sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A minha RÉGUA ! - 40

  
Fotos que refletem um estado de alma sobre a nossa cidade


Se participa da rede social 'FaceBook', poderá apreciar a coletânea de imagens 'A Minha Régua' (até ao momento com 704 fotos) no álbum 'Peso da Régua'.
Clique  nas imagens para ampliar. Imagens cedidas por José Alfredo Almeida e editadas para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos. 

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

OS BOMBEIROS DA RÉGUA - O meu testemunho

Desde muito novo que os Bombeiros me fascinam, toda a panóplia de fardas, equipamentos, viaturas, sirenes, movimentações mais ou menos militarizadas e saber que estão ali para nos acudir, marcaram no meu espírito um sentimento de admiração e inveja por não fazer parte, mais tarde, pela intersecção que a minha vida teve com a corporação da minha terra, também a gratidão pelo seu trabalho veio ao de cima. Mesmo em dias como os de hoje, onde tantos valores nos começam a fugir por entre o quotidiano da vida, para mim, o Bombeiro Voluntário da Régua é um caso à parte.

E a primeira lembrança que tenho dos Bombeiros da Régua é a de um desfile de Carnaval, em plena rua dos Camilos, era eu muito miúdo, teria talvez 4, no máximo 5 anos, recordo, já na fase final do desfile, alguns Bombeiros pendurados no carro que, ainda recentemente, fazia de viatura funerária, com artefactos pirotécnicos a iluminarem o ambiente. Localiza-os no momento em que entravam no antigo quartel, ainda na rua dos Camilos.

Se calhar, como muita gente da minha geração, nunca me esquecerei do pavoroso incêndio que, a 8 de Agosto de 1953, deflagrou nos antigos armazéns da Viúva Lopes. Com 9 anos vivi este incêndio como pouca gente, aí morreu um Bombeiro que era amigo da minha família, o João dos Óculos, João Figueiredo de seu nome. Conhecia-o pessoalmente desde tenra idade e pelo seu feitio alegre e divertido, tocava muito bem gaita-de-beiços, granjeou a minha amizade.

Este incêndio foi dos maiores incêndios urbanos que vi, de minha casa na Lousada viam-se as labaredas nos referidos armazéns que ficavam em frente ao Cais Coberto da Estação da Régua. Muitos dos materiais aí armazenados eram inflamáveis e a construção do edifício era parcialmente de madeira, particularmente a nível do 1º andar e no telhado. A sua extinção foi muito difícil, durou três dias, só o nível de qualidade do comando de então e a coragem e a determinação de todo o Corpo Activo evitou que o fogo alastrasse à moagem aí existente. É evidente que este incêndio foi uma autêntica romaria para a Região, julgo que levado pela minha família passei por lá todos os dias e mais do que uma vez.

A Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Peso da Régua foi, e é, uma instituição incontornável ao longo da minha vida já bem longa. Dos 11 aos 16 anos era rara a semana em que não passasse pelo salão de jogos existente no Quartel Delfim Ferreira para jogar uma partida de bilhar. No Carnaval, e não só, sempre que os Bombeiros da Régua organizavam bailes para angariação de fundos, raramente faltei.

Sem poder precisar a data, mas seguramente em finais da década de 80, numa bela manhã de Agosto, por altura das festas da cidade, quando me deslocava para o meu local de trabalho, constato que a sebe feita de silvas e marmeleiros de uma propriedade minha estava queimada numa extensão de mais 100 metros. Preocupado ao ver o desastre, conclui que dormi toda a noite tranquilo enquanto os Bombeiros me apagaram o fogo da sebe. Evitaram que quase 9.000 m2 de vinha ardessem, a vinha tinha levado herbicida recentemente e era muito possível que não escapasse se não fosse a intervenção dos nossos Bombeiros.

