no dia 10 de Fevereiro de 1904, nas Caldas do Moledo, numa catástrofe natural, que causou a morte a pelo menos 24 pessoas, que estavam alojadas numa casa da Quinta das Caldas, pertencente à família da D. Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha.

Esta catástrofe deu-se com o rebentamento de um tanque de recolha de água, situado em plena encosta, que tinha como finalidade recolher as águas que corriam pela vinha da quinta, donde se escoavam pelo vale até ao rio Douro. Nesse inverno de 1904, em Caldas do Moledo, as chuvas tinham sido abundantes e o tanque não resistiu à força das águas e desmoronou-se com as terras que o envolviam. As águas irromperam pela encosta a baixo, destruindo e arrastando o que encontravam pela frente. Arrancam, na sua passagem, os carris do caminho-de-ferro da linha do douro e destroem a casa construída na berma da estrada nacional. As pessoas que nela se abrigavam foram arrastadas com os destroços para o rio e, apesar das buscas, os seus corpos não foram nunca encontrados. Apenas se salvou uma criança – António Cardoso - devido à “mão de Deus” e à coragem do senhor Delfim de Sousa Mesquita.

Os bombeiros da Régua quando chegaram ao local, pouco tempo depois do sucedido, encontraram uma casa reduzida aos seus alicerces, completamente desfeita num amontoado de lamas e pedras. O seu auxílio foi remover terras e terras, nessa noite e nos dias seguintes, para recuperarem os corpos das pessoas. Nenhum foi sequer encontrado no meio dos destroços.

Na sua monografia sobre a história da Régua, Afonso Soares fez uma breve referência a esta tragédia das Caldas do Moledo. Assinalou-a como uma das mais graves em corpo de bombeiros que, ele era seu comandante (1893-1927), tinha socorrido. Não escreveu nenhum relato do que viu e assistiu, apenas se limitou a transcrever a acta da sessão da Câmara Municipal de 11 de Fevereiro de 1904, onde consta que vereação se preocupou com o desenrolar do acontecimento que enlutava a Régua e aproveitava para distinguir com a aprovação de um louvor a população reguense, os bombeiros e o Sr. Delfim de Sousa de Mesquita pelo “socorro às vitimas de tamanha calamidade”.

Passado mais de um século, a tragédia das Caldas do Moledo encontra-se caída no esquecimento e apagada na memória das actuais gerações. Naquele vale do Tinoco, a vida continuou o seu ciclo, tudo se foi reconstruindo com esperança no futuro: edificaram a casa desaparecida e o tanque no mesmo lugar – é verdade - a linha de água mantém o seu curso normal, retomou-se o cultivo da vinha e a produção de bons vinhos na quinta, as velhas termas edificadas no parque de plátanos, afamadas pelo clima ameno e seco e a curas das suas águas sulfúreas, adquiriam maior movimento com a abertura do hotel, erguido pelo génio da Ferreirinha.

O tempo fez voltar tudo à normalidade, mas até hoje ninguém se lembrou de, nesse lugar das Caldas do Moledo, gravar numa parede uma simples placa a evocar as vítimas que perderam a vida nessa tragédia.

Apenas a literatura de cordel a fez lembrar a sua fatalidade cantada numa poesia que o povo conhecia pelo “Grande desastre acontecido nas Caldas do Moledo”, de Agostinho da Silva Pereira. Numa linguagem comum e com um sentimento religioso foi lembrada assim:

“Foi nas Caldas do Moledo/Aquele depósito arrebentou/Ali tudo se arrazou/ Causa pena mete medo/Ali tiveram o seu enterro/Vejam o poder do Senhor/ Que ali ficaram sepultados/Causa pena mete terror/(…) Só naquele próprio menino/Num berço a dormir foi encontrado/Sobre aquele rio tão valente/ Por os barqueiros foi apanhado/Foi um milagre que Deus mostrou nele devemos pensar/ Esta grande calamidade/Que se vai vendo na nossa nação/Sem ninguém isto esperar/Aquele depósito arrebentou/Dos que andavam a trabalhar/ A vida lhe acabou”.

Uns anos mais tarde, Afonso Soares, velho comandante dos bombeiros já no Quadro de Honra, recordou no jornal “A Região Duriense”, num texto intitulado o “Desastre das Caldas do Moledo”. Como o seu texto não é conhecido pelos entendidos na gestão dos território e pelos agentes da protecção civil, faz-se de imediato a sua transcrição:

“Na noite de 10 de Fevereiro de 1904 uma pavorosa catástrofe enlutava o concelho do Peso da Régua. O rio Douro tinha subido muito e a chuva continuava caindo dia e noite. Na quinta das Caldas do Moledo, pertencente à falecida Sr.ª D. Antónia Adelaide Ferreira, havia acima da linha férrea que atravessava a quinta, um grande tanque construído na divisória dos dois concelhos - Régua e Mesão - Frio. Essa divisão fazia-se e faz-se no vale do Tinoco que na estrada que vai para o Porto tem o marco da divisão concelhia.

Do lado esquerdo desse vale havia uma casa de arrumações pertencente à quinta, com frente para a estrada. Do lado oposto duas moradas de casas que recebiam hóspedes. Nesta casa tinham sido recebidos 24 hóspedes, vindo de fora que ali pernoitavam, fugindo à tempestade.

Naquele pequeno vale a que nos referimos, corria, de vez em quando, água vinda das encostas da montanha. O leito do regato comunicava na altura do tanque com ele e depois de cheio restabelecia-se a saída pelo vale. O tanque estava cheio há muito tempo pois que a chuva fora persistente. Às nove horas e meia daquela noite um enorme estampido sobressalta toda a povoação das Caldas do Moledo.

