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terça-feira, 8 de outubro de 2013

MILAGRE

A JOSÉ AFONSO DE OLIVEIRA SOARES

Nesse inverno, de tanto chover, as estradas ficaram esbeiçadas. O rio levou pelo pé as vinhas dos nateiros. Das serras tombaram sobre os vales enormes fragas, redondas como jogas de brincar do tempo dos gigantes. Inverno pegado. Pelo Abril dentro, já as árvores se esfoiravam em pétalas brancas e em farrapos de côr, e as abelhas não saíam dos cortiços nem uma borboleta preava nos cálices alagados. Magoava a alma ver afogada em água sombria o sussurro claro do tempo das flores. Tristeza igual só a da cara dos lavradores meanhos quando iam às courelas esburgadas avaloar os estragos do temporal desfeito. Tragédia assim só se podia ler na máscara do cavador crucificado na umbreira dos cardenhos. A Páscoa estava connosco e o céu não se reconciliava com os pobres, nem rogado pelo canto aflitivo das aves. Era só chover, como se Nosso Senhor não tivesse arquitectado o firmamento com mais alegres desígnios.

Parecia um sinal.

Como Deus não bota os males todos a um canto, podia-se descontar um bem nesta desgraça. Debaixo dos escombros, que davam à paisagem o aspecto de bulida, aqui e além, por escava- terra vinda das profundas, nem um copo humano ficara sepultado. Tanto a sábios como a pobres de espírito dava isto que cismar. Inverno amaldiçoado e ninguém perecera fora de sua casa. Podiam-se dar louvores a quem manda…

Muito de admirar era também que certas casas arruinadas, solares antigos, paredes salitrosas de convento, rebutalhados de barbaçãs de guerra dos afonsinhos, permanecessem de pé, inabaláveis como velhinhos recurvos e cobertos de musgo, cuja resistência a todas as doenças causa o espanto dos médicos e a mal rebuçada alegria dos herdeiros.

Em Covelas havia um pardieiro naquelas condições. Chamavam-lhe a Casa das Mónicas, pedreira que vira expirar quatro senhoras decrépitas na alba do nosso século. Essa casa tinha numa padieira quebrada a certidão de idade: 1665.Todavia, mais que a padieira, rezavam da sua vetustez barrigas e cotovelos dos seus panos cobertos de heradeiras, assim como as órbitas vazadas de varandins e janelas, apenas guarnecidas de gonzos ferrugentos. Sem vislumbre de esquadria, parecida avantesma no acto de levantar vôo ou horsa desconjuntada com tropeção nos jarretes. E não caía… Os mendigos, acossados  dos vendavais, era ali que se refugiavam sem susto. As crianças das escolas eram ali que brincavam. Por chuva e por neve, o seu coito era aquele. De verão trepavam às cornijas aluídas e expulsavam dos buracos os zilros, fazendo competência de gritaria com eles. Nestes perigosos brincos não se magoou nunca rapaz nem rapariga – que as raparigas, nas escaladas do casarão esburacado, eram mais atrevidas que os rapazes.

Naquele inverno esperava-se que tombasse, que se afundasse de vez a nau desmantelada das Mónicas. As almas piedosas preveniam os mendigos: ó tio homem, vocemecê não se meta em semelhante lora, que morre lá assapado! As mãis proibiam os filhos de se aproximarem daquela ratoeira, armada pelo demo para os castigar, à falsa fé, das suas travessuras.

- Olhaide! Se vos vejo lá, ponho-vos esse rabo mais negro que esta saia…

Bem se importavam com os pobres e as crianças! Os pobres continuavam, com grande freima, a coçar as costas, roça que roça, nas esquinas de granito. As crianças não tinham outro recreio senão a Casa das Mónicas. Havia de ser o que Deus quisesse.

Tempos antes, andara de povo em povo um maluquinho triste, cuja atitude era tôda de protecção a imaginários seres em perigo. Olhos receosos, mãos enconchadas como se estivessem a acariciar a penugem de oiro de crânios infantis, era, por uma pena, a figura alada que vela crianças dormidas à beira de precipícios.

Uma tal Leopoldina, muito esperteleja para pôr alcunhas, quando o viu em Covelas a primeira vez, baptizou-o logo. É o Anjo da Guarda!

O apodo pegou de raiz. Frondejou em mil aldeias. Até gentes eclesiásticas, em todo o Cima-Douro, ao avistá-lo, soltavam esta graça: o Anjo da Guarda está connosco.

Naquele Inverno rigoroso, não se sabia o sumiço que levara o maluquinho. Estaria por lá entre os potes da cozinha de casa rica ou teria morrido. Se tivesse morrido, bem regalado devia estar, à banda de cima das nuvens, com sol do melhor e bons manjares celestes, enquanto os terreanos, de molhados, começavam a criar barbatanas de robalo.

Ia esquecido o Anjo da Guarda. O mais certo era ter-se lembrado Nosso Senhor de o recolher, porquanto o desgraçadinho andava cá em baixo só para penar.

No sábado de Ramos desse Inverno assinalado, à chuva juntou-se o trovão e o vento. Parecia o fim do mundo, o dia de juízo. Bem carregados podiam ser os carros no Verão seguinte, já que tão molhados se levavam a benzer os ramos. Que, lá diz o rifão: Ramos molhados, carros carregados.

Ás três horas da tarde negra – não há memória de negrume igual – esbugalharam-se os olhos dos aldeões, as queixadas dos aldeões descaíram de súbito. Ouvira-se um fragor medonho. As mulheres foram as primeiras que se puseram de alevante. Com os cabelos colados às costas, aderentes as saias às pernas musculosas, convergiram ao sítio donde partira o formidável estrondo.

A Casa das Mónicas estava por terra.

– Que é da canalha? O meu Zé? Ah! Fernandes! Filho da minha alma! Ah! Marques! Ah! meu ruço, que te não torno a ver!

Ficaram calvas algumas de tanto se arrepelarem. Outras ficaram roucas, outras ficaram gagas. Depois, atiraram-se às pedras que supunham ser as lajes da sepultura dos filhos, e aí se desunharam e se ensanguentaram, enquanto os homens, hirtos e pávidos, eram como bois no açougue, com a choupa espetada, antes de ajoelhar.

Cristo! Daí a pouco, não houve quelho donde não saísse canalha. Ele apareceu o Zé, o Fernandes, o Marques, o Henriques, o Fulgêncio, o Tobias, o Álvaro, quantos rebentos graciosos havia daquelas arrepeladas mães.

Contaram-se e recontaram-se. Estavam  todos. Nem se quer faltava a Mecias, engano da Natureza, que a fizera menina, devendo sair rapaz. Gritou-se ao milagre, que se podia ouvir no Porto ou em Salamanca. Desorientada, a Zefa Maníaca pôs catadura feroz, fechou os punhos, levou-os à cara do gentio, e disse:

– Calaide-vos! O Anjo da Guarda está sempre debaixo das sapadas.

Tresmalhou-se o rebanho. Os rapazes saltavam como cabritos. A Mecias, cabra de chocalho, ia ao chinquelimpé diante do soco materno alçado.

Do maluquinho triste ninguém se lembrava. O tempo desanuviou-se, assim como as caras dos aldeões se desanuviaram. Brilhou o sol à sua vontade, amadurecendo os poucos frutos vingados. Veio o Junho. Ceifou-se de noite por via do calor. Nas varandas de pau, abriram os cravos e as cravelinas – que rico cheiro!

Estávamos no pino do Verão – uma beleza. As vinhas começavam a ruçar. Apanhavam-se à mão pássaros estonteados do calor.

A Casa das Mónicas era um grande moroiço onde se empoleiravam à noite, em mangas de camisa, os trabalhadores suados. Aí se punham a cantar, sem tom nem som, cada um para seu lado, modas nossas e modas raianas, aprendidas nas segadas da Terra - Quente. Ainda foi bem cair a Casa das Mónicas para os cantadores terem poleiro!

Um dia – foi num domingo – apareceu em Covelas, vindo do Brasil, um sobrinho das Mónicas, dono e senhor daquelas ruínas. Era um chincharra-velho – nem há homem pequeno e magro com quem se compare. Escuro como o chocolate, olhos ígneos como os brilhantes que trazia ao peito, falas poucas e muito sossegadas, aí se põe a sondar, a medir amorosamente as pedras que tinham visto expirar as tias.

– Quero levantar esta casa. Se houvesse aí um mestre-de-obras que conhecesse a casa como ela era e ma reconstituísse, dava-lhe muito dinheiro.

Mestre-de-obras não havia outro em Covelas e seus arredores senão o Mestre José Pais. Está por nascer o que lhe há-de levar as lampas em obra de cantaria e de alvenaria. Chamado pelo brasileiro, justa a obra por tuta-e-meia, pois o Mestre José Pais, artista incomparável, nascera para perder e não para ganhar.

– Vamos a isso quando Vossa Senhoria quiser – foram as suas palavras.