Mais recentemente, a 27 de Novembro de 2007, num prédio urbano que tenho na Lousada com 4 habitações contíguas, uma braseira mal cuidada de uma inquilina pegou fogo á sua habitação tendo esta ardido totalmente. O prédio é de construção antiga, e ainda que em toda a zona exterior as paredes sejam em blocos de cimento as divisões interiores são de taipa revestida com cal hidráulica e gesso, o forro e toda a armação do telhado são em madeira, o que significa que facilmente todo o prédio poderia ter ficado destruído. Excelentemente comandados, os bombeiros presentes seguraram o fogo e impediram a sua propagação ao resto do prédio. Quando vi as chamas a consumirem as traves e a madeira do telhado, fiquei convencido que iria tudo pelo ar. Do mal, o menos, só ardeu a referida habitação.

Por tudo isto, aqui fica neste meu testemunho o que de mais importante me parece ser: o meu sentimento de gratidão para com os Bombeiros da Régua. Julgo que serei sempre um homem em dívida.
- Miguel Macedo





Clique nas imagens para ampliar. Imagens e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 30 de Agosto de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue somente com a citação da origem/autores/créditos.

Retalhos da net: Douro - O paraíso esquecido e as histórias que moram lá

- Transcrição de "VISÃO" - 30 de Agosto de 2012:
Reportagem
Douro: O paraíso esquecido e as histórias que moram lá
À margem das excursões turísticas, a região Património da Humanidade ainda guarda memórias, figuras e sabores que atestam o seu caráter genuíno, resistente e sentimental. A VISÃO desta semana propõe-lhe uma viagem aos segredos, dores e alegrias do vale encantado.

Diz-se que quando um galo canta em Barca d'Alva é ouvido em três distritos e dois países. A ponte Sarmento Rodrigues une Bragança e Guarda. A província de Salamanca eleva-se ali ao pé. É aqui que o Douro cai, por fim, nos braços portugueses depois de namoriscar margens ibéricas desde Miranda. Do miradouro do Alto da Sapinha, vê-se tudo isto, mais as águias, imperiais, planando. O resto imagina-se. Visto de perto, este prodígio de homens sobre a natureza árida também encerra fantasmas. Quem diria? Uma estação de comboios, das mais belas que o rio beijou, está entregue a fatalismos e memórias de lua-de-mel. Pelas ruas, homens sonâmbulos ruminam conversas mortas. Esplanadas cansam-se da babugem aos novos cavalos de Troia do rio, cruzeiros a abarrotar de turistas rapinando a paisagem com olhares gulosos, mas apenas isso. "Chegam, entram ou saem dos autocarros, e seguem viagem. É negócio que não deixa um cêntimo nestas terras", lamenta-se Mário dos Anjos, testemunha diária de rebanhos excursionistas com karaokes de Malhão a bordo.

Não se vive dos olhos pasmados ou espantos que vêm e vão.

Oriundo de Vilar de Amargo, o feitor da Quinta da Batoca tem um pretérito imperfeito a bailar na boca. As terras que, do alto de Ligares, piscam o olho a Barca d'Alva significavam tudo para ele. A quinta, das maiores do Douro, "era um jardim perfumado, de vinhas, olivais e amendoeiras", gerando cobiças e atiçando invejas. O escritor Guerra Junqueiro, proprietário, conquistou-a, a palmo, à aridez e pedra rude, mas também à manha e astúcia de uns quantos. Com prosa bruta inscreveu na paisagem um poema visual, de enlevos homéricos. Deixou versos pela casa, esboçados na cal, que agora se vão descascando e apagando como recordações ténues. "Plantou a maioria das oliveiras e ainda se dedicava a partir miolo de amêndoa na varanda, ao serão", conta, de ouvir, Mário dos Anjos.

A casa está trancada há décadas. A fundação que leva o nome daquele que zurziu o sarrafo na monarquia e no povo "resignado" bem tentou abrir portas a residências artísticas, inspirando exuberâncias literárias ou da mesma espécie. Nada feito, sentenciaram os poderes de Estado e a penúria autárquica. Mágoas que nem o restauro dos cardenhos, a apanha da azeitona ou os cachos que Mário leva ao Porto conseguiram apagar.

