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terça-feira, 12 de novembro de 2013

A Biblioteca dos Bombeiros

“Sempre imaginei o paraíso como uma grande biblioteca.”
Jorge Luís Borges

Estou no alto do Quartel Delfim Ferreira, na varanda da Biblioteca dos Bombeiros, no terceiro piso de um dos edifícios mais bonitos da Régua, onde sobressai uma imponente fachada esculpida em granito pela hábil mão de um grande mestre pedreiro, a observar a paisagem do além Douro, as vinhas de cores outonais que serpenteiam o Vale Abraão e, ao fundo do Salgueiral, uma curva do rio a espreguiçar-se, numa manhã intensa de luz.

Quando, há mais de cem anos, se formaram os bombeiros da Régua, equipados de um carro bomba e algum material rudimentar para apagar fogos, estavam bem longe de imaginar que a casa de leitura, que começou numa velha estante de mogno cheia de livros oferecidos, se tornaria, desde então, um lugar cultural de referência na Régua.

Quem ainda conheceu essa velha estante de livros e se deslumbrou com ela foi João de Araújo Correia quando, muito novo, acompanhava o seu pai, ao tempo bombeiro voluntário, ao quartel. Mais tarde, o homem e o escritor, sem sair do seu sagrado eremitério e com a ajuda dos seus amigos de Lisboa, conseguiu convencer a Fundação Gulbenkian, nos inícios dos anos 60, a fazer da velha estante da sua infância uma biblioteca ordenada, catalogada, com mais obras literárias e edições recentes. Se assim o soube idealizar, depressa lhe fizeram a vontade e nasceu a Biblioteca Dr. Maximiano de Lemos, com livros oferecidos pela benemérita instituição, o que, naquele tempo, foi motivo de regozijo para muitos jovens leitores, ávidos de descobrir novos autores.

Também eu frequentei esta moderna Biblioteca dos Bombeiros da Régua no meu tempo de adolescente. A partir dos meus treze anos tornou-se um lugar de passagem obrigatória, três ou quatro vezes por mês. A bem dizer, eu estava a iniciar-me nos livros, em novas leituras e autores desconhecidos que iam despertar a minha imaginação para lá das portas do pequeno mundo que, até àquele momento, estava ao meu alcance e me era visível da varanda da biblioteca. Confesso que, não sendo um admirador de ficção científica, procurei naquela biblioteca, por recomendação de um amigo, um livro com o estranho título de Fahrenheit 451, da autoria do escritor americano Ray Bradbury, de 1953. Mal eu sabia que nele ia encontrar, como personagem principal, um bombeiro encarregado não de apagar os incêndios, mas de queimar livros. Sim, aquele bombeiro de nome Montag tinha a missão de queimar LIVROS…! Para mim, estava muito claro que a função dos bombeiros nunca seria essa. Queimar livros, um acto que resume apagar, incinerar o conhecimento, a ilusão, a magia e a memória do Universo. A princípio pensei que o autor se tivesse enganado, mas percebi que, admirador de livros e de bibliotecas, onde até escreveu aquela sua obra, pretendia fazer uma crítica aos regimes totalitários de então, que viam o livro como um perigo e um inimigo, ao mesmo tempo que satirizava o poder da televisão e a alienação que ela exerce sobre a maioria das pessoas.

Se hoje recordo o livro que fala de uma missão que nunca será a dos Soldados da Paz é porque quero voltar, ainda que fechada a público, à Biblioteca dos Bombeiros, com tempo para revisitar livros raros que ali se guardam, sempre à espera de novos leitores. 
Quero também lembrar o nobre exemplo de cidadania dos primeiros bombeiros e o seu contributo para organizar uma biblioteca como a nossa. Eram homens generosos, sensíveis e que apreciavam a cultura como uma forma de valorizar e enriquecer as suas vidas. Eles foram pioneiros numa atitude que, naquele tempo, foi aplaudida e acarinhada também pela sociedade civil. De uma pequena estante de livros fizeram uma biblioteca preservada e mantida pelas gerações vindouras, que estimulou os hábitos de leitura e que cresceu com a oferta de milhares de exemplares de colecções de livros raros. Sem terem lido o romance Fahrenheit 451, que haveria de ser publicado na nossa época como uma obra que pretendia prever o futuro, os primeiros bombeiros da Régua conheciam o valor dos livros e a importância de ter uma biblioteca. Entre outros, tiveram à sua disposição na velha estante autores portugueses e estrangeiros, os clássicos e os contemporâneos, e até aqueles que, sendo naturais da Régua, tinham sido publicados a nível nacional, como Afonso Soares, Bernardino Zagalo e Mário Bernardes Pereira. Para além de obras esquecidas destes nossos conterrâneos, encontrei um livro do poeta ultra-romântico João de Lemos (1819-1890), celebrizado pela poesia “A Lua de Londres”, que começa com estes memoráveis versos:

É noite. O astro saudoso 
rompe a custo um plúmbeo céu, 
tolda-lhe o rosto formoso 
alvacento, húmido véu, 
traz perdida a cor de prata, 
nas águas não se retrata, 
não beija no campo a flor, 
não traz cortejo de estrelas, 
não fala de amor às belas, 
não fala aos homens de amor.

O livro do poeta reguense intitula-se Canções da Tarde e a sua primeira edição saiu na Typografia Portuguesa, de Lisboa, em 1875. Sobre esta obra em concreto não se sabe como a crítica fez a sua recensão, mas é interessante salientar que a poesia deste autor mereceu apreciações literárias positivas, como esta de J. A. Barreiros: “cantou o amor, Deus, a Pátria, sentimentos íntimos, em versos de acento melancólico e de grande emoção lírica. (…) O ritmo musical, em algumas composições, é de excelente efeito e apropriado à declamação”. O poeta ultra-romântico teve fiéis leitores e, apesar de as suas obras não serem actualmente reeditadas, o seu nome está referenciado nos compêndios da história da literatura portuguesa como um dos poetas mais marcantes da segunda geração romântica.

Costuma dizer-se que “por trás de cada livro há uma pessoa” e por trás daquele exemplar, encadernado numa capa dura, de Canções da Tarde está alguém muito especial, a pessoa a quem pertenceu o livro, uma benfeitora que, depois de o usar, entendeu oferecê-lo à Biblioteca da Real Associação Humanitária dos “Bombeiros Voluntários” do Pezo da Regoa. Essa mulher não quis deixar a sua dádiva no anonimato e, na capa do exemplar, fez questão de a assinalar, escrevendo um “offerece”, a que acrescentou, numa delicada caligrafia em tinta permanente, a sua identificação. Ainda bem que anotou o seu nome, ficamos a conhecer a sua admiração literária pelos versos escritos por um poeta reguense e, porventura, o gosto das senhoras do seu tempo pela poesia. Mas também ficamos a saber que as obras de poesia romântica rechearam a primitiva estante. A senhora que ofereceu um exemplar de Canções da Tarde foi a D. Leonor Cristina Ermida de Magalhães, esposa do Comandante Manuel Maria de Magalhães, ele que publicou versos românticos nos jornais reguenses.
A pequena vila da Régua que, há mais de cem anos, aspirava a ser o centro comercial e vinhateiro do Douro, viu surgir, no velho Quartel do Largo da Chafarica (hoje conhecido por Largo dos Aviadores), de uma velha estante de livros a sua primeira biblioteca pública graças ao espírito empreendedor dos bombeiros, de alguns dedicados directores e à ajuda de muitos beneméritos anónimos.

A criação da Biblioteca Municipal do Peso da Régua não apaga o pioneirismo daquela que hoje persiste hoje como a famosa Biblioteca dos Bombeiros, motivo de orgulho de todos os associados.
- Peso da Régua, 3 de Janeiro de 2013, José Alfredo Almeida*, Presidente da Direcção da AHBV do Peso da Régua. Atualizado em 13 de Novembro de 2013.
- Sobre a "Biblioteca dos Bombeiros" neste blogue.

*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também cronicas que registam neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2013. Atualizado em Fevereiro e Novembro de 2013. Também publicado no semanário regional "O Arrais", edição de 6 de Fevereiro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

OS BOMBEIROS DA RÉGUA - O meu testemunho

Desde muito novo que os Bombeiros me fascinam, toda a panóplia de fardas, equipamentos, viaturas, sirenes, movimentações mais ou menos militarizadas e saber que estão ali para nos acudir, marcaram no meu espírito um sentimento de admiração e inveja por não fazer parte, mais tarde, pela intersecção que a minha vida teve com a corporação da minha terra, também a gratidão pelo seu trabalho veio ao de cima. Mesmo em dias como os de hoje, onde tantos valores nos começam a fugir por entre o quotidiano da vida, para mim, o Bombeiro Voluntário da Régua é um caso à parte.