Começou a remoção do entulho. Num vão, ajeitado em forma de carneiro rico, estava de pé, encostado a uma parede, o corpo do maluquinho triste. Parecia vivo, e dizem que cheirava bem. Daí a pouco, ficou nuzinho em pêlo. Da vestimenta de cotim e do cordovão dos sapatos fizeram-se relíquias...
- In Contos Bárbaros de João de Araújo Correia

Clique  nas imagens para ampliar. Texto cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editado para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Notas soltas e pessoais sobre a Associação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua

Exerço a profissão de advogado de corpo inteiro, ou, melhor dito, de fio a pavio. Por isso nunca me dediquei à escrita, salvo nos articulados, tal como meu Pai. Já meu avô João de Araújo Correia teve vocação para a escrita, tardia, mas séria.

Exponho esta minha limitação, por mera cautela, e também pelo respeito devido ao leitor.

Pediu-me o Dr. Alfredo Almeida umas breves notas escritas sobre a Associação dos Bombeiros da Régua. Ora, os “Bombeiros da Régua” trazem-me sempre à memória  três episódios.

Em primeiro lugar, o gozo com que o meu Pai  tratava o irmão Camilo, por ter sido Presidente dos Bombeiros. Médico ilustre, o meu tio Camilo nunca por nunca foi pessoa de apagar fogos. Nem devia saber bem o que era uma mata. De modo que aquele cargo foi sempre fonte de piadas entre meu Pai e meu Tio, que terminavam em profunda gargalhada, ora de um, ora de outro.

Em segundo lugar, recordo a guarda de honra, que presenciei, à porta do edifício dos Bombeiros, prestada ao então Ministro da Cultura, Lucas Pires. Eu contava apenas catorze anos, a democracia tardava em consolidar, de modo que uma visita pessoal do Senhor Ministro a casa de meu avô foi um momento alto da vida da Régua, à qual os Bombeiros se associaram de forma majestosa.

Em terceiro lugar, o episódio mais divertido, embora com uma pitada de humor negro.

No ano de 1952 o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra viajou até ao Brasil. Foi, no entanto, uma verdadeira embaixada, pois seguiram alunos, professores, suas esposas e ainda o Reitor. Só para se ter uma ideia, a viagem durou quatro meses, algo que hoje seria impensável.

O meu Pai  também embarcou, na altura com vinte e três anos. O avô João, inicialmente, não o deixou ir. O Prof. Paulo Quintela teve de interceder pessoalmente junto dele, garantindo-lhe que o Joãozinho, durante a viagem, nunca andaria de avião. O avião era encarado pelo meu avô como um bicho malévolo e perigoso. Mas, com esta garantia, meu Pai fez a mala e lá foi, felicíssimo.

O TEUC permaneceu no Brasil três meses, sempre em viagem de um lado para o outro, e realizou grandes espetáculos de teatro. Algumas dessas viagens foram de avião,  daqueles com hélices rudimentares. Tinha de ser assim, pois a vastidão do Brasil a isso obrigava. O meu avô nunca sonhou tal coisa, como é evidente.

Sucede que uma dessas viagens correu muito mal. O avião caía repetidamente em poços de ar, com solavancos terríveis, ao ponto dos ouvidos sangrarem, e de alguns  serem acometidos por desmaios. No meio de semelhante aflição, o Tóssan, actor e humorista, para desanuviar o ambiente,  saiu-se com esta:

“É pá, não faz mal, se morrermos todos será a nossa grande oportunidade de termos funerais nacionais. Notícias em todos os jornais. Um País a chorar os seus estudantes e professores. As urnas todas arrumadas na Sala dos Capêlos. Fantástico! Não se pode perder isto por nada deste mundo! E depois, claro, vêm os bombeiros de cada terra buscar os seus filhos. Já estou mesmo a ver os Bombeiros da Régua, com as fardas reluzentes e alinhadas,  a virem buscar o Joãozinho.”

A Associação dos Bombeiros da Régua foi lembrada, lá nas alturas,  há tantos anos e por este motivo!

Deve, por isso, e por tudo, ser preservada para sempre, pois as memórias do passado tornam-se mais bonitas  no trilho de futuro radioso.
- Gabriel Araújo Correia.

Clique  na imagem para ampliar. Imagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editados para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O Quartel dos Bombeiros da Régua - obra benemérita do arquitecto Oliveira Ferreira

A Associação de Bombeiros Voluntários da Régua, fundada em 1880, teve, desde cedo, a necessidade imperativa de construção de uma sede própria, de forma a substituir as suas exíguas e inoperacionais instalações, primeiro num prédio do largo dos Aviadores e mais tarde, a partir de 1910, na rua dos Camilos. Porém muitos anos se passaram até a ideia se concretizar, num processo complexo e árduo que se prolongou por mais de duas décadas, desde a cedência do terreno na, então, avenida da Liberdade (hoje Dr. Antão de Carvalho), em 1930(1), até à inauguração do quartel em 1955.

Dois artistas assinam o desenho e execução de tão desejado edifício: o mestre pedreiro Anastácio Inácio Teixeira, reguense e admirável executante, e o arquitecto Francisco Oliveira Ferreira (1884-1957), ligado à cidade por laços familiares(2)  mas também profissionais(3). À data com uma obra extensa, em particular na zona do Porto e Vila Nova de Gaia, Oliveira Ferreira oferece o projecto à Associação, conduzindo à construção daquele que se julga ser um dos primeiros quartéis do país desenhado por um arquitecto e por muitos considerado um dos mais belos de Portugal.
Imagem 1. O arquitecto Francisco Oliveira Ferreira

Nascido a 25 de Setembro de 1884, Francisco Oliveira Ferreira inicia a sua formação em arquitectura na viragem do século, ingressando na Academia Portuense de Belas Artes com o seu irmão José (1883-1942)(4), aluno de escultura, e terá como destacado mestre o arquitecto José Teixeira Lopes (1872-1919). Com este colaborará, após a sua passagem pela École Nationale des Beaux-Arts de Paris, em obras como a Casa de Avelino Correia em Vila Nova de Gaia, ou a porta monumental do Museu de Artilharia em Lisboa(5).

Incluído na geração de arquitectos que, nascidos durante os movimentos românticos de exacerbados eclectismos, foram exemplo de tentativas embrionárias do modernismo no nosso país, Oliveira Ferreira aborda na sua obra os novos desafios programáticos e construtivos que confirmam o processo de modernização da sociedade portuguesa: estações ferroviárias, clínicas, centros de lazer, edifícios comercias e edifícios com representatividade institucional. Dos seus projectos destacamos: o edifício do café A Brasileira(6) (1915) e o Club Os Fenianos (1919), no Porto, os Paços do Concelho de Vila Nova de Gaia (1916), o Sanatório Marítimo do Norte (1916) e a Clínica Heliântia(7) (1926-1929) em Valadares, e o Hotel Astória em Coimbra.

Preocupando-se com problemas de desenvolvimento urbano, o arquitecto elabora também alguns planos de urbanização que, apesar de nunca chegarem a ser concretizados, não são de menor importância. Deles são exemplo o plano de arruamentos das praias de Valadares (1917), o plano de união de Vila do Conde e Póvoa do Varzim (1929), o plano de urbanização do Monte da Virgem (1929), ou o complemento para o escadório da Senhora dos Remédios em Lamego (1922).

Porém, Oliveira Ferreira caracteriza-se, sobretudo, pelas trabalhosas mas generosas empresas em que se envolveu, revelando ser um homem de múltiplos interesses, colaborações e preocupações. Neste âmbito destaca-se como: iniciador, impulsionador e membro da Comissão Executiva da Exposição Histórica do Vinho do Porto, realizada em 1932 no salão Silva Porto(8); membro da Comissão Organizadora da Exposição Antonina; fundador do Grupo dos Amigos do Mosteiro da Serra do Pilar, e arquitecto dos primeiros trabalhos de restauro que se fizeram no mosteiro; iniciador e membro da Comissão Organizadora da Exposição de Documentos Artísticos e Scientíficos e de Recordações do Barão de Forrester, realizada na Serra do Pilar em Julho de 1930; e iniciador e membro da Comissão Organizadora da Comemoração do Centenário da Fundação do Município de Vila Nova de Gaia.

Artista até à medula(9), ocupou igualmente longos e pacientes meses da sua vida a organizar uma colecção vastíssima e valiosa de desenhos, e respectivas maquetas, das pias baptismais das freguesias de Portugal(10), e dignas de leitura são ainda as cartas que dirige, em épocas diversas, a figuras da política, das artes e das letras, em defesa da arte nacional - não fosse sua cartilha pessoal o trabalho de Ramalho Ortigão “O Culto da Arte em Portugal” (1896), levando-o para todo o lado no bolso do casaco.
Imagem 2. O quartel em construção, anos 30, A.H.B.V.P.R.
Imagem 3. O quartel concluído, 1955, A.H.B.V.P.R.