O LAGAR, TRADIÇÃO REQUINTADA
Longe vão os tempos dos "parranas engravatados" que surripiavam a região e Eugénio de Andrade imortalizou. A cada época a sua moldura pacóvia. Por estes dias, o Douro, domesticado na sua fúria secular de águas livres, deixa-se ir na corrente de elitismos vistosos e manias sensaboronas, resignado a cenário de flirts turísticos sem consequência, mas muito na moda. Se não desaguarem à porta de Cristina Gomes, ali para Escalhão, em Figueira de Castelo Rodrigo, ela até agradece. "Isto é para saborear." O Lagar saiu-lhe do pelo e do coração, não é pasto de excursão.

A empresária agrícola deixou a capital quando a asma da filha recomendou a pureza das raízes. À doença foi um ar que lhe deu e veio a vontade de fincar, de vez, os pés na terra. Com o empenho do marido, Pedro Rocha, restaurou, a partir de ruínas, o lagar dos avós. "Para mim, isto não é um restaurante, é um lugar de afetos", assegura.

Ali, o muro dos antepassados recuperado. Aqui, um trilho antigo, alfaia de madeira e lâmina aguçada, a servir de balcão, no qual repousa um exemplar de Sente e Descobre, guia turístico de Figueira, o mais falado de quantos são editados por estas bandas. Autoria de Daniel Gil, que lançou a ideia dos roteiros a partir d'A Viagem do Elefante, de Saramago, ou não tivesse a odisseia literária do paquiderme Salomão deixado fundo rasto no Douro e mais além.

Pela mão do amigo ou iniciativa própria, Cristina calcorreou casas e lares de terceira idade da região à cata de receitas ancestrais, dadas como perdidas. O pão de trigo chega agora das aldeias. O azeite respeita saberes e sabores rurais de outrora, por isso o polvo à Lagar pode vir à mesa, a boiar. A horta é da época, respeita os ciclos naturais. Queijos, fumeiros e enchidos têm o rótulo da geografia sentimental. A maioria dos vinhos exibe o selo da região demarcada do Douro. Pode ser um Carm, branco, de 2011, ou um tinto Vale de Pios, 2008, ali mesmo, de Escalhão.

Luís Sottomayor, enólogo da Casa Ferreirinha, gosta de chamar ao Lagar a sua cantina. Ao espírito gourmet ou lá o que é, Cristina contrapôs uma ementa em iPad, feita de "tradição requintada". A evidência come-se com os olhos: onde outros rubricam design gastronómico e estrangeirismos pomposos num prato ratado, Cristina exibe mimos de avós em fartas travessas de barro, a fazer jus aos nomes suculentos: tirinhas de porco preto com molho de laranja, cacho de vitela com migas de tomate, lagarada de bacalhau. O doce de ovos com batata é um hino à sabedoria caseira. De "comer e chorar por mais", frase que, por acaso, também dá nome a uma sobremesa de amêndoa de enfeitiçar paladares. Até a morcela doce de Escalhão, com mel e canela, "que já ninguém fazia", renasceu aqui.

ALMENDRA, DOCE E ORGULHOSA
A esta mesa pantagruélica senta-se Alfredo Mendes, décadas de escrita batucada num jornalismo de sabor literário, por vezes devedor de mostos e partilhas gustativas. Ainda cachopo, rumou a Leça da Palmeira levando a aldeia com ele, por dentro dele. Outros o fizeram, por necessidade ou aventura. Almendra, em Vila Nova de Foz Coa, é território de pergaminhos vários, com gravuras rupestres à distância de um rabisco, casas aristocratas e romaria sem igual em todo o Douro, a Senhora do Campo. Ali se teceu o que viria a ser a Lusomundo, a partir da vivenda da família Bordalo. Ali ainda se tricotam episódios da envergadura de Romeu e Julieta, com enredo na Casa dos Caldeiras, onde donzela mal-amada traiu o temido doutor da terra e se enamorou de rapaz do povo. Em tenra idade, ali foi parar Maximino de Sousa, o famoso padre Max, de esquerdas, assassinado à bomba nas fervuras do pós-revolução. "Não vás para padre. És bonitinho e depois as pequenas vão andar atrás de ti", rogava-lhe, sem sucesso, Sezira Ivone, que recorda o catraio que ali fez a instrução primária, bondoso.

