É célebre o verso segundo o qual “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. A história de Raimundo, no entanto, pode deitar por terra esta harmónica sequência, pois a obra com que sonhou não chegou a ver a luz do dia. Talvez tivesse faltado a colaboração divina... Como, se os seus propósitos eram elevados? Então, em que muro embateram os desígnios de Raimundo?
Antes de esclarecer o mistério, apresentemos o dono deste nome. Ele é a personagem principal de “As desilusões do brasileiro Raimundo”, conto que João de Araújo Correia incluiu na sua Terra ingrata, publicada em 1946. Quando o conhecemos, o nosso protagonista tem cinquenta anos e está de volta ao seu torrão natal, onde nada mudou desde que o deixou. É, pois, mais uma figura de brasileiro que vem juntar-se a uma extensa galeria para a qual contribuíram autores como Camilo, Eça, Fialho, Trindade Coelho, Torga, entre muitos outros.
Raimundo, tal como os seus congéneres literários, regressa rico do Brasil. Distingue-se, no entanto, da maioria deles por trazer “ideias progressistas”, como avisa o narrador logo na abertura. São estas ideias que lhe abrem os olhos para a falta de limpeza e asseio dos seus conterrâneos e que o vão pôr em acção para alterar esta realidade.
Para além de dar esmolas em troca de caras lavadas e de obrigar os lagareiros a lavarem-se antes de pisarem as uvas, decide multiplicar o número de fontes na sua aldeia, de forma a aproximar a água dos seus utentes e, assim, estimular o desejo de limpeza entre os aldeãos. Como a água escasseia na sua terra, dirige-se à Câmara, propondo financiar a sua canalização desde o monte onde abunda até aos fontenários locais, onde ela seria gratuita para todos. Em troca, pretende apenas que o depósito fique instalado num terreno seu que “não tem água para regar uma couve”. O presidente acusa-o de falsa benemerência e pergunta-lhe:
“Que política é a sua?”.
A desconfiança do autarca contrasta com o humanitarismo e civismo de Raimundo:
“- Eu, sior, não tenho política. Minha política é fazer bem. (…) Quiria fazer bem à terra onde nasci”.
Não acreditando nas boas intenções do brasileiro, o presidente, preocupado com o almoço, despede-o, dizendo-lhe para expor o seu plano por escrito à Câmara. Na resposta, esta coloca as seguintes condições para viabilizar o projecto do diligente Raimundo: “feito o abastecimento, a Câmara seria dona e senhora do serviço para o administrar como quisesse. Reservava o direito de negar água de graça a quem a pudesse comprar”. Vendo a edilidade a tentar aproveitar-se do seu empreendimento e a ter que pagar a água que, a expensas suas, chegaria à aldeia, Raimundo desiste da ideia, apesar de a Câmara lhe acenar com uma “sessão solene pelo rasgo de civismo” se aceitasse a proposta apresentada. Honrarias por honrarias, como se vê, não lhe interessam.
Dir-se-ia que o descaso da Câmara pelo bem dos seus munícipes se vê aprovado por aqueles que beneficiariam da obra de Raimundo, como se a Câmara zelasse pelos desinteresses deles. Por isso, em relação a Raimundo, “Todo o poviléu patrício o escarnecia, vendo-o derrotado”. Deve dizer-se que, neste aspecto, o nosso protagonista é vítima de uma reacção comum, na literatura, ao brasileiro. Como refere Guilhermino César no seu estudo O Brasileiro na ficção portuguesa: o direito e o avesso de uma personagem-tipo (1969), “Para os conterrâneos da aldeia, ele era uma avis rara que causava espanto, inveja ou chacota”. Devemos questionar, no entanto, se Raimundo será mesmo conterrâneo dos restantes habitantes da terra onde nasceu. De facto, o seu sotaque, que salpica o conto, as suas ideias inovadoras que rompem com o estabelecido, mesmo a sua benignidade, fazem dele um estrangeiro, alguém com quem a aldeia não se identifica, o que se reflecte em afirmações como “Só quem é brasileiro é que não sabe isto”.