Peça integrante da vasta e variada obra de Oliveira Ferreira, que figura no panorama do norte de Portugal como emblemática de uma época e hoje classificada como valor de património local, o quartel Delfim Ferreira(11) cativa a atenção de quem por ele passe, em particular pela singular beleza da sua fachada principal, embelezada com os granitos trabalhados à mão.

Pelo exterior o arquitecto, juntamente com o admirável trabalho do mestre pedreiro Anastácio Inácio Teixeira, recorre à sintaxe do classicismo para uma perfeita articulação do edifício com a cidade. Porém, sob um olhar mais atento, note-se a lenta emancipação dos padrões beauxartianos, substituindo-se o formulário academizante por um funcionalismo operante de que é exemplo o grande vão semicircular que, apesar de um tom monumental, permite, sobretudo, a abundante iluminação do salão nobre. Dentro desta lógica o interior não é menos surpreendente, concentrando-se o arquitecto na clarificação e reforço da dimensão utilitária e funcional desejada através de uma concepção espacial racionalista de apurada técnica construtiva.
Imagem 4. O projecto de ampliação do quartel, anos 80, A.H.B.V.P.R.

Em 1980 o edifício é ampliado com a adição de um novo corpo, de acordo com o projecto inicial de Oliveira Ferreira, ajustando-se o quartel às necessidades de uma maior área social e operacional. Actualmente no piso de entrada encontramos as variadas viaturas de operações, a central de comunicações e os balneários masculinos e femininos; no 1º andar o amplo salão nobre, a sala de reuniões, a secretaria, gabinetes, bar e o espaço museológico; e por último, no 2º andar, encontramos a biblioteca, com a sua varanda em loggia, outros gabinetes, salas de reuniões, salas de formação, e as camaratas, também masculinas e femininas.

Este distinto quartel dos Bombeiros Voluntários da Régua merece a visita de todos nós e deve ser visto, em paralelo com as funções humanitárias desta associação, como importante centro cultural da região duriense, apoiado na sua Biblioteca Maximiano Lemos(12) e no Museu João de Araújo Correia, espaços repletos de objectos e documentos que evocam os nomes, os momentos e o património secular desta instituição.
- Arqª Ana Isabel Ferreira Pinto

1 Terreno cedido pela Comissão Administrativa da Câmara Municipal da Régua, presidida pelo Dr. Mário Bernardes Pereira, ao presidente da Associação de Bombeiros Voluntários da Régua, o Dr. Ernesto José dos Santos e ao comandante Camilo Guedes Castelo Branco;
2 Sobrinho do reguense Sr. Pereira da Costa - VALENTE, Alberto. Crónica Penso que não!, in Boletim “Vida por vida”, ano XIII, nº 142, Julho de 1968);
3 Julga-se ser autor da capela do Asilo José Vasques Osório e do Palacete dos Barretos (actual Biblioteca Municipal da Régua) – GOMES, Paulo Varela. Regresso à Régua, in Jornal de Notícias, 15 Julho 2012; ALMEIDA, Jaime A. O Quartel dos Bombeiros da Régua – notas para a sua história, Peso da Régua, Novembro 2009;
4 Francisco Oliveira Ferreira tem outros dois irmãos: António Oliveira Ferreira e Rita Oliveira Ferreira; mas é com José que realiza frequentes parcerias, de entre as quais o projecto do notável monumento aos Heróis da Guerra Peninsular (1909), em Lisboa;
5 Hoje Museu Militar de Lisboa;
6 Com uma fachada de características Arte Nova, é um dos poucos exemplares da cidade do Porto;
7 Considerada a sua obra mais madura, nela estão presentes valores pouco frequentes na arquitectura portuguesa da época. Assume especial relevo o tratamento racional da estrutura, tornada elemento expressivo por excelência;
8 Com colaboração do pinto Alberto Silva, do comendador António Pacheco da Silva Moreira, do professor Emanuel Ribeiro e do saudoso amigo Dr. Pedro Victorino;
9 GUERRA, Oliveira. O Arquitecto Oliveira Ferreira, in Girassol, Setembro 1955, Vila Nova de Gaia;
10 Cerca de 4.000, desenhadas com absoluto rigor e à escala, de modo a poderem ser executadas em quaisquer dimensões;
11 Curiosamente, Oliveira Ferreira é autor do desenho da capela tumular de Delfim Ferreira, no cemitério do Repouso, no Porto;
12 Criada pouco após a fundação da Associação e enriquecida em 1960 com o apoio da Fundação Gulbenkian, conta hoje com mais de dez mil livros – in Jornal de Notícias, 15 Março 2011;

Clique  nas imagens para ampliar. Texto e imagens cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sábado, 3 de agosto de 2013

Rostos do humanitarismo

Toda a fotografia é um certificado de presença - Roland Barthes

Num texto publicado neste jornal no já distante ano de 1979, João de Araújo Correia, a coberto do pseudónimo Joaquim Pires, interroga-se sobre o paradeiro de retratos pintados que conheceu, mas que perdeu de vista. Procura pistas sobre um retrato de D. Maria II, de autor desconhecido, e dois do seu filho D. Luís I, ambos de famosos pintores portuenses. Evoca ainda retratos de figuras locais como o Heitorzinho e o Chico Doido, obras de um artista também local, Afonso Soares.

Esta pesquisa reflecte o seu empenho na valorização da sua “pátria pequena”, pois “Não é muito rica, não é nada rica em obras de arte a nossa Régua. Deve acarinhar as poucas que possui”. Por isso as antevê no desejado museu municipal, que “precisará de quadros que o embelezem e enriqueçam”. No seu entusiasmo, vaticina que a estas pinturas outros “retratos de senhora e homem pintados por grandes mestres” se hão-de vir juntar, antecipando assim a criação de um espaço consagrado a retratos. Curiosamente, nesta sua demanda, o nosso contista privilegia critérios estéticos, tendo em mente a criação de uma galeria de arte.

Esta é sem dúvida uma das diversas formas de abordar o retrato, remetendo para segundo plano o retratado e as motivações da sua representação pictórica, aspectos que, a serem considerados, conduziriam à constituição de uma galeria de notáveis como aquela que a Santa Casa da Misericórdia de Peso da Régua depositou no Museu do Douro, que a expôs há alguns meses, explorando uma outra faceta da colecção gratulatória. A pluralidade de abordagens do retrato é por si só um sinal das potencialidades desta forma de representação, a qual, precisamente pelos vários aspectos que nela se cruzam, é definida por Didi-Huberman como um “nó antropológico”.

Género clássico da pintura – foi, aliás, como retrato que a pintura nasceu -, até pela sua ligação a esta arte, o retrato foi durante vários séculos privilégio das classes mais elevadas. Através do retrato pintado, chega-nos não só a imagem de uma pessoa, mas também o poder que essa pessoa tem de se fazer representar e, assim, lutar contra o esquecimento. Cumulativamente ou não, a personalidade imortalizada pelo pincel pode ser alguém que se destaca pelos seus feitos. O retrato continua a ser uma forma de distinção, posta, neste caso, ao serviço de uma homenagem que estende o exemplo da pessoa representada aos vindouros, como sucede com os já referidos retratos da Santa Casa da Misericórdia.

Inicialmente tão elitista como o retrato pintado, a fotografia irá, no entanto, alterar este panorama. Depois do daguerreótipo, processo de fixação duma imagem numa superfície surgido em 1839, desenvolveram-se diversos materiais e equipamentos que conduziram à melhoria da qualidade da imagem e da sua reprodutibilidade, à diminuição dos custos e ao uso da máquina fotográfica em contexto privado. Como consequência, a fotografia tornou o retrato acessível a um público mais vasto, que assim passou também a dispor da possibilidade de se representar e afirmar socialmente. Mas há mais, pois o retrato também é uma espécie de espelho no qual cada um pode contemplar-se e (re)conhecer-se. Daí que o culto romântico do “eu” seja igualmente importante para compreender a apetência oitocentista pelo retrato, que vai encontrar na fotografia uma excelente alternativa à pintura, sem que tal implique, contudo, o abandono do retrato pintado. Mesmo a literatura, cuja matéria-prima é a palavra, não deixa de expressar esta tendência retratista.

Lembremos, a propósito, o famoso soneto em que Bocage se diz “Magro, de olhos azuis, carão moreno”, publicado no início do século XIX.

O retrato serve ainda outros propósitos. Através dele também projectamos uma determinada imagem nossa para os outros, os quais têm no fotógrafo o seu representante primeiro. Para além disto, os retratos são uma espécie de passaporte para a imortalidade, uma vez que perpetuam uma imagem do retratado para além do seu desaparecimento. Retrato e memória são, por isso, amigos íntimos. Tudo isto nos ajuda a compreender porque é que, como diz Fernando de Sousa na apresentação disponível na “net” do Espólio Fotográfico Português, “mais de 90% das fotografias realizadas nas primeiras décadas do século XX, em Portugal, eram retratos”.