Alfredo dedicou anos ao garimpo das alcunhas e dizeres do torrão natal, devolvendo à terra "códigos que nos uniam a todos, carregados de afeto e distinção, fruto de laços harmoniosos e de sangue". Do mapa do tesouro fazem parte mais de três mil termos, condimentados por influências castelhanas, francesas e árabes, e encontrados, até, nas obras de Jorge Amado e Machado de Assis. Em breve, a Câmara de Foz Coa editará este levantamento, ilustrado a partir de precioso arquivo fotográfico, cuidado com saudade por almendrenses como João Varges, radicado no Brasil. As páginas lavram honra e posteridade à Cabra Manhosa, ao Mata-a-Morte, ao Cai-lo-Cú, ao à Puta Gaga, mas também ao Caldo Enchebre ou às Balulas. Não se pense que a empreitada é coisa arcaica, pois não passaram muitos anos desde que um conservador do registo predial viu as cartas para Almendra serem devolvidas à procedência por nelas não constar a alcunha do destinatário.

Freguesia de destino marcado por partidas e chegadas, coube a Jorge Ribeiro e Valerie Censier encontrar aqui a terra a que chamam sua. Ela francesa, artista plástica. Ele de Gondomar, músico, ator e homem de mil ofícios, com percurso certificado pelas portas que abril abriu, onde, cantava-se, a seiva de uma espera tornou tudo mais urgente. Cansados da vida de estrada, Valerie e Jorge assentaram arraiais na vila duriense, depois de viagens ao desatino. Vegetarianos, nem os trajes nem a postura vagamente hippie desencadearam estigmas ou maldições ciciadas. "Fomos acarinhados desde o início. Trouxemos ideias novas, mas absorvemos o espírito da terra", reconhece Jorge.

O casal cuidou da autoestima das gentes da terra e povoados da região. Voluntariou-se para atividades socioterapêuticas junto de crianças e jovens das terras do Coa e organizou caminhadas, vindimas, sessões de ioga, passeios de burro, dignificando natureza e tradições. "Quando acontece algo novo, as pessoas ficam ansiosas", diz Valerie, que agora quer fazer pão em forno antigo. Jorge, esse, já andou no restauro de pombais e aprendeu com os velhotes as artes da enxertia, da poda e das apanhas. É vê-lo animando aldeias, comunidades agrícolas. Qual saltimbanco, carrega às costas espetáculos para crianças e adultos, com reportório e itinerários inspirados na musicoterapia, na pedagogia curativa e socioterapia. Nas horas que nunca sobram é vê-lo vestido de homem paleolítico nas atividades teatrais do Museu do Coa ou em diálogos pessoanos. Lá para finais de setembro aparecerá em Serralves a puxar um burro com livros. "É um espetáculo para crianças. Até o asno pode ser difusor de cultura."

A GUARDIÃ DE LENDAS
Ao final de uma destas manhãs tórridas do Douro, na outra margem do rio, no concelho de Carrazeda, Flora Teixeira já havia recebido nove notificações no Facebook. Deitara-se tarde na véspera: falara com filhos e netos, radicados em Moçambique, pelo Skype.

Levantara-se cedo. Antiga catequista, agradeceu aos céus mais um dia na terra e foi "mata-bichar", não sem antes sintonizar a Ansiães FM, a cujos discos pedidos não falha. Na mesa, repousam, rabiscados a letra redonda, os próximos poemas e artigos sobre as tarefas rurais de antigamente, que publica no jornal da terra, da Associação Cultural e Recreativa de Pombal de Ansiães. A aldeia, onde sobram pouco mais de cem almas, tem tradições teatrais desde 1927 e, no passado, tomou-se de brios na luta contra o analfabetismo.