A parede da frente do depósito tinha cedido e aquela avalanche de água ali represa, salta por ali fora, desenfreada, e apesar de encontrar na sua frente uma baixa grande fechada pela linha férrea, que passava em frente, desfaz o talude do caminho de ferro, arranca rails que retorce e leva diante de si, e cai sobre a casa da quinta, cortando-a ao meio, destruindo a parte mais próxima do vale e precipita-se depois sobre as duas casas fronteiras que apara, como se fosse uma navalha de barba, deixando-lhes apenas os alicerces. Precipita casas com tudo o que tinham na corrente do rio que tudo engoliu, incluindo a vida de 24 pessoas que ali se tinham recolhido e cuja identidade nunca se averiguou, pelo desaparecimento dos cadáveres.

Foi esta tragédia que naquela terrível noite se desenvolveu na povoação das Caldas do Moledo. Chamados os socorros para esta vila, daqui partiu muita gente a prestar os seus serviços numa noite tempestuosa que tornava o trânsito impossível pela estrada. Não faltaram nem podiam faltar a esta chamada os nossos bombeiros que, sem hesitação, para aquela povoação partiram imediatamente”.

A notícia escrita por Afonso Soares, apesar do tempo passado, não podia estar mais actual. Assim, a catástrofe das Caldas do Moledo pode e deve, nos nossos dias, ser entendida como uma boa lição para valorizar mais as matérias de protecção da natureza que, violentadas por incúria e negligência humana, causam quase sempre problemas de segurança e protecção civil às populações.

As condições naturais da paisagem duriense associadas a alterações provocadas pelo homem – como a surgida nas Caldas do Moledo - podem aceleram ou desencadear catástrofes naturais. Só se evitam os infortúnios se houver mais rigor e cuidado nos licenciamentos de obras e construções que se fazem nas encostas do Douro. É importante conhecer a orografia da região duriense e a constituição geológica dos seus solos.
(Clique nesta e nas imagens acima para ampliar)

Em tempos de invernos chuvosos são flagrantes as possibilidades de repetirem, com maior violência, estes fenómenos chamados de “movimentos de vertente”, os perigosos deslizamentos de terras, destruidores de tudo em sua volta e causadores da morte de muitas pessoas, sempre indefesas nestas tragédias.
- Peso da Régua, Fevereiro de 2010, J. A. Almeida.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A Carta dos Bombeiros Voluntários Lisboneses

Ao vasculharmos os arquivos da nossa Associação não nos passou despercebida uma carta enviada pelo Comandante Tenente José Francisco França de Sousa, dos Bombeiros Voluntários Lisboneses, em 1966, ao director do jornal “Vida por Vida”, órgão oficial da AHBV do Peso da Régua.

Como, quando lhe chegou às mãos, essa carta não passou também despercebida ao Dr. Camilo de Araújo Correia, a quem fora amavelmente dirigida, que lhe reconheceu valor e interesse histórico para a divulgar nas colunas da primeira página do jornal.

Na edição de Janeiro de 1966, com o sugestivo título “Bombeiros Voluntários Lisbonenses” é feita a transcrição integral dessa carta. E, numa pequena nota introdutória, muito pessoal e ao seu jeito e estilo, o director - ilustre médico e escritor infelizmente já falecido - lembrou que, pela satisfação que a tinha recebido, não resistia a tentação – assim mesmo – de a publicar.

Os bombeiros da Régua são pioneiros a estabelecer relações institucionais com as associações congéneres. Faz parte dos genes da sua fundação. Entenderam desde os seus primórdios, que se tornava necessário conhecer o que se fazia de mais avançado nas associações mais preparadas e capazes e para conhecerem as novidades no combate aos fogos e no socorro às populações.

O jornal dos bombeiros da Régua, fundado em 1957, foi um elo de ligação aos bombeiros do país. Serviu para mostrar o trabalho de uma geração de homens que lutou com paixão para manter, com a ajuda de muitos beneméritos – os primeiros mecenas - o associativismo mais activo e um corpo bombeiros melhor preparado para responder às exigências do socorro às suas populações.

Se, no passado recente, existiram contactos dos Bombeiros da Régua com os Bombeiros Voluntários Lisbonenses, o mais certo é terem acontecido em encontros entre os seus directores e seus comandantes. Leva a crer que os comandantes se terão conhecido numa das muitas reuniões ou congressos de bombeiros, para discutirem as preocupações e aspirações do sector, onde teriam participado em nome das suas associações.

Na Régua, o Comandante Cardoso (1959-1990) fazia questão em participar nos debates que iam acontecendo pelo país sobre os desafios que os bombeiros voluntários tinham pela frente, como a definição de regras ordenamento da sua actividade e a afirmação do associativismo no seio da sociedade de que emerge.
Em 1968, os bombeiros da Régua participaram no congresso que teve lugar na cidade de Lisboa. A direcção da Associação, presidida pelo Eng. Abel Osório de Almeida (1966-67) e o Comandante Cardoso mandaram imprimir um folheto para oferecem nessa assembleia magna. Começavam com esta mensagem de saudação: “Os BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA, saúdam com amizade todos os camaradas portugueses presentes como nós neste XVIII Congresso Nacional, e fazem votos por que os seus anseios e as suas pretensões venham a ser estudadas para bem da Causa que servirmos, o mesmo que dizer para bem de Portugal”. Aproveitavam, nas restantes páginas do folheto, para divulgar, com muito saudável bairrismo, os meios e os objectivos da Associação e para promover a região do Douro - como escreviam única no Mundo - e o seu principal produto, a sua primordial fonte de recursos, o “Vinho do Porto - Orgulho de Portugal”.
(Clique nesta e nas duas imagens acima para ampliar)

A carta do Comandante Tenente França de Sousa é um precioso testemunho para a história dos bombeiros da Régua. a importância da Associação, reconhecida pelo seu progresso e crescente prestígio, presta uma homenagem ao seu valoroso corpo de bombeiros da década de 60 e faz um enaltecimento da figura do seu Comandante Cardoso, conhecido por viver os problemas da sua corporação como se fossem parte integrante da sua vida.