É precisamente porque o retrato é esta plataforma entre o presente, o passado e o futuro que hoje podemos recordar um antigo bombeiro e presidente da Associação, falecido há já uns anos. O bombeiro Zé Maria, ou Zé Matano como lhe chamavam os amigos, chegou até nós através de dois retratos ainda do tempo do preto e branco, mas nem por isso menos expressivos. Neles se combinam algumas das variáveis deste tipo de fotografias: um deles, feito em estúdio, é obra de um profissional e centra-se na cabeça e parte superior do tronco, ao passo que o outro, de corpo inteiro, foi tirado ao ar livre, talvez por um fotógrafo não encartado.

Uma vez que, como afirma Margarida Medeiros no seu estudo Fotografia e narcisismo, “o retrato fotográfico partilha com toda a espécie de fotografia esta vertigem da observação, do olhar, a dominância da sensorialidade visual”, um pequeno “zoom” sobre cada um deles dar-nos-á pistas que nos revelarão como um retrato é muito mais do que uma imagem.

Comecemos pela fotografia que representa o busto de Zé Maria sobre um invariável fundo cinzento. Pelo contraste com o escuro da farda, é o rosto, elemento identitário fundamental, que se destaca no retrato.

Com a cabeça posicionada a ¾ , o olhar tímido de Zé Maria não enfrenta a câmara, antes parece perdido em busca de algo distante. Absorto em algum pensamento, o nosso retratado não ostenta o semblante risonho de quem “olha o passarinho”. Enquanto o rosto torna bem patente a sua juventude, o seu trajar não deixa dúvida quanto aos ideais que perfilha. Uma vez que a fotografia revela a importância de uma coisa para alguém e, ao mesmo tempo, lhe confere relevância também, ao envergar o uniforme de bombeiro, Zé Maria manifesta a sua identificação com o elevado ideal humanitário dos soldados da paz, mostrando um precoce e exemplar sentido de serviço ao próximo. Os diversos anos que dedicou ao bem comum demonstram que não se tratou de generosidade apenas inspirada pelo idealismo típico da idade. O altruísmo, tão afivelado a si como o capacete à volta da sua face, fazia parte da sua natureza.

Embora seja a imagem que prende o nosso olhar, não podemos esquecer que uma fotografia também é um acontecimento, pelo que as circunstâncias de que resulta permitem vê-la a uma outra luz. De facto, a opção por um fotógrafo profissional, a deslocação propositada ao seu estúdio e a submissão às suas directivas, a cuidadosa selecção da indumentária, indiciam que não se trata de um retrato qualquer. Todo o cerimonial subjacente a este tipo de fotografias resulta do desejo de eternizar a melhor imagem do retratado, entendida no sentido daquela que melhor o representa. Essa imagem, captada num instante preciso, surge cristalizada no que podemos considerar o seu retrato oficial, destinado a constar num “altar de família” ou a servir de penhor de afectos. Era, pois, na pele de bombeiro que Zé Maria se sentia no seu elemento, dando fé não só da sua filantropia, mas também fornecendo um sinal para a posteridade sobre a forma como pretendia ser recordado. Se através do retrato, como antes foi dito, se procura vencer a morte, era como um jovem e convicto bombeiro que ele gostaria de permanecer vivo.

Numa altura em que a fotografia não era tão comum como hoje, Zé Maria fez-se representar como bombeiro ainda uma outra vez, reafirmando a sua ligação à causa humanitária. Em relação a este retrato, é difícil reconstituirmos o contexto que lhe deu origem: não sabemos se foi iniciativa do fotógrafo ou do fotografado, que tipo de fotógrafo é o seu autor e se resultou dum encontro casual entre ambos ou foi previamente combinado. Limitamo-nos por isso ao que nos dizem os nossos olhos. O desmaiado cenário de estúdio deu lugar a um ambiente de exterior cujo pano de fundo se divide quase igualitariamente entre o branco de uma parede iluminada pelo sol e o negro de uma porta. Entre elas, Zé Maria em corpo inteiro. É como se o nosso bombeiro saísse de um quadro para entrar na vida real. Apesar de serem só duas, as molas da roupa que flanqueiam a porta e uma janela que se anuncia lá estão como sinais do quotidiano. São elas os únicos adereços nesta tela despojada. Ainda por cima, o traje de cerimónia do retrato oficial foi substituído pela roupa de trabalho, indiciando o que na vida de bombeiro existe para além de desfiles ou ocasiões solenes. Se é verdade, como sustentam diversos estudiosos, que as fotografias são repositórios das coisas agradáveis da vida, não há dúvida que Zé Maria encarava com prazer a labuta em prol do seu semelhante.

Quanto à sua figura, ela surge bem no meio do retrato, suscitando a nossa atenção. Na cabeça ligeiramente inclinada sobre o lado direito, o rosto, embora esteja de frente, fica em grande parte encoberto pela sombra.

Mesmo assim, é possível vislumbrar uma expressão séria. A face perde o protagonismo e não temos a certeza de estar perante um jovem. Agora é o corpo no seu todo que representa o retratado, alguém que continua a definir-se como bombeiro quase da cabeça aos pés. Na verdade, no corpo descontraído, com as pernas afastadas e um pouco flectidas, sobressaem as mãos firmemente agarradas ao que aparenta ser um cinto, equipamento que, tal como o capacete, remete para as funções de bombeiro, ao mesmo tempo que o identifica. Só faltam as botas para termos perante nós alguém pronto a entrar em acção e auxiliar o seu próximo.

Diz a epígrafe que as fotografias não mentem. Pedaços de papel que guardam fragmentos de uma vida “para mais tarde recordar”, os retratos revelam-nos muito sobre quem através deles sobrevive. Neste caso concreto, qualquer uma das fotografias, mais do que de presença, fala-nos da entrega de Zé Maria a um ideal de solidariedade e fraternidade, graças ao qual a sua história individual se cruza com a história dos bombeiros de Peso da Régua. Aliás, os quase cento e trinta e três anos desta corporação não se entenderiam sem pessoas como Zé Maria. A passagem do tempo pode apagar o nome deles, mas terão sempre numa fotografia um monumento ao seu contributo e ao seu exemplo.
Ana Ribeiro

Clique na imagem para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2013. Texo e imagem cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Uma instituição, um escritor e um dirigente

Nem todas as profissões/actividades geram consensos. Sempre de faca afiada para cortar em casacas alheias, de língua mais vocacionada para dizer mal do que bem, o nosso povo é implacável, parecendo mais feliz a valorizar os defeitos do que a exaltar as virtudes dos cidadãos incumbidos, cada qual no seu posto, de servir a comunidade.

Salvam-se os bombeiros! Em desespero de causa, os que necessitam do seu auxílio, por vezes acusam-nos de demorarem muito tempo a chegar, desabafo justificável em quem se rege por um relógio cujos ponteiros avançam ao ritmo da sua ansiedade. Há que compreender o desespero de quem vê os seus bens, por vezes tão suados e tão parcos, à mercê de labaredas assassinas ou de quem, em perigo de vida, aguarda a chegada de uma ambulância salvadora.

Falar da acção filantrópica e abnegada dos bombeiros é repetir palavras gastas. Eles sempre foram, e ainda são, os ídolos da pequenada, os heróis e o orgulho das populações. Com farda de gala parecem generais. De equipamento de trabalho, limpo à saída do quartel e em estado imprevisível no regresso, impõem-se sem pretensões, agem como super-homens. Não têm tempo de olhar para o lado. Todas as energias se concentram na resposta aos apelos que lhes chegam.

Não posso falar especificamente dos Bombeiros Voluntários da Régua. Conheço um pouco da sua história através da palavra escrita e imagino a sua dinâmica ao ver o “brilhozinho nos olhos” do Dr. José Alfredo Almeida quando deles fala. Também cheguei até eles conduzida pela mão segura e pelo espírito apaixonado do Dr. João de Araújo Correia cujas crónicas são manuais de cidadania, de defesa do património humano, cultural e identitário da região duriense.

Em Pátria Pequena, na crónica “Biblioteca Maximiano de Lemos”, o autor escreve, dividido entre o pessimismo e o optimismo: “Na Régua, é tradição que falhem todas as iniciativas. Falharam as touradas, as exposições fotográficas, o teatro de amadores, o orfeão, a parada agrícola, os desportos náuticos e até o carnaval inventado pelo Chico Pulga. Tudo falhou, menos a Associação dos Bombeiros Voluntários, fundada em 1880, e de ano para ano, mais florescente”.

É do mesmo escritor a avaliação da sua terra feita na citada colectânea de crónicas: “A Régua, donde quer que se aviste, é uma jóia. Mas, o que lhe dá realce é o estojo, isto é, a concha em que assenta, a bacia da Régua, com as suas montanhas, as suas colinas e o seu rio. Tocada de perto, sem escrínio à vista, desfaz-se-lhe o encanto. É uma jóia de chumbo ou, quando muito, de plaqué.”

