A Associação de Bombeiros Voluntários da Régua, fundada em 1880, teve, desde cedo, a necessidade imperativa de construção de uma sede própria, de forma a substituir as suas exíguas e inoperacionais instalações, primeiro num prédio do largo dos Aviadores e mais tarde, a partir de 1910, na rua dos Camilos. Porém muitos anos se passaram até a ideia se concretizar, num processo complexo e árduo que se prolongou por mais de duas décadas, desde a cedência do terreno na, então, avenida da Liberdade (hoje Dr. Antão de Carvalho), em 1930(1), até à inauguração do quartel em 1955.
Dois artistas assinam o desenho e execução de tão desejado edifício: o mestre pedreiro Anastácio Inácio Teixeira, reguense e admirável executante, e o arquitecto Francisco Oliveira Ferreira (1884-1957), ligado à cidade por laços familiares(2) mas também profissionais(3). À data com uma obra extensa, em particular na zona do Porto e Vila Nova de Gaia, Oliveira Ferreira oferece o projecto à Associação, conduzindo à construção daquele que se julga ser um dos primeiros quartéis do país desenhado por um arquitecto e por muitos considerado um dos mais belos de Portugal.
Imagem 1. O arquitecto Francisco Oliveira Ferreira
Nascido a 25 de Setembro de 1884, Francisco Oliveira Ferreira inicia a sua formação em arquitectura na viragem do século, ingressando na Academia Portuense de Belas Artes com o seu irmão José (1883-1942)(4), aluno de escultura, e terá como destacado mestre o arquitecto José Teixeira Lopes (1872-1919). Com este colaborará, após a sua passagem pela École Nationale des Beaux-Arts de Paris, em obras como a Casa de Avelino Correia em Vila Nova de Gaia, ou a porta monumental do Museu de Artilharia em Lisboa(5).
Incluído na geração de arquitectos que, nascidos durante os movimentos românticos de exacerbados eclectismos, foram exemplo de tentativas embrionárias do modernismo no nosso país, Oliveira Ferreira aborda na sua obra os novos desafios programáticos e construtivos que confirmam o processo de modernização da sociedade portuguesa: estações ferroviárias, clínicas, centros de lazer, edifícios comercias e edifícios com representatividade institucional. Dos seus projectos destacamos: o edifício do café A Brasileira(6) (1915) e o Club Os Fenianos (1919), no Porto, os Paços do Concelho de Vila Nova de Gaia (1916), o Sanatório Marítimo do Norte (1916) e a Clínica Heliântia(7) (1926-1929) em Valadares, e o Hotel Astória em Coimbra.
Preocupando-se com problemas de desenvolvimento urbano, o arquitecto elabora também alguns planos de urbanização que, apesar de nunca chegarem a ser concretizados, não são de menor importância. Deles são exemplo o plano de arruamentos das praias de Valadares (1917), o plano de união de Vila do Conde e Póvoa do Varzim (1929), o plano de urbanização do Monte da Virgem (1929), ou o complemento para o escadório da Senhora dos Remédios em Lamego (1922).
Porém, Oliveira Ferreira caracteriza-se, sobretudo, pelas trabalhosas mas generosas empresas em que se envolveu, revelando ser um homem de múltiplos interesses, colaborações e preocupações. Neste âmbito destaca-se como: iniciador, impulsionador e membro da Comissão Executiva da Exposição Histórica do Vinho do Porto, realizada em 1932 no salão Silva Porto(8); membro da Comissão Organizadora da Exposição Antonina; fundador do Grupo dos Amigos do Mosteiro da Serra do Pilar, e arquitecto dos primeiros trabalhos de restauro que se fizeram no mosteiro; iniciador e membro da Comissão Organizadora da Exposição de Documentos Artísticos e Scientíficos e de Recordações do Barão de Forrester, realizada na Serra do Pilar em Julho de 1930; e iniciador e membro da Comissão Organizadora da Comemoração do Centenário da Fundação do Município de Vila Nova de Gaia.
Artista até à medula(9), ocupou igualmente longos e pacientes meses da sua vida a organizar uma colecção vastíssima e valiosa de desenhos, e respectivas maquetas, das pias baptismais das freguesias de Portugal(10), e dignas de leitura são ainda as cartas que dirige, em épocas diversas, a figuras da política, das artes e das letras, em defesa da arte nacional - não fosse sua cartilha pessoal o trabalho de Ramalho Ortigão “O Culto da Arte em Portugal” (1896), levando-o para todo o lado no bolso do casaco.
Imagem 2. O quartel em construção, anos 30, A.H.B.V.P.R.
Imagem 3. O quartel concluído, 1955, A.H.B.V.P.R.