E a primeira lembrança que tenho dos Bombeiros da Régua é a de um desfile de Carnaval, em plena rua dos Camilos, era eu muito miúdo, teria talvez 4, no máximo 5 anos, recordo, já na fase final do desfile, alguns Bombeiros pendurados no carro que, ainda recentemente, fazia de viatura funerária, com artefactos pirotécnicos a iluminarem o ambiente. Localiza-os no momento em que entravam no antigo quartel, ainda na rua dos Camilos.

Se calhar, como muita gente da minha geração, nunca me esquecerei do pavoroso incêndio que, a 8 de Agosto de 1953, deflagrou nos antigos armazéns da Viúva Lopes. Com 9 anos vivi este incêndio como pouca gente, aí morreu um Bombeiro que era amigo da minha família, o João dos Óculos, João Figueiredo de seu nome. Conhecia-o pessoalmente desde tenra idade e pelo seu feitio alegre e divertido, tocava muito bem gaita-de-beiços, granjeou a minha amizade.

Este incêndio foi dos maiores incêndios urbanos que vi, de minha casa na Lousada viam-se as labaredas nos referidos armazéns que ficavam em frente ao Cais Coberto da Estação da Régua. Muitos dos materiais aí armazenados eram inflamáveis e a construção do edifício era parcialmente de madeira, particularmente a nível do 1º andar e no telhado. A sua extinção foi muito difícil, durou três dias, só o nível de qualidade do comando de então e a coragem e a determinação de todo o Corpo Activo evitou que o fogo alastrasse à moagem aí existente. É evidente que este incêndio foi uma autêntica romaria para a Região, julgo que levado pela minha família passei por lá todos os dias e mais do que uma vez.

A Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Peso da Régua foi, e é, uma instituição incontornável ao longo da minha vida já bem longa. Dos 11 aos 16 anos era rara a semana em que não passasse pelo salão de jogos existente no Quartel Delfim Ferreira para jogar uma partida de bilhar. No Carnaval, e não só, sempre que os Bombeiros da Régua organizavam bailes para angariação de fundos, raramente faltei.

Sem poder precisar a data, mas seguramente em finais da década de 80, numa bela manhã de Agosto, por altura das festas da cidade, quando me deslocava para o meu local de trabalho, constato que a sebe feita de silvas e marmeleiros de uma propriedade minha estava queimada numa extensão de mais 100 metros. Preocupado ao ver o desastre, conclui que dormi toda a noite tranquilo enquanto os Bombeiros me apagaram o fogo da sebe. Evitaram que quase 9.000 m2 de vinha ardessem, a vinha tinha levado herbicida recentemente e era muito possível que não escapasse se não fosse a intervenção dos nossos Bombeiros.

Mais recentemente, a 27 de Novembro de 2007, num prédio urbano que tenho na Lousada com 4 habitações contíguas, uma braseira mal cuidada de uma inquilina pegou fogo á sua habitação tendo esta ardido totalmente. O prédio é de construção antiga, e ainda que em toda a zona exterior as paredes sejam em blocos de cimento as divisões interiores são de taipa revestida com cal hidráulica e gesso, o forro e toda a armação do telhado são em madeira, o que significa que facilmente todo o prédio poderia ter ficado destruído. Excelentemente comandados, os bombeiros presentes seguraram o fogo e impediram a sua propagação ao resto do prédio. Quando vi as chamas a consumirem as traves e a madeira do telhado, fiquei convencido que iria tudo pelo ar. Do mal, o menos, só ardeu a referida habitação.

Por tudo isto, aqui fica neste meu testemunho o que de mais importante me parece ser: o meu sentimento de gratidão para com os Bombeiros da Régua. Julgo que serei sempre um homem em dívida.
- Miguel Macedo





Clique nas imagens para ampliar. Imagens e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2012. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 30 de Agosto de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue somente com a citação da origem/autores/créditos.