Esta carta é também uma prova que mostrar que “nesta cruzada de Coragem, Abnegação e Humanidade, também há ainda lugar para radicar e vincar amizades entre todos aqueles que sabe viver e compreender a missão a que devotamente nos entregamos”, como expressava o director do “Vida por Vida”.

Apesar das distâncias que separam as duas corporações, os bombeiros não deixam de comungar os mesmos valores de fraternidade e solidariedade.

As palavras de gratidão do Comandante Tenente França de Sousa, servidor leal e competente, que deixou marcas indeléveis nos Bombeiros Voluntários Lisboneses e na sua prestigiada Associação, este ano a comemorar o seu centenário, podem servir de motivo para aproximar as duas instituições, cheias de glorioso passado, numa união de vontades e de partilha dos novos desafios exigidos ao voluntariado do séc. XXI.

Não queremos deixar esquecida a carta do Comandante Tenente França de Sousa que deve ser relida com a devida atenção, pelo que a melhor homenagem lhe prestamos, agradecendo o seu nobre gesto, é de voltar a fazer na íntegra a sua transcrição:

“Exmo Senhor
Director do Jornal “Vida por Vida”:

Apresentando os meus mais sinceros cumprimentos a V. Exª, venho gostosamente saldar uma dupla dívida, que desde alguns meses tinha para convosco.

A primeira, de agradecer o envio mensal do vosso jornal “Vida por Vida” para esta Corporação da Capital, que dista algumas centenas de quilómetros da vossa, atitude que sinceramente, tanto a mim, como aos 80 homens do meu Corpo Activo bem funda ficou gravada nos nossos corações e, que embora com o pouco contacto que tem existido entre estas duas corporações, me permite afirmar que é a única compreensível entre Soldados da Paz!

A outra dívida que tinha para convosco, é de agora lhe confessar quanto me satisfaz e aprecio verificar através do vosso jornal, como a Vossa Associação está em progresso e grande prestígio que ela tem dentro dos meios ligados à causa do Voluntariado, situação atingida mercê da acção dinâmica dos seus Corpos Gerentes e da muita dedicação dos seus valorosos elementos do Corpo Activo bem comandados por um comando que vive os seus problemas da sua Corporação, fazendo dela parte integrante da sua vida.

Para a briosa corporação nortenha do Peso da Régua, vai o meu apreço e abraço amigo dos vossos camaradas “Lisbonenses”, na certeza, que embora distantes, aqui sentiremos igualmente as vossas horas más que possam surgir, regozijaremos como os vossos momentos de esplendor, com as vossas alegrias, saudando pelo vosso progresso!

Com os meus melhores cumprimentos, sou de V. Exª”.

Quantas vezes mais lemos esta carta, sentimos que o Comandante Tenente França de Sousa nos emociona e faz sentir mais orgulho pelo passado feito por muitas gerações de bombeiros e dirigentes, sempre motivados e com uma única preocupação, a elevar sempre o prestígio da Associação, seguindo os ideais consagrados pelo primeiro dos fundadores, o brioso Comandante Manuel Maria de Magalhães (1880-1892).
- Peso da Régua, Fevereiro de 2010, J. A. Almeida.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O último discurso do Comandante Cardoso

(Clique na imagem para ampliar)

Durante a sessão solene do 119º aniversário da AHBV do Peso da Régua, que ocorreu no dia 28 de Novembro de 1999, o Comandante Cardoso (1959-1990) recebia a condecoração máxima da Liga dos Bombeiros Portugueses, o Crachá de Ouro.

A estrutura nacional dos bombeiros portugueses reconhecia-lhe o mérito pessoal e profissional, ao longo de 31 anos ao comando dos bombeiros da Régua, depois de ter recebido a Medalha de Prata de Mérito Municipal, em 1984, na passagem dos seus 25 anos de serviço nos bombeiros reguenses.

Na sua homenagem de despedida, com a passagem ao quadro de honra, realizada em 1990, o Eng. Álvaro Mota, propôs à Câmara Municipal a que presidia a atribuição da Medalha de Honra da Régua. Por razões que ninguém entendeu, essa distinção foi-lhe negada pela maioria dos vereadores. Perdiam a oportunidade de agradecer a um homem que tanto serviu e honrou a terra onde nasceu, trabalhou, viveu e veio a morreu.

Num artigo de opinião, o Dr. Alcides Sequeira registou a flagrante injustiça dos políticos para com o Comandante Cardoso. Era esse o sentimento de quem conhecia o lamentável sucedido, até hoje nunca corrigido. Observava e lamentava esta incompreensão, dizendo que o Comandante Cardoso teve uma homenagem merecida mas incompleta, por esta simples razão: “se a população da Régua soube agradecer-lhe os seus desinteressados serviços, a Câmara Municipal não correspondeu do mesmo modo”.