Esta apreciação, feita em 1959, não perdeu actualidade. A exemplo do que vem acontecendo um pouco por este país, as cidades têm crescido anarquicamente, obedecendo a estereótipos urbanísticos para os quais o conceito de identidade é um anacronismo caturra. Vão resistindo à demolição, libertando-se da lei da morte, além de monumentos de interesse histórico, alguns edifícios de autor, com marcas de determinada época, contraponto risonho à construção de imóveis incaracterísticos, preço alto pago à explosão demográfica.

O edifício do quartel dos bombeiros da Régua é uma pedra preciosa incrustada em colar de pechisbeque. A sua frontaria merece uma paragem no passeio oposto para que possa ser devidamente gozada esteticamente. A harmonia cromática, aliada à elegância e ao bom gosto dos motivos escultóricos, singularizam este exemplar ímpar de arquitectura urbana não residencial.

Se o meu coração está preso, por razões familiares, logo afectivas, aos Bombeiros da Cruz Branca de Vila Real, a minha simpatia abrange, em abraço fraterno, todos quantos, no país e no mundo, assumem como prioridade das suas vidas a defesa de vidas outras.

Termino este sucinto testemunho com uma palavra de apreço pela acção desenvolvida em prol dos Voluntários da Régua pelo Dr. José Alfredo Almeida, enquanto entusiasta presidente da sua direcção e também como investigador incansável da história da Corporação, bem patente no seu livro Memórias dos Bombeiros Voluntários da Régua, exaustiva análise de factos e de figuras que lhes deram corpo.
- M. Hercília Agarez*.

* - M. Hercília Agarez (Vila Real, 1944). Professora e escritora. É autora do livro de crónicas A brincar que o digas (2001), do ensaio Miguel Torga, a força das raízes (2007), na área da ficção de  Histórias que o Povo Tece - Contos do Marão (2011) e do ensaio Dois Homens um só rosto - Temas Torguianos (2013). Desenvolve também uma notável acção cultural, dedicando-se em especial ao estudo de Camilo Castelo Branco, Miguel Torga, João de Araújo Correia e Luísa Dacosta.

Clique na imagem para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Julho de 2013. Texo e imagens cedido s pelo Dr. José Alfredo Almeida. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

O MEU RIO

"... Desse retalho de terra, sempre verde, avistava eu, ao desenfado e sempre que queria, um velho amigo, um trabalhador incansável, que me viu nascer e me abandonou de um dia para o outro. Quero referir-me a um rio arcaico, milenário, que me contava uma história cheia de pavores e doçuras, quando me via sentado, num banco de pinho, ao fundo do meu quintal. esse rio morreu, deixou de ser rio para ser um lago artificial imenso, parado ou pasmado a meus pés, como cadáver que a morte dilatasse.

O dinheiro dos homens, para se multiplicar, a troco de dar luz e energia ao mundo, pega no meu rio, que era bravo e impetuoso como um toiro, e amansa-o em lago. Fez dele um boi no pasto ou uma choca no fim de uma toirada, O meu rio, que era poeta heróico e poeta idílico, ao saber das horas, que as contava de todos os fetios, era também artista. Com que paciência, durante séculos de séculos, não foi esculpindo, na rocha dura, maravilhas de arte... Hoje, lago empanturrado, mais rico que um porco, já não tem força e até se envergonha de pegar no maço e no cinzel. Deixá-lo, que o progresso manda...".
- João de Araújo Correia, in PONTOS FINAIS.
Clique nas imagens para ampliar. Sugestão de texto e imagens do Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Junho de 2013.Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos. 

sexta-feira, 24 de maio de 2013

O HÁBITO E OS MONGES - O Edifício e os Bombeiros da Régua

(Imagem do "Escritos do Douro" publicada em SEGUNDA-FEIRA, 26 DE NOVEMBRO DE 2012 - 132º. aniversário da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua)

Nas minhas deslocações  profissionais e de lazer, tenho visitado – como a maioria dos leitores – diversas vilas e cidades. Para além de Tribunais, Museus, Igrejas, Câmaras, Hospitais etc., etc. são de notória utilidade pública os Quartéis dos Bombeiros.

Há quartéis e quartéis. Conhecem-se quartéis dos soldados da paz que têm o aspecto dum Armazém no rés-do-chão para aparcamento de viaturas e telecomunicações e dum exíguo 1º Andar para serviço administrativo, reuniões da direcção e salão nobre. Conhecem-se terras de iguais ou de maiores dimensões que a Régua mas não têm um Quartel igual ou semelhante. Não vou nomear nenhuma dessas terras por respeito à solidariedade, ao voluntariado e ao bem-fazer, apanágio a todos os bombeiros. Mas, é fácil ajuizar que há poucos Edifícios (dos Bombeiros) no nosso país, com o belo desenho e amplo espaço (cada vez menor no rés-do-chão) do Quartel Delfim Ferreira, na Av. Dr. Antão de Carvalho, na Régua. O Hábito (entenda-se por Edifício) com uma fachada principal granítica bem concebida e ornamentada, suficientemente iluminado e arejado por janelas com padieiras de cantaria, destaca-se na arquitectura da cidade.

Os Bombeiros reguenses e demais Equipa (os Monges) trabalham esforçadamente para servirem, o melhor possível, a Comunidade. Há tempos recebi do Dr. J. Alfredo Almeida uma fotografia histórica que documenta uma das fases da construção; por este meio, lha agradeço. Mas a riqueza e beleza do Edifício não se limitam ao exterior. São extensivas ao seu interior.

O rés-do-chão acolhe: central de comunicações, balneários, sanitários, 8 ambulâncias para doentes (5 de socorro e 3 de transporte), 5 viaturas de combate a incêndios (3 a fogos urbanos e duas a florestais), 2 barcos de socorro a náufragos com uma carrinha de mergulhadores, 1 carro de desencarceramento e ambulância do INEM.

No 1º andar ficam instalados a sala de reuniões da direcção, o salão nobre, a secretaria, gabinete e bar. Ainda aí fica o museu da Corporação denominado “Museu João de Araújo Correia” com uma exposição permanente dum acervo numeroso de peças: antiga bomba extintora braçal, motobombas, extintores, macas antigas, condecorações, prémios, prendas, fotografias, diplomas, bandeiras, estandartes, galhardetes, medalhas, a sineta de Canelas etc. etc. que despertam a curiosidade de visitantes, coleccionadores e são motivo de admiração doutras associações de bombeiros.
(Imagem do "Escritos do Douro" publicada em QUARTA-FEIRA, 4 DE NOVEMBRO DE 2009 - O Quartel dos Bombeiros da Régua - Notas para a sua história)

No 2º andar situam-se a biblioteca, gabinetes, sala de reuniões e formação, e camaratas. Noutras ocasiões, o 2º Andar teve um dinamismo cultural apreciável. Antes da existência da Biblioteca Municipal, ele serviu de alimento espiritual à sociedade da Régua e arredores com o funcionamento activo da biblioteca. Houve um tempo de inactividade, mas tal não lhe retira o merecimento. Muito boa gente leu e estudou nesse Salão ou levou emprestados para casa: jornais, revistas e livros da Biblioteca cujo patrono é Maximiano Lemos. Apesar deste ilustre reguense ser um santo não conseguiu o milagre do regresso de almas fugitivas ao espaço que baptizou. Quanto aos “Monges” (Bombeiros, Comando e Direcção) que há para dizer? Que são donos da protecção civil nas seguintes áreas: saúde, incêndios e acidentes (nas vias e no rio) no perímetro do concelho do Peso da Régua. Nunca é demais lembrar a sua formação na emergência pré-hospitalar e a sua preparação no socorro dos doentes que transportam aos hospitais e centros de saúde. Nos incêndios florestais os Bombeiros respondem também aos apelos do Centro Distrital de Vila Real de Operações de Socorro (CDOS).

O corpo de Bombeiros da Régua, entre voluntários e profissionais, ronda os 80, sendo estes cerca de 20. Tenho conhecimento da atenção que dispensam ao cidadão comum prestando-lhes uma ajuda de cinco estrelas. Se “o hábito não faz o monge” como diz o ditado, neste caso o hábito faz parte do monge. A grandeza e a nobreza do Edifício (o Hábito) de uma Associação de Bombeiros das mais antiga do país (28-11-1880), têm sido bem interpretadas pelos Soldados da Paz, Comandante e Direcção (os Monges), pois, prestando, dedicadamente, os seus imprescindíveis serviços sabem honrar os pergaminhos da memória e da história do concelho do Peso da Régua.

O Hábito e os Monges constituem um riquíssimo tesouro a preservar.
Nota: Como se depreende da leitura, este artigo não trata da Edificação “Sala Museu – Bombeiros Voluntários – Peso da Régua”, sita em frente da sede da Junta de Freguesia da Régua.

- Peso da Régua, 19/5/2013, M. J. Martins de Freitas.


Clique  nas imagens para ampliar. Imagens e texto editados para este blogue. Sugestão de texto do Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Maio de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos. 

sábado, 18 de maio de 2013

Retratos

Ninguém me dá relação de um retrato de D. Maria ll, que existiu ou deve ter existido na Câmara Municipal do Peso da Régua. Eu vi-o, lembro-me de o ver, creio que na Câmara, sendo eu pequenino. Recordo-me do saliente busto da rainha, tão saliente, pintado numa tela, que justificaria o cognome de Boa Mãe – aplicado à filha de D. Pedro IV.

