sábado, 23 de janeiro de 2010

O jornal “Vida por Vida”

Começava a 1 de Agosto de 1956: “Aqui tem o primeiro número do boletim dos Bombeiros da Régua. A ideia de o realizar vem sendo amadurecida há longos meses para que, uma vez saído do prelo não viéssemos a arrepender do seu carácter. Ao princípio era nosso intento fazer dele apenas um mensageiro das actividades da corporação junto dos sócios. Mas, pensando melhor, concluímos que a escassez do assunto viria fatalmente transformá-lo em publicação monótona. (…) Tomando neste aspecto, o Boletim apenas dará vulto aos acontecimentos que dele necessitem para beneficio da Régua, reflectindo-os sem os desvirtuar. Desta maneira, não haverá espaço para tribunas alheias ao aspecto que vimos focando. (…) incluiremos sempre que seja, possível uma página de sabor literário. Um conto, uma crónica ou uma biografia, jamais estragaram um serão…”

Eram estas as primeiras palavras do editorial, intitulado “Certidão de Nascimento”, do número um do jornal “Vida por Vida”, que nesse ano passava a ser publicado como o órgão oficial da AHBV do Peso da Régua, com o objectivo de servir de elo de ligação dos bombeiros aos seus associados e benfeitores.

Teve como primeiro director o Dr. Camilo de Araújo Correia. Depois dele, por se ter retirado pelos seus afazeres de médico, seguiram-lhe nessa função o Dr. Júlio Vilela, Alfredo Baptista, Dr. Vieira de Castro e o Dr. Aires Querubim Meneses.

O seu aparecimento deve-se a uma ideia de Alfredo Baptista, dinâmico e empenhado director, que exerceu vários cargos na Direcção liderada pelo Dr. Júlio Vilela. A ele se deve a ideia e, sobretudo, o muito trabalho para que o jornal vingasse nos seus primeiros anos de vida. Publicou-se entre 1956 e 1974. Tinha distribuição gratuita entre os associados, amigos e benfeitores e todas as associações humanitárias de bombeiros a nível nacional.

Ao longo de 18 anos, o “Vida por Vida” saía uma vez por mês e, em momentos especiais, fez suplementos de assuntos importantes. Era composto e impresso nas oficinas gráficas da Imprensa do Douro.

Teve uma longevidade ainda razoável parta as dificuldades que atravessou. Apenas as circunstâncias históricas impediram-no de atingir a maturidade. Mas, em vida criou fortes raízes na massa associativa, benfeitores e admiradores. Sendo os seus responsáveis amadores, foi graças ao seu esforço e sacrifício que, conhecendo a realidade, conseguiram ter uma vitória sobre o tempo. Se em cada ano saíam doze números do “Vida por Vida” em cada número venciam as dificuldades sem número. Além de que, os textos publicados tinham de ser visados previamente pela censura.

No terceiro aniversário do jornal, o director resumia o seu bom estado, ao dizer de forma humorada que “nascido de um sonho, tem sido este jornalzinho uma espécie de filho enfermiço de quantos o amparam. Da sua educação se encarregam desinteressadamente os colaboradores, com as suas roupas de menino pobre, mas limpinho, sem tem preocupado o brio dos tipógrafos; comerciantes e beneméritos têm conseguido todos os meses dar-lhe força para sair à rua”. Com este espírito de missão e colaboração a saída do jornal era bem sucedida.

Não admira que o “Vida por Vida” tenha sido um dos boletins que prestava melhor informação sobre a actividade dos bombeiros e da causa do voluntariado. Nas suas quatro páginas, tratavam-se de assuntos de interesse nacional, destacam-se as orientações dos congressos, as festas dos aniversários, as obras no quartel, a aquisição de novos equipamentos, a ocorrências dos sinistros mais graves e as cheias no rio Douro, e de assuntos de carácter técnico. Havia ainda lugar para os assuntos citadinos e para as crónicas e histórias literárias. Tinha vários e prestigiados colaboradores, como Dr. Manuel Braz Magalhães, os jornalistas Rogério Reis e Manuel António, os escritores João Bigotte Chorão e Cruz Malpique, o poeta Adolfo Leitão, o Comandante Carlos Cardoso, Manuel Montezinho, António Rodrigues Coutinho, Alberto Valente, Manuel Blanco Pires, Prof. Eurico Patrício e muitos mais.

Entre essa plêiade de nomes, salientava-se o médico e grande escritor reguense João de Araújo Correia. A secção literária era quase da sua responsabilidade. Escrevia a “Enfermaria do Idioma” para ensinar o uso correcto da língua portuguesa, que assinava com o pseudónimo de Constâncio de Carvalho e as deliciosas crónicas, sobre diversos temas da vida e da história local, mais tarde editadas no livro”Pátria Pequena”.