Enaltecia-lhe o ilustre causídico o seu carácter humano desta maneira: “Há homens e …homens! Há homens que olham predominante para a sua própria pessoa. São egoístas, os narcisados, aqueles que se revêem nos seus méritos, mas que os não têm e, por isso, são considerados seres …inferiores.

Há, porém, homens que só se sentem bem a praticar o bem, que trabalham para todos os outros homens, com dedicação e com o intuito de serem úteis ao corpo social em que se integram!

E quando o trabalho deles é gratuito, este desapego deixa de ser dedicação para passar a ser devoção.

Está neste último caso Carlos Cardoso dos Santos, o ex-comandante da benemérita Corporação dos Bombeiros Voluntários da Régua!”.

A ele, o caso, nem o afectou nem o diminuiu perante os seus concidadãos, que continuaram a reconhecê-lo como um homem de raras qualidades, que não trabalhou para homenagens ou benesses. Sem nunca o ouvirmos queixar-se, a desconsideração entristeceu-o. A sua vida tinha sido dedicada aos bombeiros por paixão. A simplicidade e a modéstia foram uma constante na sua vida, orientada por altos valores morais. Sabia que tinha cumprido uma missão com altruísmo. Os afectos da esposa, D. Cândida Cunha, dos familiares mais próximos e dos velhos amigos deram-lhe sempre força para viver e ser feliz.

A atribuição do Crachá de Ouro foi uma proposta da direcção presidida por José Alfredo Almeida (1998) e do comando. Mereceu o apoio incondicional de Rodrigo Félix, também seu amigo e admirador, presidente da direcção da Federação dos Bombeiros de Vila Real, que considerava o Comandante Cardoso como um dos melhores do seu tempo.

Com regozijo pela notícia da atribuição desta condecoração, o Dr. Camilo de Araújo Correia numa crónica intitulada “Um dia, nome de rua”, publicada no “Jornal de Matosinhos”, em 17 de Março de 2000, reconhecia-lhe os elevados méritos e concedia-lhe um magnífico louvor:

“A notícia da atribuição do Crachá de Ouro ao Comandante Carlos Cardoso dos Santos, por parte do Conselho Executivo da Liga dos Bombeiros Portugueses, não me surpreendeu. Teve, sim, o condão de me comover, ao ponto de cerrar os olhos por uns instantes. Instantes que chegaram para recordar 45 anos de amistosa relação com o Senhor Carlos Cardoso dos Santos.

(…)

Não conheci tão de perto o mérito do senhor Carlos Cardoso dos Santos, como devotado Comandante dos Voluntários da Régua. Mas como reguense, atento e orgulhoso dos seus Bombeiros, posso testemunhar que nunca a nossa Corporação conheceu tão áureo período de eficiência, disciplina, diplomacia e expressão humanitária.

A Liga dos Bombeiros Portugueses deixa na honrosa farda do senhor Carlos Cardoso dos Santos um crachá de ouro. Cada reguense, ao abraçá-lo, lhe deixa no peito um crachá de fraternidade e gratidão”.

Este testemunho insuspeito, por sinal de alguém que também foi presidente de direcção da associação, revela o valor do Comandante Cardoso. Conhecemos, por estes e mais depoimentos, o que tantos pensaram sobre ele. Só que pouco sabemos do que ele próprio pensou desta sua missão. Assim, como temos em mão o seu discurso manuscrito que leu na cerimónia a agradecer a distinção da Liga dos Bombeiros Portugueses, faz todo o sentido transcrevê-lo na íntegra:

“Cerca de dez anos volvidos depois da minha passagem ao quadro honorário do Corpo de Bombeiros desta Associação, sou surpreendido com a atribuição do mais alto galardão que a Liga dos Bombeiros Portugueses concede aos homens e mulheres merecedores de tal distinção.

Mas a mim, velho comandante que serviu activamente mais de 30 anos, nunca considerei a Liga devedora desta insígnia.

Quem me conhece, sabe que nos diversos cargos que desempenhei em instituições da nossa terra, nunca procurei obter homenagens ou benesses. Tive sempre a preocupação de me referir no plural às realizações levadas a cabo por essas instituições. Parece-me que nunca disse: eu, só pelo facto de ser comandante ou ser presidente. Tinha cuidado de sempre dizer: nós.

Mas aconteceu que durante o meu comando se passaram factos que serão eternos marcos no historial dos bombeiros da Régua e projectaram a associação por este país fora.

Iniciou-se o reequipamento do Corpo Activo, realizou-se a ampliação do quartel-sede, construiu-se um bairro de 36 habitações, celebrou-se com brilhantismo o centenário da fundação da Associação e a Régua foi sede do 24º Congresso Nacional dos Bombeiros Portugueses, onde se tomaram decisões que se repercutiram nos congressos seguintes.

No mês de Setembro de 1980, a Régua foi o centro das atenções do país, com o decurso de quatro dias festivos e onde se realizou uma das maiores concentrações de bombeiros de Portugal.

Até no aspecto operacional surgem no meu comando duas periódicas catástrofes que mau grado todos os esforços oficiais envolvidos ainda não se conseguiram debelar: as cheias no rio Douro e os fogos florestais.

As cheias iniciam-se, com a maior até ao presente, em 1962. A última aconteceu em 1990. Até quando?

Os fogos florestais começam também a deflagrar naquela data. A acção dos bombeiros não se poupa a sacrifícios – até de vidas – e o governo equipa o melhor possível os respectivos corpos de bombeiros mas a luta tem sido desigual. Quando terminará este flagelo?

Em todos os factos que referi fui constantemente parte activa na sua organização e execução e foi sempre minha, com a colaboração dos mais graduados, a direcção de todas as acções dos nossos gloriosos e heróicos bombeiros.