Não sei se foi ou não excelente pintura. Não sei a que pintor se atribuiu. Sei que um bacharel idoso, vindo de Lisboa, quis provar, não sei com que razões, que se deveria atribuir a um pincel obscuro. Dava como autor da obra, um parente de apelido Inácio, conhecido por Inácio da Ribeira.

Ponha-se de parte o capricho reivindicativo do bacharel ansião para perguntar: onde pára o retrato de D. Maria II? Se alguém mo souber dizer, tenha a bondade de mo comunicar num postalzinho, embora o postalzinho, nestes belos tempos, lhe possa custar coiro e cabelo.

Passemos a D. Maria II ao seu segundo filho, que veio a ser, por morte do irmão Pedro, rei de Portugal.

Passemos a D. Luís, homem delicado, que patrocinou a fundação do nosso hospital em 1873. Foi seu patrono, é modo de dizer, até há poucos dias. Hoje, o nosso hospital não tem padrinho. Não tem nome. Confunde-se com qualquer outro. Por amor à centralização ou a descentralização? Responda quem souber.

De D. Luís I conheço dois retratos muito bons. Vi-os muitas vezes no chamado Hospital Velho, na casa onde funciona, hoje em dia, o Centro de Saúde. Retratos muito bons…

O de corpo inteiro é um retrato de rei, com botas de montar e outros atributos de soberania.

Pintou-o, para a nossa Régua, o pintor João Correia, que deixou nome no Porto. É esplêndido!

Mas, para meu gosto, melhor retrato é o de meio corpo é mais humano, menos destinado a fascinar. Saiu das mãos de Resende, mestre portuense amigo de Camilo.

Não sei onde se ostentam agora os dois retratos de D. Luís I. Oxalá estejam a bom recado, que mãos inteligentes e precavidas os protejam. Não é muito rica, não é nada rica em obras de arte a nossa Régua. Deve acarinhar as poucas que possui.

Do sempre saudoso reguense José Afonso de Oliveira Soares, homem tão hábil a escrever com a desenhar e pintar, talento disperso em múltiplos talentos, ficaram por aí alguns quadros, no género retrato, dignos de conservação. O retrato do Heitorzinho e do Chico Doido e mais alguns ficaram para sempre na retina de quem pôde ver e admirar. Quem os possuir não deve atirar com eles para um canto.

Se um dia a Régua se dispuser a instalar na Casa Vaz, abandonada pelo instituto do Vinho do Porto, o museu municipal, que muito lhe vai tardando, precisará de quadros que o embelezem e enriqueçam. Nele ficariam a matar os retratos que mencionei e outros, que tenho visto em casas particulares. Se o Museu for bem organizado e bem defendido, não lhe faltarão beneméritos. Muita gente haverá que deseje distinguir-se, oferecendo ao Museu retratos que se podem perder em sucessivas partilhas. Estou a ver e cobiçar, para o Museu, retratos de senhora e homem pintados por grandes mestres.

- João de Araújo Correia. Publicado no jornal O Arrais, de 4 de Maio de 1979, sob o pseudónimo de Joaquim Pires.

- João de Araújo Correia no blogue "Escritos do Douro".

Clique  nas imagens para ampliar. Sugestão de texto do Dr. José Alfredo Almeida (JASA) para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Maio de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Tertúlia João Araújo Correia - ROTEIRINHO

"A Tertúlia João de Araújo Correia vai realizar, no próximo dia 1 de junho, o 1º Roteirinho em torno da geografia afetiva do escritor, nascido em Canelas.

Chamámos roteirinho a este percurso pedestre pela sua curta extensão, mas também porque o diminutivo exprime o carinho com que nos propusemos pisar sítios andarilhados por João de Araújo Correia.

O seu amor à aldeia natal transparece, a cada passo, nas suas crónicas, trate-se do pelourinho desaparecido, da ermida da Srª das Candeias, do material autêntico ligado aos trabalhos da vinha e do vinho, do artesanato, do sino de bronze, dos jograis Bonamis e Acompaniado e doutras coisas a evocar na caminhada. Ela nos obrigará a paragens impostas pela sua especificidade, como a Fonte do Milho, local de interesse arqueológico, onde um perito na matéria nos prestará os esclarecimentos necessários.

Preocupado com a lentidão do processo de escavações e estudo de uma área a fazer lembrar Conimbriga, o escritor reguense exprime, na crónica “Fonte do Milho”, um voto decerto partilhado com quantos são sensíveis às marcas da nossa ancestralidade que urge preservar.

Inscreva-se e traga um amigo.
"Já não há caminhadas, filas de homens valentes, que levavam a uva ao lagar em cestos altos, inclinados como torres bêbedas de sumo. Tão valentes e tão alegres eram, que dançavam e tocavam debaixo do carrego - pena de passarinho para os ombros de Hércules" (Pó Levantado: 116-117)
- João de Araújo Correia

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sexta-feira, 3 de maio de 2013

As Velhas são o Diabo

Ninguém case com mulher velha. As velhas, ainda que pareçam santas, são o demónio. Que o diga o Frederico. Tinha feito casa e perdeu-a por via da mulher, mais velha do que ele trinta anos.

Este disparate de idades pareceu acertado ao Frederico no dia em que se casou. Ele era um rapaz doente e pobre. Tinha-se estreado como cavador, mas não provara bem na enxada. Derreou-o a primeira cava para toda a vida. Era um pelém. Desistiu da vinha e fez-se comerciante. Melhor dizendo, fez-se feirão, porque a palavra, comerciante é fina de mais para se aplicar ao modo de vida do Frederico. Feirão, sim, porque o negócio do Frederico era vender na feira porcos de criação. Achou que fez bem, casando com uma velha, porque essa velha tinha alguma coisa de seu. Podia aumentar-lhe o negócio com o dote e dar-lhe respeito à casa com os cabelos brancos. Embora doente, o Frederico era activo e até ambicioso. Madrugava como um pássaro e só adormecia pela noite dentro, depois de ter feito de cabeça as contas do negócio.

Esta labuta, em vez de o enfraquecer, fazia-o homem. O ar livre, respirado de costas direitas e independente, por feiras e caminhos, abria-lhe o apetite. Não tinha cor, mas, de ano para ano,. ia-se tornando menos seco e mais robusto. Quando casou, já não era o rapazinho débil que a primeira cava derreara. As moças, quando o viram na igreja receber-se com uma velha, exclamaram: mal empregado!

Não há dúvida que o casório do Frederico foi interesseiro. A velha tinha de seu uma casa ampla, situada fora do povo, mas o quintal... era o melhor pedaço de chão da freguesia. De todas as vezes que o Frederico por ali passava a caminho das feiras, namorava a casa e namorava a cerca. Parecia-lhe que as lojas subjacentes ao prédio e aquele gordo torrão ali ao pé seriam boa cama e refeitório farto para o seu gado. Antes de casar com a proprietária, enamorou-se da propriedade.

Que, valha a verdade, a dona de tão bela regalia – casa e quintal – tinha também seu préstimo. Vivia sozinha e sozinha se desembaraçava de toda a sua lida, que não era pequena. Cavava a horta por suas mãos, fazia de comer, lavava os manachos, ia à lenha, ponteava as meias, remendava as saias e cuidava do vivo como ninguém.

O vivo é o porco ou porcos que habitam uma corte. É a biologia sagrada de uma vivenda. O vivo! Significa o ser vivo por excelência. Ora, em sete freguesias pegadas, ninguém cuidava melhor dos entes que grunhem e não vêem o céu do que aquela mulher. O Frederico mercava-lhe as criações a olhos fechados.

Da admiração da obra à admiração da autora mediou um passo. Mulher que tão asseados bichos criava em sua loja merecia que um homem olhasse para ela. Viva! A senhora Aninhas – chamava-se Aninhas – era mulher perfeita.

Destes cumprimentos, destas exclamações sinceras, até ao casamento foi outro passo. A casa, o quintal e a corte passaram por encanto à categoria de empório comercial do Frederico. A loja, povoada de buliçosos bácoros muito limpos, sempre a coinchar com saudades da mama ou fome de lavagem, parecia uma creche de criancinhas ruças. No meio deles, com uma vide na mão, a senhora Aninhas figurava como ama sem touca, mas, com uma habilidade, um dedo para aquilo, que espantava o negociante. Com dois ou três monossílabos e umas cócegas feitas com a vide no serro dos inocentes – assim os comandava.

Era manifesta a prosperidade do Frederico em bens comprados ao redor da casa – hoje uma leira, amanhã uma vinha, depois uma mata. Davam-lhe os vizinhos, em suas avaliações mentais um pouco invejosas, para cima de cem contos. Como o vissem assim, tão aumentado de teres, começaram a chamar-lhe Tio Frederico e até senhor Frederico. Tanto tens tanto vales.