Peça integrante da vasta e variada obra de Oliveira Ferreira, que figura no panorama do norte de Portugal como emblemática de uma época e hoje classificada como valor de património local, o quartel Delfim Ferreira(11) cativa a atenção de quem por ele passe, em particular pela singular beleza da sua fachada principal, embelezada com os granitos trabalhados à mão.
Pelo exterior o arquitecto, juntamente com o admirável trabalho do mestre pedreiro Anastácio Inácio Teixeira, recorre à sintaxe do classicismo para uma perfeita articulação do edifício com a cidade. Porém, sob um olhar mais atento, note-se a lenta emancipação dos padrões beauxartianos, substituindo-se o formulário academizante por um funcionalismo operante de que é exemplo o grande vão semicircular que, apesar de um tom monumental, permite, sobretudo, a abundante iluminação do salão nobre. Dentro desta lógica o interior não é menos surpreendente, concentrando-se o arquitecto na clarificação e reforço da dimensão utilitária e funcional desejada através de uma concepção espacial racionalista de apurada técnica construtiva.
Imagem 4. O projecto de ampliação do quartel, anos 80, A.H.B.V.P.R.
Em 1980 o edifício é ampliado com a adição de um novo corpo, de acordo com o projecto inicial de Oliveira Ferreira, ajustando-se o quartel às necessidades de uma maior área social e operacional. Actualmente no piso de entrada encontramos as variadas viaturas de operações, a central de comunicações e os balneários masculinos e femininos; no 1º andar o amplo salão nobre, a sala de reuniões, a secretaria, gabinetes, bar e o espaço museológico; e por último, no 2º andar, encontramos a biblioteca, com a sua varanda em loggia, outros gabinetes, salas de reuniões, salas de formação, e as camaratas, também masculinas e femininas.
Este distinto quartel dos Bombeiros Voluntários da Régua merece a visita de todos nós e deve ser visto, em paralelo com as funções humanitárias desta associação, como importante centro cultural da região duriense, apoiado na sua Biblioteca Maximiano Lemos(12) e no Museu João de Araújo Correia, espaços repletos de objectos e documentos que evocam os nomes, os momentos e o património secular desta instituição.
- Arqª Ana Isabel Ferreira Pinto
1 Terreno cedido pela Comissão Administrativa da Câmara Municipal da Régua, presidida pelo Dr. Mário Bernardes Pereira, ao presidente da Associação de Bombeiros Voluntários da Régua, o Dr. Ernesto José dos Santos e ao comandante Camilo Guedes Castelo Branco;
2 Sobrinho do reguense Sr. Pereira da Costa - VALENTE, Alberto. Crónica Penso que não!, in Boletim “Vida por vida”, ano XIII, nº 142, Julho de 1968);
3 Julga-se ser autor da capela do Asilo José Vasques Osório e do Palacete dos Barretos (actual Biblioteca Municipal da Régua) – GOMES, Paulo Varela. Regresso à Régua, in Jornal de Notícias, 15 Julho 2012; ALMEIDA, Jaime A. O Quartel dos Bombeiros da Régua – notas para a sua história, Peso da Régua, Novembro 2009;
4 Francisco Oliveira Ferreira tem outros dois irmãos: António Oliveira Ferreira e Rita Oliveira Ferreira; mas é com José que realiza frequentes parcerias, de entre as quais o projecto do notável monumento aos Heróis da Guerra Peninsular (1909), em Lisboa;
5 Hoje Museu Militar de Lisboa;
6 Com uma fachada de características Arte Nova, é um dos poucos exemplares da cidade do Porto;
7 Considerada a sua obra mais madura, nela estão presentes valores pouco frequentes na arquitectura portuguesa da época. Assume especial relevo o tratamento racional da estrutura, tornada elemento expressivo por excelência;
8 Com colaboração do pinto Alberto Silva, do comendador António Pacheco da Silva Moreira, do professor Emanuel Ribeiro e do saudoso amigo Dr. Pedro Victorino;
9 GUERRA, Oliveira. O Arquitecto Oliveira Ferreira, in Girassol, Setembro 1955, Vila Nova de Gaia;
10 Cerca de 4.000, desenhadas com absoluto rigor e à escala, de modo a poderem ser executadas em quaisquer dimensões;
11 Curiosamente, Oliveira Ferreira é autor do desenho da capela tumular de Delfim Ferreira, no cemitério do Repouso, no Porto;
12 Criada pouco após a fundação da Associação e enriquecida em 1960 com o apoio da Fundação Gulbenkian, conta hoje com mais de dez mil livros – in Jornal de Notícias, 15 Março 2011;
Clique nas imagens para ampliar. Texto e imagens cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Setembro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.
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