Cumpri dentro das minhas capacidades uma missão que arrebata e empolga quem a desempenha. Testemunho desta afirmação são estes homens bombeiros aqui presentes que se transformam, ao frémito da sirene ao seu chamamento, acorrem céleres e ansiosos no seu cem por um, segundo lhes ocorrer o perigo a que poderão ser sujeitos para salvar.

Como afirmei, a Liga dos Bombeiros Portugueses nada me devia. Nem tão pouco a nossa Associação. Desempenhei funções. Cumpri e quando a idade e motivos de saúde me aconselharam, solicitei passagem ao quadro honorário. Venci a dor deste gesto, mantinha a saudade serena, que está a ser acordada dolorosamente com a concessão deste galardão.

Não vou cometer a estultícia de o recusar agora, porque, apesar de tantas e gratas recordações que desperta, é para mim uma grande honra e motivo de orgulho ser possuidor desta bela insígnia.

Muito obrigado. Vivam os bombeiros da Régua”.

O Comandante Cardoso entendeu não escrever as suas memórias. Se o fizesse ter-nos-ia legado informações preciosas de três décadas de história da Associação e do Corpo de Bombeiros, essenciais para se compreender a vocação do voluntário na Régua, os planos de reequipamento com material e carros de socorro, os apoios dos beneméritos, os modelos de formação e a evolução do movimento associativo e da estrutura operacional.

Apenas deixou escrito este testemunho, um resumido balanço dos objectivos conseguidos nos seus anos de comando. Ao mesmo tempo, revelou-nos a sua personalidade reservada e humilde, que o fez um homem admirado, mesmo por quem dele não tenha gostado, um brilhante comandante dos bombeiros.

Como escreveu o Dr. Duarte Caldeira, no prefácio para o livro da sua biografia - “O Comandante Carlos Cardoso” (2009), do Prof. Damas da Silva, é “um cidadão de medida grande”.
- Peso da Régua, Fevereiro de 2010, J. A. Almeida.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

No regresso de Porto Amélia

“A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente” - Albert Camus.

Contava com humor fino, numa das suas deliciosas crónicas que publicava no jornal “O Arrais”, que é certo que neste mundo é que elas se pagam…que Deus, na sua finita ironia, o tinha acabado por fazer bombeiro, tendo vindo a ser Presidente da Direcção da AHBV do Peso da Régua (1964-1965) por entusiasmo e crédito de um punhado de amigos.

Estamos a evocar, para quem não teve a sorte de o conhecer de perto, o Dr. Camilo de Araújo Correia. Quem foi ou é leitor das suas fantásticas crónicas, sabe que tinha por hábito historiar episódios passados ou observados ao longo da sua vida.

Pela sua passagem nos bombeiros da Régua deixou-nos interessantes e antológicas memórias que permitem perceber a sua paixão pelos soldados da paz remonta ao tempo da infância ou, como ele diz, à idade dos seus primeiros raciocínios. Desde então, passou a admirar-lhe as suas fardas, o seu esforçado trabalho e, de nas suas histórias, contar casos de pitorescos bombeiros, o que permite reconstituir os seus passos até chegar aos destinos da presidência da prestigiada e secular associação.

A sua primeira entrada no quartel dos bombeiros deveu-se ao Dr. Júlio Vilela e a Alfredo Baptista que o convidaram dirigir a redacção de um pequeno jornal, o “Vida por Vida”. Aceite o desafio, o seu nome apareceu no cabeçalho do título e, no dia 1 Agosto de 1956, começava a regular publicação deste órgão oficial da associação.

Cumpriu religiosamente até meados de 1961 a árdua tarefa de pôr, mensalmente, o jornalzinho dos bombeiros na rua, ao encontro dos associados e dos leitores que soube conquistar. Com colaboradores como o escritor João de Araújo Correia, seu pai, conseguiu conquistar a simpatia e o agrado. O jornal ganhou raízes, reconhecimentos e justas condecorações. Alcançou em pouco tempo um sucesso editorial inédito. Mas, uma mobilização para cumprir serviço militar no Hospital Militar 338, de Porto Amélia, em Moçambique, obrigava-o a deixar a direcção do jornal por algum tempo.

Na hora da partida, o “Vida por Vida” fazia a notícia “com mágoa e júbilo”. Dava conhecimento que eram os “altos deveres que cada cidadão tem com a sua pátria.”. Lamentava que “não são só os bombeiros a sentir a sua falta” mas era a própria terá que lhe servia de berço “que ficava a sentir uma vaga que dificilmente preenche”. Concluía o seu autor, à boa maneira transmontana, com um voto de “boa sorte, Dr. Camilo e até breve. Nós não o esquecemos e todos os meses lhe batemos à porta com o Vida por Vida.”

Assim aconteceu, nos dois anos e meio seguintes, o tempo em que esteve destacado, o jornal “Vida por Vida” passou a ser enviado para a sua residência militar, em Porto Amélia, quase como uma garantia que os laços à terra e aos bombeiros nunca se perderiam.