É raro que o homem sofra mais do que uma paixão. A paixão do Frederico era o negócio. Amava a mulher como auxiliar da sua prosperidade. Punha-a, no que é consideração, acima do cavalo que o levava à feira. Extasiar-se, só se extasiava diante dos bácoros, que representavam dinheiro. Chamava-os – bicá, bicá – com ternura utilitária.

A mulher não era assim. Vivia para o marido. Solteira até aos cinquenta anos, delirou quando se viu casada... e casada com um rapaz novo! Cheia de lágrimas de júbilo na face arregoada pelos anos, arrumava a casa e fazia o jantar do marido. Por amor dele, tornou-se avarenta – sem deixar de ser limpa. Queria-lhe como filho e como esposo. Sabendo-o de compleição delicada, alimentava-o a preceito com ovinhos crus furados com uma navalhinha. Obrigava-o a bebê-los assim, que era, na opinião dela, como faziam melhor. À noite, como o sentisse exausto das jornadas, não se punha a maçá-lo com candonguices. Deixava-o adormecer a contemplá-lo como as mães contemplam os filhos adormecidos no colo.

O Frederico nunca se comovia com a ternura da esposa. Estimava-a como consorte, mas não lhe retribuía o dízimo do carinho. O fito da sua vida era o negócio. A esposa, a casa, o quintal, a corte, os bácoros, eram instrumentos do seu ganha-pão. Estava satisfeito, não arrependido de se ter casado. A senhora Aninhas, ainda que velha, era o seu braço direito na luta que travara contra a doença e contra a pobreza. Era sua sócia. Prezava-a como tal.

No dia em que a senhora Aninhas percebeu que não passava de sócia do marido, quis morrer. Lembrou-se do pai e da mãe – teve saudades da vida de solteira. Ter-se-ia arrependido de casar se a não cegasse o orgulho de ter casado com um rapaz novo. Toda desvanecida, evocava a cena do casamento, o nó dado na igreja.

Entretido com o negócio, o Frederico não pensava na mulher. Quando ia pelos caminhos fora, no passo travado do cavalicoque, à cata de porcos finos para criação, pensava em porcos. Nem nas feiras, no auge do barulho, a imagem da mulher lhe acudia. Era um feirão. Movia-o a ânsia de feirar.

Hoje uma vinha, amanhã um campo, depois uma tojeira ou um matareco, a pouco e pouco o Frederico ia juntando as peças de um casal formoso. Parecia-lhe, de cada vez que comprava uma propriedade, que aumentava a força física. O desaire sofrido na primeira cava ia vingando. Toda a energia do Frederico se aguçava no faro do dinheiro. Sabendo-o casado com uma velha, algumas raparigas novas, vestidas de seda vegetal, diziam-lhe de soslaio a sua graça quando o viam nas feiras. Sem lhes dizer vade-retro, sorriam-lhe de vontade, mas o sorriso dele era indulgente, não conivente com o intuito das moças.

A senhora Aninhas não acreditava na inocência do Frederico. Não compreendia que rapaz tão novo jejuasse tanto. Ela não acreditava. Sentia-se preterida por outra ou outras mais novas do que ela. Chamava nomes feios a estas rivais imaginárias.

Cheirava a roupa do homem, virava-lhe os bolsos do avesso e inspeccionava-os com minúcia para surpreender qualquer pequena prova de culpa marital. Um dia encontrou um pêlo preto aderente ao colete de pelúcio do marido. Pegou no pêlo, aproximou-o dos olhos do marido e exclamou:

– Está aqui, ladrão! Hei-de pô-lo num relicário até a dona aparecer. Quem ma dera pilhar! Este cabelo é de cigana. Gostas de ciganas, ham?

– Ó mulher, isso não é um cabelo. É uma clina do nosso Mulato, explicou, com vontade de rir, o Frederico.
«Olha, mulher, continuou. O Mulato está na manjadoira. Chega-te a ele e verás que lhe adita a clina.»

A senhora Aninhas, meio sorridente, meio confusa, chegou-se a uma janela e soprou o pêlo. Assim ela varresse para sempre os zelos. Que não varria. Debalde defumava a casa. Debalde mandava às bruxas a camisa do homem para análise. As bruxas davam amiga e que eram precisas rezas e esconjuros: terra de cemitério, sal derramado, sapo cozido, etc. Pobre Aninhas! Cumpria à risca a receita das bruxas.

Debalde! Debalde! O seu coração não se aquietava.

Moeu dinheiro a senhora Aninhas para conseguir o apego carnal do Frederico.

Embora... Foi contraproducente esse dispêndio. Ele, que a princípio lhe tolerava os ciúmes, a pouco e pouco os aborreceu. Tanto os aborreceu, que os repeliu certa noite com meia dúzia de socos vibrados no rosto velho da senhora Aninhas. Daí por diante, deixou de dormir com ela. Passou a dormir numa tarimba, na loja do Mulato, por cima da manjadoira.

A casa do Frederico ressentia-se desta desavença. Casa que fora limpa antes de a senhora Aninhas se casar e durante anos depois do casamento, deixou de ser casa para ser montureira. Na corte, os bácoros, deitados em más camas, emagreciam antes de ser vendidos, à míngua de refeições pontuais. Cortava o coração ouvi-los grunhir de fome.

O Frederico, homem que fora casto e trabalhador, amoleceu no negócio e deixou-se seduzir pelas moças que rondavam as feiras com o corpo metido em seda vegetal. Emagreceu como os bácoros. Perdeu o apetite.

A senhora Aninhas chorava do coração a magreza do marido. De noite, não dormia. Espreitava-o da janela do quarto para ver se ele saía da cavalariça ou se metia dentro alguma marafona. Os desvarios do Frederico eram perpetrados em Lamego, na Régua e em Vila Real, durante as feiras. Não tinha pacto com vizinha.

Em vão a senhora Aninhas espreitava o Frederico. Nunca o apanhou com a boca na botija, como ela dizia. Uma manhã porém, da janela do quarto, viu-o cavalgar e partir para uma feira. Responsou-o a Santo António como de costume.

Alongou os olhos no rasto do marido. Pôs-se a chorar. Depois olhou indiferente para umas mulheres que passavam debaixo da janela. Provavelmente, iam também à feira. Deixá-las ir... Lá marchava, a rabo delas, sozinho como sempre, o sapateiro da terra. Amigo de passear, ia à vila por cinco réis de nada. Às vezes ia comprar um novelo de fio. Outras vezes, ia comprar meio quilo de sola. Não tinha quem lho comprasse? Farto fosse ele de passear neste mundo e no outro. Atrás do sapateiro, caminhava uma mulher de idade, com o perico do cabelo erecto debaixo de uma mantilha rota. Era a Bártola alcoviteira. Ao lado da Bártola, a olhar para o chão, ia muito melada a Candidinha beata, rapariga linda e bem feita, mas triste como a noite. Que ia ela fazer ao lado de semelhante coira? Não a enojava a sombra de uma coruja? Qual enojava? Olhou a furto para a cavalariça do Mulato, coseu-se com a companheira e lá seguiram ambas por ali abaixo. Ter com quem? No peito da senhora Aninhas, deu-lhe salto o coração. Tate! A sonsa da Candidinha falava com o seu homem.

Ficou a cismar, sem comer nem beber, presa à janela todo o santo dia. Ali ficou até o escurecer. Viu chegar o marido, passar diante da porta do sapateiro, com um rolo de sola debaixo do braço, e, na cauda do cortejo que regressava à aldeia, a sonsa da Candidinha, pisando a sombra da desavergonhada Bártola. Como de manhã, a Candidinha relanceou os olhos à loja do Mulato.

Presa à janela sem comer nem beber, com o peito arfante contra os vidros, a Senhora Aninhas, ali especada, assim passou a noite.

Rompia a manhã quando saiu da janela. Tocou o sino às avé-marias, rezou pelas bentas almas. Deitou água num alguidar e lavou a cara. Depois saiu do quarto, entrou a uma pequena sala e abriu uma gaveta. Fechou-a outra vez e fugiu para a rua pelas traseiras da casa. Fez isto tão subtil, que nem o marido nem os porcos deram fé.

Caminhou para a aldeia. Entrou numa rua estreita, deu meia dúzia de passos e logo se esbarrou com a Candidinha, que ia para a missa. Nem bons dias, nem boas tardes. Levantou a mão direita, que levava escondida debaixo do avental.

À luz matutina, com um brilho azul, cintilou uma navalha na mão da senhora Aninhas. Foi um relâmpago. A Candidinha caiu redonda, dizendo Jesus e deitando um rio de sangue pelo lado esquerdo do peito. Sangrada, ficou branca como uma açucena.

Quando prenderam a senhora Aninhas, quando a levaram à presença do administrador, quando o carcereiro rodou sobre ela a chave da enxovia, ninguém lhe ouviu um lamento, ninguém lhe viu uma lágrima. Encarava as pessoas com expressão alegre. Voava-lhe ao vento a cabeleira branca como um pendão de vitória.