O escritor duriense na introdução ao seu livro, publicado pela Imprensa do Douro, em 1977, não esqueceu a importância do “Vida por Vida”, ao lembrar a tristeza que sentiu com o seu desaparecimento:

“As notas que constituem este livro foram publicadas quase todas sem o meu nome no boletim Vida por Vida.


Mas que é lá isso do boletim Vida por Vida? Responderei a esta pergunta, que o menos curioso das letras me faça, dizendo que o boletim Vida por Vida foi órgão da quase secular Associação Humanitária dos Bombeiros do Peso da Régua.


Publicou-se entre 1956 e 1974 Depois, deu-lhe o tranglomanglo. Morreu em flor. Não chegou a dar fruto.


Chama-se o tranglomanglo ao mau-olhado das bruxas e duendes, seja o que for de maligno, que não deixe ir vante, nos meios pequeninos, qualquer iniciativa útil ao comum. Nesta vila do Peso da Régua, tem assento e quartel esse mau privilégio. Sopra a qualquer lamparina acesa de oratório intelectual.


Compare-se com uma luzinha o boletim Vida por Vida. Veio o tranglomanglo, com boca de raia e pernas de rã, abafou-lhe! Deu-lhe o ar – como se diz, entre comadres, quando se fala de sopro ruim, inimigo do bem e da claridade.

As notas que lancei no Vida por Vida foram variações de temas gratos à minha índole. As menos doces foram setas de papel disparadas pelo meu arco sempre insofrido, contra fealdades e vícios de cunho provinciano. Pouco adiantei com os disparos, porque as setas foram de papel. Mas, sosseguei o arco e a mim me sosseguei no fim de cada arremesso.

Impôs-me a obrigação de publicar este livro uma senhora que aprecia quanto escrevo.

(…)

Não é nebuloso o título do livro, A minha Pátria Pequena é a vila e o concelho do Peso da Régua. Aqui nasci, aqui vivo e aqui morrerei sem espírito provinciano. Sinto-me livre de semelhante espírito, que até nas cidades é empecilho do homem.”



O “Vida por Vida” também não passou despercebido no seio dos bombeiros. Com a devida atenção foi lido de norte a sul do país e mesmo nas ex-colónias portuguesas. Chegou a ter um número elevado de fiéis de leitores, que faziam chegar os seus comentários elogiosos. Através dele, os bombeiros da Régua serviam-se para mostrar a sua imagem de modernidade e de afirmação como um dos melhores e mais e mais eficientes corpos de bombeiros do norte, preparado e instruído pelo Comandante Carlos Cardoso.

O jornal “Vida por Vida” atingiu rapidamente prestígio e notoriedade. O Comandante Manuel Augusto Rodrigues de Amorim, dos Bombeiros Voluntários de Arrifana, apresentou no Congresso dos Bombeiros Portugueses, realizado em Matosinhos (1966), uma proposta para a atribuição de uma Medalha de Ouro, da Liga dos Bombeiros Portugueses, para o jornal. De forma inédita, e pela primeira vez, a magna assembleia aprovava-a por unanimidade e, assim, manifestava o reconhecimento e a importância dos órgãos de comunicação oficiais dos bombeiros portugueses.

Em 1969, o colaborador Rogério Reis expressou num dos seus brilhantes artigos a ideia de que “está por fazer a antologia dos melhores trechos aqui publicados mas não se pode ter-se uma visão exacta do Alto Douro e dos seus problemas sem se atender aos depoimentos neles arquivados”. Na verdade, temos que concordar que “pelas singelas colunas desfilaram mestres da cultura e do bairrismo, como das missões humanitárias que estão na essência dos bombeiros” e ficaram registados diversos “depoimentos aliás sinceríssimos de quem viveu e sofreu o drama das aspirações das criaturas, da economia e de tudo o que interessa a uma causa afinal comum.”

Nos nossos dias, o “Vida por Vida” revela-se um documento histórico com interesse para queira conhecer um pouco melhor a sociedade reguense nas últimas décadas do passado século. A moderna história da Régua não pode dispensar a consulta deste periódico dos bombeiros da Régua. O investigador atento vai descobrir que o fluir da vida da associação se cruzou com alguns dos principais acontecimentos que mudaram os horizontes da cidade e do concelho nos seus aspectos sociais, culturais e humanitários, onde se revelaram cidadãos exemplares com uma especial atitude abnegada e de cidadania, que procuraram valorizar a sua sociedade do tempo, na construção de futuro melhor para todos.
- Peso da Régua, Janeiro de 2010, J. A. Almeida.
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