Os laços afectivos não se perderam como até se fortificaram. Ele fazia questão em manter as suas amizades que deixará nos bombeiros. Lembrava os velhos amigos e não deixava de se corresponder por cara com os mais chegados. Estes quando tinham motivos, por mais pessoais que fossem, faziam questão em noticiá-los nas páginas do jornal. Convencidos da sua importância, não deixaram de publicar em forma notícia, os elogios de um louvor atribuído pelo General Comandante da Região Militar, a distinguir-lhe as suas funções como médico e o seu carácter humano.
Alguns tempos antes de acabar a mobilização militar, os amigos tudo fizeram para que aceitasse presidir à direcção da associação dos bombeiros. A prematura morte do Dr. Júlio Vilela (1964) deixara um enorme vazio, como o seu estatuto social e dinamismo, não se encontrava no meio alguém que o pudesse substituir. Fizeram-lhe o pedido e convenceram-no a dar o seu consentimento. O resto que havia a fazer, concluíram à sua maneira e de acordo com os estatutos, convocando a realização das eleições para os órgãos sociais. Como não se apresentaram candidaturas concorrentes, os resultados não tiveram influência. Apenas, tiveram de contar os dias para o seu desejado regresso à Régua.

Em 4 de Julho de 1963, escrevia uma carta ao seu amigo Alfredo Baptista, reguense apaixonado e influente director dos bombeiros, a dar resposta às amostras do muito apreço que lhe faziam manifestar. Estando para breve o seu regresso, os amigos elaboravam planos para o receber num ambiente de honras militares. Esta proposta era compreensível na largueza da amizade, mas era pouco recomendável para agradar a sua maneira de ser. Sem nenhuma hesitação, de imediato, e ainda à distância, recusou-as com palavras elegantes e de fina ironia.

Há muito perdida nos arquivos, entre os bolorentos relatórios de contas e orçamentos de contas apertadas às necessidades de cada ocasião, encontrava-se uma sua carta, manuscrita numa caligrafia inconfundível, que pelo assunto versado é digna de ser desvenda. Essas suas palavras vão fazer sorrir e pactuar com a sua atitude.
Convenceu e desmobilizou os amigos com uma grande simplicidade. Assim mesmo:

“Meu Caro Baptista: Muito me sensibiliza a vossa ideia de me receberem com honras militares…mas não poso aceitá-las. Imediatamente a seguir ao pousar da mobília em Lisboa me transformo no pobre médico da Régua… que sou! As melhores honras que me podem prestar serão as manifestações de alegria pessoal de cada um ao encontrarem-me como um homem da rua…De mim terão todos a continuação de uma grande estima. Vim aqui conhecer todos os ambientes de bairrismo… Sou pela Régua como muito tipos são pelo Salgueiros! As grandes distâncias dão destas doenças…

Um grande abraço do seu velho e certo amigo Camilo.

PS - Mais lhe agradeço que faça uma distribuição de abraços a todos os amigos.”

Dito e feito, os amigos desistiram de lhe fazer as honras militares. A sua opinião não mereceu desrespeito. Ficaram então de organizar uma excursão com os carros dos bombeiros, para o irem esperar a Coimbra. De maneira arrebatada e comovida conseguiram mostrar-lhe uma especial dedicação e amizade, reforçada pelo tempo da sua ausência.

As marcas do reencontro não mais se lhe apagaram das suas memórias. Estas não se fixavam em glórias ou brilhos pessoais. A sua primazia era para os elementos pitorescos, humorísticos e humanos que se sucediam no seu dia a dia. Sem nunca o dizer, ele era naquele momento o presidente de direcção dos bombeiros da Régua. Faltava-lhe apenas tomar posse no cargo, o que aconteceria no dia 12 de Agosto de 1964.

A cerimónia da posse, reconhecendo-a como importante, não a valorizou em demasiada. Assumiu o cargo como um exercício natural de cidadania e com uma preocupação de não ter tempo que a medicina lhe absorvia. Adivinhava-se que na cerimónia da posse, a posse como presidente da direcção dos bombeiros, não fosse um dos momento da sua vida escolhido para ser evocado na cerimónia de uma homenagem promovida, em Julho de 2007, pela Câmara Municipal da Régua.

No majestoso Salão Nobre da Casa do Douro, depois de recordar as muitas voltas e reviravoltas do seu labor de médico e escritor nas horas vagas, foi buscar ao museu das sua memórias, com ternura e indisfarçado humor, o episódio da recepção amistosa dos bombeiros, a meio da sua longa viagem de regresso à Régua.

Do seu belo discurso de agradecimento, mais tarde publicado no jornal “O Arrais”, com o metafórico título “De flor ao peito”, destacamos essa inesquecível passagem:

“Já depois de escrever estas linhas me saltou na memória um episódio que não resisto a contar, nesta hora de fraternidade entre os reguenses.

Faz este Maio 43 anos que regressei de Moçambique, depois de cumprir dois alargados anos de mobilização. Foram de grande reconforto os abraços, beijos e as mil perguntas dos familiares que me foram esperar ao barco que me trouxe.

Não menos reconfortante foi a surpresa que um grupo dos nossos bombeiros me fez, indo me esperar a Coimbra. Foram tão calosos os nossos abraços, que nunca me pareceram tão reluzentes os metais e tão vermelho o carro que os levou. Era, tão efusivos os seus cumprimentos de boas-vindas que cheguei a recear que tocasse a sirene.

Os carros da família e dos bombeiros logo organizaram uma pequena caravana que veio por aí acima, a contar as curvas e as contracurvas de uma estrada do princípio de Portugal.

Entre Moimenta e Lamego, novo e simpático encontro me surpreendeu num dos trechos mais ermos da estrada, esperavam-me um grupo de funcionários do nosso Hospital, onde sobressaíam duas freiras de hábitos a esvoaçar. Por momentos, senti que estava a Régua toda.

Afinal, o ermo em que se deu este encontro, não era assim tão ermo. Quando nos dispúnhamos a partir, demos conta de um homem a gatinhar pelo talude da estrada. Mal Chegou acima, tirou o chapéu, limpou a testa e perguntou espavorido:

-O que foi?!!...O que foi?!!...

