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segunda-feira, 28 de março de 2011

Uma Sineta de Palavras - 3

 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia

Continuação.
O mundo dos bombeiros tem uma magia muito especial para todos os seres humanos, muito em especial quando crianças, que é imutável mesmo que mudem as cores das fardas, os pronto-socorros sejam mais potentes e equipados com material sofisticado e os sinais de incêndios tenham outras formas de alertar os bombeiras. De uma época para outra, a modernidade traz algumas alterações na forma como os bombeiros actuam e desempenham a sua missão. Umas são mais notórias e caem em desuso, mas provam que se verifica também uma evolução na sua missão de socorro.


A partir de certa altura, os sinais de incêndios que só os velhos bombeiros aprenderam caíram também em desuso. Antigamente eram usados para saberem em que ruas da Régua andava o fogo, mas hoje os bombeiros não assim chamados, mas pelo toque de uma sirene que, começa já começou a dar lugar a um novo aviso, as mensagens difundidas pelos modernos telemóveis.

Em “Sinais de Incêndios”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, João de Araújo Correia evoca o tempo em os fogos metiam mais medo e os bombeiros eram chamados pelos diferentes toques do sino da Capela do Cruzeiro.

“Estou a ver, no quarto de meu pai, dentro de um caixilho, uma espécie de registo intitulado Sinais de Incêndio. Mas em ortografia antiga… Os Sinais rezam como Signaes.
Pela ortografia se poderá avaliar a idade do registo. Idade antiga, embora posterior a Gregos e Romanos…
Pendia o registo com a sua moldura, sobre a mesinha de cabeceira de meu pai. Era uma espécie de semideus lareiro. De noite ou de dia, se o sino do Cruzeiro tocasse a fogo, aqui na Régua, o benemérito registo indicava a meu pai o sítio em que lavraria ponta de incêndio capaz de destruir a Régua.
No tempo de meu pai, havia mais medo a fogos do que hoje. Se havia confiança nos bombeiros, haveria menos confiança no material que então usavam. Hoje, tanto se confia na bomba como no bombeiro. O munícipe sossega.
Também havia, no tempo de meu pai, maior curiosidade ou possibilidade de saber onde era o fogo. Hoje, não o diz a ninguém a lúgubre sereia. O morador desiste de ser curioso ou sai à rua a perguntar: onde é o incêndio?
Graças à pagela, pendurada no quarto de meu pai, sabia ele a qualquer hora, diurna ou nocturna, se havia fogo e em que bairro andaria ele ateado.
Como de facto. A tabela rezava assim:
  • 4 badaladas – Souto, Boa Morte, Calvário, Quebra Costas, Rua das Árvores, Estrada Nova, Eiró, S. Pedro, S. João, Eirinha.
  • 5 badaladas – Fontainhas, Cruz das Almas, Rua do Passo, Carreira, Fundo de Vila, Azenha, Ferrans (?), Rua de S. José, Vila Franca.
  • 6 badaladas – Rua Serpa Pinto, Bordalo, Americano.
  • 7 badaladas – Ameixieira, Senhor dos Aflitos, Rua Custódio José Vieira, Cais de Baixo, Passeio Alegre, Rua João de Lemos, Rua Nova.
  • 8 badaladas – Rua dos Camilos à Ponte, Rua da Alegria, Rua 1.º de Dezembro, Guindais, Midão.
  • 9  badaladas – Fora de Vila
  • Para parar - 5 badaladas.
Copiei a lista de exemplar velhinho e esbotenado. Copiei-a, acertando-lhe a ortografia pelo cânone actual. Mas, tão velho é o espécime, que duvido do topónimo Ferrans – tanto ou quanto safado. Se alguém me quiser tirar dúvidas…
É curiosa a lista de badaladas. Fala-nos de ruas velhas, ruas que mudaram de nome ou o perderam – como a do Passo. Fala-nos da Régua de nossos pais que se pode considerar antiga.
Muito estimaria que alguém me oferecesse um exemplar perfeito dos SIGNAES DE INCÊNDIO. O que possuo não pertenceu a meu pai. Deu-mo um amigo. Mas, tão gasto, que mal o posso ler. É pena… Como folha velha, teria mais poesia se fosse mais legível.