Os habitantes vivem ainda a ressaca do festival de artes, realizado há semanas. Flora deu um workshop de sabão biológico e andou numa azáfama para acolher artistas, todos com alimento e teto garantido, ano após ano, nas casas dos anfitriões. Aos 82 anos, esta antiga tecedeira e ex-emigrante em África não falta a uma aula de ginástica e mantém a agenda preenchida com atividades onde canta, dança e representa. "Não sei o que é o tédio nem o isolamento", assume, de sorriso aberto. Há uns anos, a filha enviou-lhe, pelo correio, um computador portátil. "Para a melhor mãe do mundo, que nunca se esquece de saber e aprender", escreveu. E ela aprendeu.

O escritor Alexandre Perafita imortalizou-a no património imaterial da região. Flora herdou do avô a veia de narradora. É guardiã de lendas. "Para cima de três dúzias!" Histórias da peste em Pombal ou de mulheres que sonharam com ouro numa fraga que vai contando às crianças, nas escolas. "Sempre inventei monólogos e variedades." Das visitas despede-se de copo em riste, com presunto e queijo "para fazer a boca ao vinho", que é generoso ou fino, diz-se por aqui, com propriedade e acerto. "Não sejam pessimistas, toquem a vida para a frente", brinda.

PAI CALVO, CEMITÉRIO DE XISTO
José Pinto bem gostaria de dizer o mesmo, mas deixaram-lhe uma herança de pedra. Era esse o nome do filme baseado na saga duriense dos romances de Alves Redol, cuja rodagem, nos anos 1990, esteve prevista para Pai Calvo, aldeia fantasma, de xisto, em Armamar. "Ainda andaram aqui uns meses, prometendo que o filme ajudaria à reconstrução da aldeia. Mas depois a empresa faliu e eu fiquei a arder em 600 contos", conta este proprietário de afamada quinta.

A aldeia sofreu com a razia da filoxera, praga que, no final do séc. XVIII, transformou o Douro num cemitério de fragas e gentes, túmulos gravados nas encostas, desesperos atirados ao rio ou suspensos num laço fúnebre de corda. Desde 1930 que não se vislumbra vivalma naqueles carreiros onde repousam 13 casas e lagares, três delas compradas por José Pinto. "Desbastei o mato bravo, arranjei telhados, pus isto à vista." Chamam-lhe "o dono de Pai Calvo" e vagueia horas por ali, entre sonho e alucinação. "Não perdi a esperança de recuperar a aldeia para turismo rural ou museu. É uma questão de honra à memória familiar e de gerações", desabafa, de voz embargada.

A história do Douro está cheia de penitências carregadas entre flores bravas e penedos. Cansaços que, desafiando a natureza esquiva e encostas íngremes, vindimaram, do granito e do xisto, néctares dos céus, empoleirados em vidas precárias. O radioso resultado vê-se, como em nenhum outro lugar, do miradouro da Casa Redonda, na Quinta das Carvalhas, no Pinhão, propriedade da Real Companhia Velha. Dez minutos a subir, em círculo. As nuvens quase tocam a cabeça. O esplendor duriense pode ser apreciado, num ângulo de 360 graus, durante uma das atividades da quinta, do enoturismo à observação de aves.

O Douro anda, entretanto, obstinado em acasalar com a modernidade. Ora agasalhando um ripanço perigoso e sem freio, ora prenhe de rebeldia e inovações. Nos últimos anos, o Pôpa Vinho Doce tinto e o levíssimo Rufete, feito a partir de castas mal-amadas, beliscaram novos e desconfiados apetites. Maria do Céu é mais doces, mas pagou, em invejas e mentalidade retorcida, a fatura da sua magia.