Partimos, depois de o sossegarmos com uma breve explicação. O homem lá ficou na beira da estrada, a rodar o chapéu encardido nas mãos que nunca perdem o jeito da enxada.

Apesar de conhecer bem as razões das honrosas presenças neste sempre acolhedor Salão Nobre da Casa do Douro, não resisto a imitar o cavador da estrada de Moimenta:

-O que foi?!!...O que foi?!!...”

Como o seu sentido de humor sempre presente, fez para os presentes, na grande maioria seus velhos amigos, um pequeno esboço do seu auto-retrato. As honras e as homenagens eram o menos importante, não cabiam na dimensão da sua generosidade e no seu feitio humilde, de todo igual à simplicidade do pobre cavador, que o fez sentir-se um homem realizado e feliz até ao fim da vida.

A tempo, a Régua soube agradecer-lhe pelo que fez como médico que tratou e salvou vidas, como escritor de magistrais crónicas, contos e memórias de grandes momentos do Douro, a região demarcada, o rio antes e depois de ser navegável, os seus queridos barcos rabelos em viagens reais e imaginadas com o velho arrais Passarada ao leme, e como um cidadão que serviu voluntariamente a mais nobre das causas humanitárias.

Os bombeiros da Régua, podem dizer com orgulho, que foi um deles, mesmo sem apagar fogos…! Esteja onde estiver, junto Deus, só pode estar acompanhado dos seus velhos amigos bombeiros e dos heróicos e ilustres comandantes, consagrados pelos ideais do altruísmo, caminhando entre o infinito azul e a luz da Eternidade.

No caso de voltarem a precisar da sua ajuda, os bombeiros sabem que responderá imediatamente: -Presente!
- Peso da Régua, Janeiro de 2010, J. A. Almeida.
(Clique nas imagens acima para ampliar)

sábado, 23 de janeiro de 2010

O jornal “Vida por Vida”

Começava a 1 de Agosto de 1956: “Aqui tem o primeiro número do boletim dos Bombeiros da Régua. A ideia de o realizar vem sendo amadurecida há longos meses para que, uma vez saído do prelo não viéssemos a arrepender do seu carácter. Ao princípio era nosso intento fazer dele apenas um mensageiro das actividades da corporação junto dos sócios. Mas, pensando melhor, concluímos que a escassez do assunto viria fatalmente transformá-lo em publicação monótona. (…) Tomando neste aspecto, o Boletim apenas dará vulto aos acontecimentos que dele necessitem para beneficio da Régua, reflectindo-os sem os desvirtuar. Desta maneira, não haverá espaço para tribunas alheias ao aspecto que vimos focando. (…) incluiremos sempre que seja, possível uma página de sabor literário. Um conto, uma crónica ou uma biografia, jamais estragaram um serão…”

Eram estas as primeiras palavras do editorial, intitulado “Certidão de Nascimento”, do número um do jornal “Vida por Vida”, que nesse ano passava a ser publicado como o órgão oficial da AHBV do Peso da Régua, com o objectivo de servir de elo de ligação dos bombeiros aos seus associados e benfeitores.

Teve como primeiro director o Dr. Camilo de Araújo Correia. Depois dele, por se ter retirado pelos seus afazeres de médico, seguiram-lhe nessa função o Dr. Júlio Vilela, Alfredo Baptista, Dr. Vieira de Castro e o Dr. Aires Querubim Meneses.

O seu aparecimento deve-se a uma ideia de Alfredo Baptista, dinâmico e empenhado director, que exerceu vários cargos na Direcção liderada pelo Dr. Júlio Vilela. A ele se deve a ideia e, sobretudo, o muito trabalho para que o jornal vingasse nos seus primeiros anos de vida. Publicou-se entre 1956 e 1974. Tinha distribuição gratuita entre os associados, amigos e benfeitores e todas as associações humanitárias de bombeiros a nível nacional.

Ao longo de 18 anos, o “Vida por Vida” saía uma vez por mês e, em momentos especiais, fez suplementos de assuntos importantes. Era composto e impresso nas oficinas gráficas da Imprensa do Douro.

Teve uma longevidade ainda razoável parta as dificuldades que atravessou. Apenas as circunstâncias históricas impediram-no de atingir a maturidade. Mas, em vida criou fortes raízes na massa associativa, benfeitores e admiradores. Sendo os seus responsáveis amadores, foi graças ao seu esforço e sacrifício que, conhecendo a realidade, conseguiram ter uma vitória sobre o tempo. Se em cada ano saíam doze números do “Vida por Vida” em cada número venciam as dificuldades sem número. Além de que, os textos publicados tinham de ser visados previamente pela censura.

No terceiro aniversário do jornal, o director resumia o seu bom estado, ao dizer de forma humorada que “nascido de um sonho, tem sido este jornalzinho uma espécie de filho enfermiço de quantos o amparam. Da sua educação se encarregam desinteressadamente os colaboradores, com as suas roupas de menino pobre, mas limpinho, sem tem preocupado o brio dos tipógrafos; comerciantes e beneméritos têm conseguido todos os meses dar-lhe força para sair à rua”. Com este espírito de missão e colaboração a saída do jornal era bem sucedida.