Nota do Autor: Diz-me pessoa amiga que a Rua do Passo, no Peso, é a que vai da Cruz das Almas, em linha recta, às Rua da Carreira. Abre para essa rua a propriedade a que chamam de Gama. Esta informação, que muito agradeço, completa o artigo que intitulei de Sinais de Incêndio”.

Os temas sobre as crónicas dos bombeiros são fragmentos essenciais para completar a história colectiva do seu remoto passado. São pedaços de memórias que permitem refazer com rigor e verdade quem foram os homens e os seus momentos decisivos que revelaram uma determinação e fé inabalável em manter em funcionamento esta maravilhosa obra de ajuda a quem precisa.

Em 1938, no seu primeiro livro publicado, intitulado “Sem Método”, o escritor na Nota XXIX, reconhece a importância social dos soldados da paz da sua terra, ao expressar o seguinte:

“Despedi-me do doutor Feliciano com um abraço amargurado. É que me lembrei desta desventurada terra chamada Régua, tão desenfeliz que nem água tem para beber. Que não tem uma escola. Que não tem um hospital. Que, tirante os bombeiros, não tem coisa nenhuma útil ao comum.”

Mais tarde, o elogio aos bombeiros e à Associação repete-se em “Biblioteca Maximiano de Lemos” (in Pátria Pequena-1963) para fazer um louvor à instituição que revelava dinamismo e uma frescura “física”, em cada aniversário que comemorava.

“Na Régua, é tradição que falhem todas as iniciativas. Falharam as touradas, as exposições fotográficas, o teatro de amadores, o orfeão, a parada agrícola, os desportos náuticos e até o carnaval inventado pelo Chico Pulga. Tudo falhou, menos a Associação dos Bombeiros Voluntários, fundada em 1880, e de ano para ano, mais florescente”.

Na crónica “Uma velha Estante”, publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, o escritor volta à sua infância -  quando teria onze ou doze anos de idade – para reviver o fascínio  das  salas recreativas do primeiro quartel,  onde  reparou  numa velha estante os   livros que nunca mais esqueceu.

“Quando o quartel dos bombeiros funcionou modestamente numa casa situada no actual Largo dos Aviadores, frequentei-lhe as salas recreativas com o meu pai - era eu rapazinho.
Na sala dos jogos, inofensivos jogos de cartas, dominó e quino, lembro-me de ver, encostada a uma parede, uma alta e larga estante de madeira rica, toda envidraçada e repleta de livros.
Creio que ninguém lhes tocava. Quem se entretinha com a sueca, o dominó e o quino talvez nem reparasse na volumosa estante, abarrotada de livros.
Reparava eu... E o meu regalo seria abrir aquela estante e colher de lá um livro para o folhear e ler antes de me deitar. Assim eu o percebesse. Era ainda tão novo… Teria onze, doze anos.
Os meus encantos, naquele clube, eram aquela estante. Mas, sempre fechada e muda. Até que uma noite, e em noites seguidas, a vi abrir. Um senhor, que usava óculos, ia retirando e colocando de novo, no seu lugar, rimas de volumes. Arrecadava-os depois de lhes escriturar os títulos num grande livro de papel almaço.
Livros que nunca mais esqueci. Quando, depois de instalados os bombeiros no quartel novo, alguém me disse que todos esses volumes estavam à matroca, empilhados num monte, sem o mínimo vislumbre de arrumação, caiu-me a alma aos pés. E assim, esteve, de rastos uma porção de anos.
Até que ontem, dia que marquei com uma pedra, vim a saber que os livros já estão arrumadinhos na estante – bela estante de mogno.”

Os bombeiros da Régua fazem mais do que apagar os incêndios. Desde o seu início constituíram uma organização social e humanitária. O seu quartel não guarda só os equipamentos e fardamentos, mas serve como um centro convívio social da comunidade reguense. De acordo com o estabelecido nos estatutos da Associação, os sócios fundadores propuseram-se criar uma biblioteca, desde que os fundos o permitissem. Se assim o pensaram e desejaram, depressa o conseguiram realizar, com a ajuda de Afonso Soares e de muitos beneméritos.

No tema “Primórdios” (in Pátria Pequena - 1963) volta a falar da criação da biblioteca dos bombeiros, criada em 1885, pelo  sócio contribuinte Afonso Soares que, por modéstia, não quis que o seu nome fosse revelado.