Em Remostias, no Peso da Régua, a Doces do Céu impôs-se pelo saber, os produtos da terra e a lambarice, "mas não à custa destes turistas estrangeiros que aparecem por aqui e regressam com a barriga cheia de paisagem". As Régulas, de avelã, ovos moles e massa folhada, são uma dedicatória à sua terra. As Penaguiotas, pecado de ovos, é tributo aos de Santa Marta. As natas e os lacinhos não têm explicação, nem precisam. Já as Ferreirinhas são diamantes de chocolate, chila, amêndoa, uvas passas e vinho do Porto e trazem água no bico. Homenagem a D. Antónia Ferreirinha, mulher brava do Douro, "mas também uma forma de perpetuar, com doçura, a memória das mulheres da região, cujo destino era ter um bando de filhos, 15 ou 20, fazer o caldo à noite e aturar pancada dos maridos. E olhe que ainda há disto", lamenta-se ela.

AQUI NASCEU O 'VINHO CHEIRANTE'
Na margem esquerda, com vista para o casario estilo pato-bravo da Régua, João Azeredo também anda a matutar nas invejas que uma recente descoberta originou e que ameaça revolucionar a historiografia do Douro. Segundo um estudo do investigador Altino Cardoso, a publicar pela Universidade do Porto, a secular Casa dos Varais ocupa o território onde, em 1142, os monges de Cister iniciaram a produção do "vinho cheirante de Lamego" a partir de castas da Borgonha, para usar nas missas, que viria a ser posteriormente denominado Vinho do Porto. "Comprova-o um documento do Mosteiro de São João de Tarouca. A data, um ano antes da fundação da nacionalidade, até arrepia!", confessa o proprietário da quinta que receberá este legado.

João Azeredo foi apanhado de surpresa. A princípio desconfiado, rendeu-se às evidências. "É uma grande responsabilidade, para mim e para a região. Mas vem sustentar uma convicção pessoal: o Vinho do Porto não é apenas obra de ingleses, da D. Antónia, do Barão de Forrester ou do Marquês de Pombal, como pretendem fazer crer. Foi obra de gente mais simples e humilde", acentua. A Casa dos Varais já tinha sido pioneira no turismo de habitação, mesmo enfrentando resistências familiares. João abandonou o Porto nos anos 1980, deixando para trás a escola agrícola, e evitando o esfarelar da herança familiar. Transformou lagares, melhorou a qualidade das castas, apostou na comercialização. Na Casa dos Varais, manteve-se Maria Rosa, raro património duriense da safra de antigas cozinhas e encantamentos de levar ao lume, devidamente comprovados no arroz de pato e na doçaria. João também põe o avental, mas apenas nas ocasiões em que, fazendo uso do seu único segredo gastronómico, confeciona a Truta do Monge. "É fumada em barrica de vinho do Porto e leva sete ou oito horas a preparar", refere, orgulhoso.

Da janela da sala de jantar, ainda atordoado com os efeitos da novidade recente, repousa o olhar nas águas do Douro e medita nos tortuosos caminhos da região. "Assustam-me os projetos tipo elefante branco. Corremos o risco de replicar a Régua", medonho exemplo estético planeado de costas para o rio e "casas de banho viradas para fora", como lhe chamou D. Duarte Pio de Bragança. "O Douro é tradição, origem, genuinidade", acode Ernestina, a esposa. Ele concorda: "Os projetos e as modas não podem ignorar o rosto humano desta região."

'GANCHINHO' E O RIO CANSADO
Em Baião, a uma hora do Porto, o Douro já vai cansado, antes do encontro com o mar. Já não é bem um rio, esta bacia de águas serenas. "É mais um penico", lamenta Adriano Mouta, 73 anos, um dos últimos barqueiros vivos, imortalizados em Porto Manso, por Alves Redol. Estamos entre a terra do romance e a Pala. Nascido em Porto Antigo, do lado de Cinfães, Adriano mergulhou nas águas outrora matreiras para enganar a fome. "Tinha nove anos. Quando fiz a comunhão, levei sapatilhas emprestadas e mal segurava as calças", conta, enquanto se prepara para matar saudades do tempo em que era apenas Ganchinho, catraio travesso, filho de Joaquim Ruço, corajoso arrais da região.