A senhora Aninhas foi condenada a pena maior. Ao ouvir ler a sentença, deu uma grande risada. Recolheu à cadeia, entre duas praças da Guarda, com a cabeleira branca esvoaçante como um pendão de vitória.

Com a justiça, o homem arruinou a casa, já desfalcada antes do crime por amor dos zelos da senhora Aninhas. No dia seguinte ao julgamento, o Frederico foi à cadeia visitara mulher. Mal que o viu, a velha atraiu-o às grades com palavras meigas. Ele aproximou-se confiado e comovido, mas a senhora Aninhas, em vez de lhe fazer festas, escarrou-lhe na cara e ainda por cima lhe chamou porco.

Chamou-lhe porco e riu-se como uma doida.
Quando o Frederico, de volta ao lar deserto, a pé, que vendera o cavalo, se queixou aos amigos de tanta desgraça junta, consolaram-no os amigos, dizendo:

– Olha, Frederico. As velhas são o Diabo!

- João de Araújo Correia, in Terra Ingrata, 1946

Clique  na imagem para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Maio de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos. 

terça-feira, 30 de abril de 2013

As atribulações de um benfeitor

É célebre o verso segundo o qual “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. A história de Raimundo, no entanto, pode deitar por terra esta harmónica sequência, pois a obra com que sonhou não chegou a ver a luz do dia. Talvez tivesse faltado a colaboração divina... Como, se os seus propósitos eram elevados? Então, em que muro embateram os desígnios de Raimundo?

Antes de esclarecer o mistério, apresentemos o dono deste nome. Ele é a personagem principal de “As desilusões do brasileiro Raimundo”, conto que João de Araújo Correia incluiu na sua Terra ingrata, publicada em 1946. Quando o conhecemos, o nosso protagonista tem cinquenta anos e está de volta ao seu torrão natal, onde nada mudou desde que o deixou. É, pois, mais uma figura de brasileiro que vem juntar-se a uma extensa galeria para a qual contribuíram autores como Camilo, Eça, Fialho, Trindade Coelho, Torga, entre muitos outros.

Raimundo, tal como os seus congéneres literários, regressa rico do Brasil. Distingue-se, no entanto, da maioria deles por trazer “ideias progressistas”, como avisa o narrador logo na abertura. São estas ideias que lhe abrem os olhos para a falta de limpeza e asseio dos seus conterrâneos e que o vão pôr em acção para alterar esta realidade.

Para além de dar esmolas em troca de caras lavadas e de obrigar os lagareiros a lavarem-se antes de pisarem as uvas, decide multiplicar o número de fontes na sua aldeia, de forma a aproximar a água dos seus utentes e, assim, estimular o desejo de limpeza entre os aldeãos. Como a água escasseia na sua terra, dirige-se à Câmara, propondo financiar a sua canalização desde o monte onde abunda até aos fontenários locais, onde ela seria gratuita para todos. Em troca, pretende apenas que o depósito fique instalado num terreno seu que “não tem água para regar uma couve”. O presidente acusa-o de falsa benemerência e pergunta-lhe:

“Que política é a sua?”.

A desconfiança do autarca contrasta com o humanitarismo e civismo de Raimundo:

“- Eu, sior, não tenho política. Minha política é fazer bem. (…) Quiria fazer bem à terra onde nasci”.

Não acreditando nas boas intenções do brasileiro, o presidente, preocupado com o almoço, despede-o, dizendo-lhe para expor o seu plano por escrito à Câmara. Na resposta, esta coloca as seguintes condições para viabilizar o projecto do diligente Raimundo: “feito o abastecimento, a Câmara seria dona e senhora do serviço para o administrar como quisesse. Reservava o direito de negar água de graça a quem a pudesse comprar”. Vendo a edilidade a tentar aproveitar-se do seu empreendimento e a ter que pagar a água que, a expensas suas, chegaria à aldeia, Raimundo desiste da ideia, apesar de a Câmara lhe acenar com uma “sessão solene pelo rasgo de civismo” se aceitasse a proposta apresentada. Honrarias por honrarias, como se vê, não lhe interessam.

Dir-se-ia que o descaso da Câmara pelo bem dos seus munícipes se vê aprovado por aqueles que beneficiariam da obra de Raimundo, como se a Câmara zelasse pelos desinteresses deles. Por isso, em relação a Raimundo, “Todo o poviléu patrício o escarnecia, vendo-o derrotado”. Deve dizer-se que, neste aspecto, o nosso protagonista é vítima de uma reacção comum, na literatura, ao brasileiro. Como refere Guilhermino César no seu estudo O Brasileiro na ficção portuguesa: o direito e o avesso de uma personagem-tipo (1969), “Para os conterrâneos da aldeia, ele era uma avis rara que causava espanto, inveja ou chacota”. Devemos questionar, no entanto, se Raimundo será mesmo conterrâneo dos restantes habitantes da terra onde nasceu. De facto, o seu sotaque, que salpica o conto, as suas ideias inovadoras que rompem com o estabelecido, mesmo a sua benignidade, fazem dele um estrangeiro, alguém com quem a aldeia não se identifica, o que se reflecte em afirmações como “Só quem é brasileiro é que não sabe isto”.

Homem simples e desinteressado, devotado ao bem comum, só depois do imerecido “pontapé aplicado no ponto mais central da sua benemerência” se entrega a um projecto pessoal, o do seu casamento. Antes de falar com a sua eleita, a “elegante, afidalgada filha de um lavrador”, a “única rapariga que se lavava a preceito na aldeia”, “Mandou fazer uma casa de boa cantaria, mobilou-a à moderna e inundou-a de água para banhos em todos os andares”. Também este episódio não vai ter um desfecho favorável a Raimundo, pois Teresa, a flor nascida no meio do lixo por quem o brasileiro se enamorou, recusa o seu pedido de casamento. O desaire amoroso de Raimundo forneceu ao povo mais um motivo de troça, inspirando-lhe “estrofes de rasteiro quilate”. Vê-se, pelo adjectivo “rasteiro”, que o narrador condena o comportamento popular. Ao longo do conto, é ele o único aliado deste “coração singelo, “[d]este bom homem”, que “pensou atiladamente” em várias ocasiões, embora sem sucesso.

Baldado o enlace, o infeliz brasileiro não chega a estrear a habitação que destinara a seu lar. Persistindo no seu sonho de fazer bem ao próximo, decide oferecê-la “ao governo para uma escola”, já que “As aulas, na sua aldeia, funcionavam em míseros cardenhos”. Com base em critérios duvidosos, que certamente nada tinham a ver com a melhoria das condições de trabalho de professores e alunos, um “perito de lunetas” conclui apenas que a casa “estava mal situada e só com grandes obras se poderia adaptar a escola”. Como consequência, “A casa nova ficou entregue aos pássaros. As criancinhas continuaram a frequentar cardenhos em vez de escolas”. Neste mundo às avessas, são os animais que se apropriam de instalações devidas aos humanos, enquanto estes ocupam alojamentos destinados aos animais. Tal como para a Câmara, para esta nova força de bloqueio, o bem comum não é o valor supremo e por isso a aldeia perde mais uma oportunidade de abandonar velhos e prejudiciais hábitos. Resta saber até que ponto não interessava às forças no poder manter inalteradas as condições infra-humanas da vida na aldeia.

Vendo que a sua generosidade não encontrou, novamente, destinatários dignos, Raimundo, “desistiu de fazer bem à terra”. Um relógio para a torre da igreja foi tudo quanto a sua aldeia lhe aceitou. Mesmo este acto, menor quando comparado com tudo o que tentou pôr à disposição dos seus conterrâneos, foi treslido pelo povo, para quem ele foi movido por puro egoísmo, pois “deu-o [ao relógio] para uso próprio. Via as horas da janela do quarto de dormir”. Filho dedicado, como não podia deixar de ser alguém com as características que até agora lhe conhecemos, permaneceu neste meio hostil até à morte da mãe. Depois, mudou-se para o Porto, onde veio a acabar os seus dias.

A história de Raimundo lembra o famoso “Santos da porta …”. Mas há mais. Ao apresentar-nos um brasileiro preocupado com o seu semelhante e dotado de sentimentos altruístas, João de Araújo Correia, como diz Eça de Queirós a propósito de O brasileiro Soares (1886), do naturalista Luís de Magalhães, humanizou uma personagem que o romantismo tinha transformado numa caricatura, cuja imagem de marca eram os joanetes, o materialismo e a palermice. Em contraste com o nosso benemérito desperdiçado, em “As desilusões do brasileiro Raimundo”, são antes as instâncias do poder e a comunidade aldeã que não saem bem no retrato, fazendo pensar que a beneficência só se concretiza em território propício. Afinal, a obra só nasce se todos os homens sonharem.
- Ana Ribeiro.

Clique  na imagem para ampliar. Imagem e texto enviados por Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editadas para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Abril de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.