Homem simples e desinteressado, devotado ao bem comum, só depois do imerecido “pontapé aplicado no ponto mais central da sua benemerência” se entrega a um projecto pessoal, o do seu casamento. Antes de falar com a sua eleita, a “elegante, afidalgada filha de um lavrador”, a “única rapariga que se lavava a preceito na aldeia”, “Mandou fazer uma casa de boa cantaria, mobilou-a à moderna e inundou-a de água para banhos em todos os andares”. Também este episódio não vai ter um desfecho favorável a Raimundo, pois Teresa, a flor nascida no meio do lixo por quem o brasileiro se enamorou, recusa o seu pedido de casamento. O desaire amoroso de Raimundo forneceu ao povo mais um motivo de troça, inspirando-lhe “estrofes de rasteiro quilate”. Vê-se, pelo adjectivo “rasteiro”, que o narrador condena o comportamento popular. Ao longo do conto, é ele o único aliado deste “coração singelo, “[d]este bom homem”, que “pensou atiladamente” em várias ocasiões, embora sem sucesso.
Baldado o enlace, o infeliz brasileiro não chega a estrear a habitação que destinara a seu lar. Persistindo no seu sonho de fazer bem ao próximo, decide oferecê-la “ao governo para uma escola”, já que “As aulas, na sua aldeia, funcionavam em míseros cardenhos”. Com base em critérios duvidosos, que certamente nada tinham a ver com a melhoria das condições de trabalho de professores e alunos, um “perito de lunetas” conclui apenas que a casa “estava mal situada e só com grandes obras se poderia adaptar a escola”. Como consequência, “A casa nova ficou entregue aos pássaros. As criancinhas continuaram a frequentar cardenhos em vez de escolas”. Neste mundo às avessas, são os animais que se apropriam de instalações devidas aos humanos, enquanto estes ocupam alojamentos destinados aos animais. Tal como para a Câmara, para esta nova força de bloqueio, o bem comum não é o valor supremo e por isso a aldeia perde mais uma oportunidade de abandonar velhos e prejudiciais hábitos. Resta saber até que ponto não interessava às forças no poder manter inalteradas as condições infra-humanas da vida na aldeia.
Vendo que a sua generosidade não encontrou, novamente, destinatários dignos, Raimundo, “desistiu de fazer bem à terra”. Um relógio para a torre da igreja foi tudo quanto a sua aldeia lhe aceitou. Mesmo este acto, menor quando comparado com tudo o que tentou pôr à disposição dos seus conterrâneos, foi treslido pelo povo, para quem ele foi movido por puro egoísmo, pois “deu-o [ao relógio] para uso próprio. Via as horas da janela do quarto de dormir”. Filho dedicado, como não podia deixar de ser alguém com as características que até agora lhe conhecemos, permaneceu neste meio hostil até à morte da mãe. Depois, mudou-se para o Porto, onde veio a acabar os seus dias.
A história de Raimundo lembra o famoso “Santos da porta …”. Mas há mais. Ao apresentar-nos um brasileiro preocupado com o seu semelhante e dotado de sentimentos altruístas, João de Araújo Correia, como diz Eça de Queirós a propósito de O brasileiro Soares (1886), do naturalista Luís de Magalhães, humanizou uma personagem que o romantismo tinha transformado numa caricatura, cuja imagem de marca eram os joanetes, o materialismo e a palermice. Em contraste com o nosso benemérito desperdiçado, em “As desilusões do brasileiro Raimundo”, são antes as instâncias do poder e a comunidade aldeã que não saem bem no retrato, fazendo pensar que a beneficência só se concretiza em território propício. Afinal, a obra só nasce se todos os homens sonharem.
- Ana Ribeiro.
Clique na imagem para ampliar. Imagem e texto enviados por Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editadas para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Abril de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.
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