Não admira que o “Vida por Vida” tenha sido um dos boletins que prestava melhor informação sobre a actividade dos bombeiros e da causa do voluntariado. Nas suas quatro páginas, tratavam-se de assuntos de interesse nacional, destacam-se as orientações dos congressos, as festas dos aniversários, as obras no quartel, a aquisição de novos equipamentos, a ocorrências dos sinistros mais graves e as cheias no rio Douro, e de assuntos de carácter técnico. Havia ainda lugar para os assuntos citadinos e para as crónicas e histórias literárias. Tinha vários e prestigiados colaboradores, como Dr. Manuel Braz Magalhães, os jornalistas Rogério Reis e Manuel António, os escritores João Bigotte Chorão e Cruz Malpique, o poeta Adolfo Leitão, o Comandante Carlos Cardoso, Manuel Montezinho, António Rodrigues Coutinho, Alberto Valente, Manuel Blanco Pires, Prof. Eurico Patrício e muitos mais.

Entre essa plêiade de nomes, salientava-se o médico e grande escritor reguense João de Araújo Correia. A secção literária era quase da sua responsabilidade. Escrevia a “Enfermaria do Idioma” para ensinar o uso correcto da língua portuguesa, que assinava com o pseudónimo de Constâncio de Carvalho e as deliciosas crónicas, sobre diversos temas da vida e da história local, mais tarde editadas no livro”Pátria Pequena”.

O escritor duriense na introdução ao seu livro, publicado pela Imprensa do Douro, em 1977, não esqueceu a importância do “Vida por Vida”, ao lembrar a tristeza que sentiu com o seu desaparecimento:

“As notas que constituem este livro foram publicadas quase todas sem o meu nome no boletim Vida por Vida.


Mas que é lá isso do boletim Vida por Vida? Responderei a esta pergunta, que o menos curioso das letras me faça, dizendo que o boletim Vida por Vida foi órgão da quase secular Associação Humanitária dos Bombeiros do Peso da Régua.


Publicou-se entre 1956 e 1974 Depois, deu-lhe o tranglomanglo. Morreu em flor. Não chegou a dar fruto.


Chama-se o tranglomanglo ao mau-olhado das bruxas e duendes, seja o que for de maligno, que não deixe ir vante, nos meios pequeninos, qualquer iniciativa útil ao comum. Nesta vila do Peso da Régua, tem assento e quartel esse mau privilégio. Sopra a qualquer lamparina acesa de oratório intelectual.


Compare-se com uma luzinha o boletim Vida por Vida. Veio o tranglomanglo, com boca de raia e pernas de rã, abafou-lhe! Deu-lhe o ar – como se diz, entre comadres, quando se fala de sopro ruim, inimigo do bem e da claridade.

As notas que lancei no Vida por Vida foram variações de temas gratos à minha índole. As menos doces foram setas de papel disparadas pelo meu arco sempre insofrido, contra fealdades e vícios de cunho provinciano. Pouco adiantei com os disparos, porque as setas foram de papel. Mas, sosseguei o arco e a mim me sosseguei no fim de cada arremesso.

Impôs-me a obrigação de publicar este livro uma senhora que aprecia quanto escrevo.

(…)

Não é nebuloso o título do livro, A minha Pátria Pequena é a vila e o concelho do Peso da Régua. Aqui nasci, aqui vivo e aqui morrerei sem espírito provinciano. Sinto-me livre de semelhante espírito, que até nas cidades é empecilho do homem.”



O “Vida por Vida” também não passou despercebido no seio dos bombeiros. Com a devida atenção foi lido de norte a sul do país e mesmo nas ex-colónias portuguesas. Chegou a ter um número elevado de fiéis de leitores, que faziam chegar os seus comentários elogiosos. Através dele, os bombeiros da Régua serviam-se para mostrar a sua imagem de modernidade e de afirmação como um dos melhores e mais e mais eficientes corpos de bombeiros do norte, preparado e instruído pelo Comandante Carlos Cardoso.

O jornal “Vida por Vida” atingiu rapidamente prestígio e notoriedade. O Comandante Manuel Augusto Rodrigues de Amorim, dos Bombeiros Voluntários de Arrifana, apresentou no Congresso dos Bombeiros Portugueses, realizado em Matosinhos (1966), uma proposta para a atribuição de uma Medalha de Ouro, da Liga dos Bombeiros Portugueses, para o jornal. De forma inédita, e pela primeira vez, a magna assembleia aprovava-a por unanimidade e, assim, manifestava o reconhecimento e a importância dos órgãos de comunicação oficiais dos bombeiros portugueses.

Em 1969, o colaborador Rogério Reis expressou num dos seus brilhantes artigos a ideia de que “está por fazer a antologia dos melhores trechos aqui publicados mas não se pode ter-se uma visão exacta do Alto Douro e dos seus problemas sem se atender aos depoimentos neles arquivados”. Na verdade, temos que concordar que “pelas singelas colunas desfilaram mestres da cultura e do bairrismo, como das missões humanitárias que estão na essência dos bombeiros” e ficaram registados diversos “depoimentos aliás sinceríssimos de quem viveu e sofreu o drama das aspirações das criaturas, da economia e de tudo o que interessa a uma causa afinal comum.”

Nos nossos dias, o “Vida por Vida” revela-se um documento histórico com interesse para queira conhecer um pouco melhor a sociedade reguense nas últimas décadas do passado século. A moderna história da Régua não pode dispensar a consulta deste periódico dos bombeiros da Régua. O investigador atento vai descobrir que o fluir da vida da associação se cruzou com alguns dos principais acontecimentos que mudaram os horizontes da cidade e do concelho nos seus aspectos sociais, culturais e humanitários, onde se revelaram cidadãos exemplares com uma especial atitude abnegada e de cidadania, que procuraram valorizar a sua sociedade do tempo, na construção de futuro melhor para todos.
- Peso da Régua, Janeiro de 2010, J. A. Almeida.
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