Para Adriano foram dias e noites, por vezes de "nagalho à cabeça, todo nu", nadando desde Aregos, ou a domar rabelos com 70 pipas, Cockburn, Ramos Pinto, "por aí fora". Em Melres, já as ditas iam mais leves, aliviadas de litros de vinho fino, por conta de um crédito de misérias. Fez exame de quarta classe, com distinção. Disseram-lhe que escrevesse a Salazar. Um amigo embelezou o rascunho. "Acrescente 'A Bem da Nação'", recomendou o padre, influente. Adriano empregou-se na ferrovia, entre Lisboa e Porto. A vida passou-a a ver comboios, nas oficinas. Quando voltou ao Douro, de vez, encontrou-o transtornado, enjaulado em nome de futuros risonhos que poucos viram. Depois, veio o Lúcio, trasladado para o Douro, "que engoliu quanto peixe bom havia: escalo, boga, barbo. Agora só sai peixe mole, esfarelado. Nunca mais comi nada destas águas."

Adriano guarda o Douro dentro de si. Caudais de súplicas e desânimos, mas onde homens e mulheres foram erguidos ao tamanho de gigantes por sonharem com presépios acima do nível das águas. "Foi uma vida tirana. Mas se me tirassem o Douro dos olhos, matava-me logo aqui."

Clique nas imagens para ampliar. Imagens e textos da revista "VISÃO", com a devida vénia. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012. Permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue sómente com a citação da origem/autores/créditos.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Último Tributo a Manuel Carneiro - Símbolo da Fanfarra dos Bombeiros da Régua

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Faleceu Manuel Carneiro, no passado dia 21 de Agosto, com 86 anos, vítima de doença, em sua casa, junto do carinho dos seus familiares, um homem simples que a Fanfarra dos Bombeiros da Régua  (este ano comemorou 36 anos de existência), bem com todos os bombeiros não podem esquecer na  história da sua mais que secular Associação.

Filho adoptivo da Princesa do Douro, cedo a acolheu como seu berço materno. A sua paixão maior foi a Fanfarra dos Bombeiros da Régua que integrou desde a sua criação e fez parte muitos anos, e quase até ao limite das suas forças. Apesar da sua avançada idade, nunca desistiu de pertencer à Fanfarra, servindo como um elo de ligação de sucessivas gerações de adolescentes, que ele ensinou e acarinhou como se fossem seus filhos.

Foi uma figura querida e admirada pelos reguenses, que sempre o viram presente nos ensaios e nos inúmeros desfiles que participou na cidade da Régua e em outros lugares do país, quer fizesse frio, chuva ou calor, dando exemplo aos mais novos e provando a todos nós que os sonhos nunca têm idade.

Como testemunho do superior e desinteressado amor aos Bombeiros da Régua e, muito em especial, à sua Fanfarra escolheu farda da fanfarra que sempre usou em vida como sua última veste, e foi essa que levou para a Eternidade, depois de o seu caixão descer à sepultura no cemitério de Godim, ao som dos clarins tocados pelos jovens da nossa Fanfarra, que se fizeram representar para lhe prestarem uma última homenagem de gratidão.

Faleceu como viveu, um homem simples e sério, mas grande na sua Alma e que, sem qualquer dúvida, será um inesquecível símbolo da Fanfarra dos Bombeiros da Régua. A toda a sua família, a Direcção, Comando e o Corpo de Bombeiros da Associação de Bombeiros da Régua curva-se de respeito perante o seu exemplo de dedicação que certamente não cairá em terra seca, mas sim terra fecunda como é o sagrado solo reguense.

Paz à sua Alma!
- José Alfredo Almeida - Associação de Bombeiros da Régua, Agosto de 2012

Imagem de Manuel Carneiro e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 30 de Agosto de 2012. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012. Permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue sómente com a citação da origem/autores/créditos.