“Pena é que o saudoso historiador da nossa vila e concelho mão tenha nomeado o sócio contribuinte, que tanto desejou ver o nosso quartel espiritualizado com uma livraria. Dizemos tanto desejou, porque o seu desejo moveu a vontade do Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro.
Devemos a um anónimo a fundação, em 1885, da nossa Biblioteca. Se soubéssemos o nome dele, seria obrigação perpetuar-lhe a memória com algum voto condigno. Como não se sabe, imagine-se que foi o humilde benemérito. Algum obscuro artista, amigo da Instrução…
Obscuro não deve ter sido o Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro, propulsor da luminosa ideia do sócio contribuinte. Inscreva-se-lhe o nome numa lápide se não pudermos eternizar-lhe o retrato entre os nossos livros. Devemos gratidão a esse antepassado.
As coisas são como os rios. Têm origem que, embora tímida, nunca é desprezível. A nossa Biblioteca nasceu em 1885. Ninguém esqueça essa data.
Nascida em 1885, só em 1960, em pleno século actual, veio a ser baptizada. Na província, a marcha de qualquer intuição é sempre lenta.”
(Clique na imagem para ampliar)

Aquela biblioteca foi ainda tema para mais duas crónicas, todas incluídas no livro Pátria Pequena: “Dr. Maximiano de Lemos (in Pátria Pequena-1960), “Alvíssaras” (in Pátria Pequena-1960) “Biblioteca Maximiano de Lemos” (in Pátria Pequena-1963).

Em 1960, a velha biblioteca era enriquecida com a instalação de uma biblioteca fixa da Fundação Calouste Gulbenkian. Os bombeiros passaram a garantir serviço público. Esta biblioteca, a única que existiu na Régua durante muitos anos, passava a ser procurada e frequentada pelos jovens.

Na primeira crónica que foi dedicada a Maximiano de Lemos, erudito historiador da Medicina Portuguesa, nascido na Régua, em 8 de Agosto de 1860, quando os bombeiros se preparavam para lhe fazer uma homenagem, escreveu:

“Querem os nossos Bombeiros inaugurar quanto antes a sua nova biblioteca, renascida do velho armário repleto de livros sem catalogação, e querem dar-lhe o nome de Maximiano de Lemos, fazendo coincidir o acto inaugural com o centenário natalício do nosso conterrâneo. Dois quereres, qual deles o mais gentil… Que vão por diante é o nosso voto.”

Na crónica seguinte que intitulou de “Alvíssaras” elogiava a iniciativa dos bombeiros, que contribuiriam de forma decisiva para a organização das comemorações do centenário natalício de Maximiano de Lemos e que ela tenha encontrado apoio em mais “boas vontades”.

“Parece que vão por diante, aqui na Régua, as comemorações do primeiro centenário natalício do professor Maximiano de Lemos. À boa vontade dos nossos bombeiros vieram sucessivamente, para esse feito, a boa vontade do senhor Provedor da Santa Casa da Misericórdia e a boa vontade do senhor Presidente da Câmara Municipal. Três boas vontades que, somadas, darão de si inabalável querer no cumprimento de uma obrigação.
No dia 8 de Agosto próximo, ao cumprir dos cem anos sobre o nascimento de quem se distinguiu ao ponto de ser querido dos sábios do seu tempo, inaugurarão os nossos bombeiros a sua nova biblioteca, dando-lhe o nome do reguense ilustre. O grande estudioso, que passou a vida entre livros, sorrirá do outro mundo à carinhosa ideia dos seus conterrâneos. Será capaz de vir ajudá-los na escolha, catalogação, arrumação e defesa de boas espécies bibliográficas.”

Em “Biblioteca Maximiano de Lemos” (in Pátria Pequena, 1963), recorda, com sentido de humor, as duas bibliotecas que coexistiram, durante algum tempo, no último piso do Quartel dos Bombeiros:

“A Biblioteca Maximiano de Lemos, inaugurada em 1960, ao comemorar-se o primeiro centenário do seu ilustre patrono, vai ser enriquecida, no próximo mês de Novembro, com uma valiosa colecção de livros da Fundação Calouste Gulbenkian. Diremos, para ser precisos que vai funcionar, dentro da Biblioteca Maximiano de Lemos umas das bibliotecas fixas da Fundação Gulbenkian.
Queremos que as duas bibliotecas não briguem uma com a outra, antes se auxiliem e completem. A de Maximiano de Lemos pobre e velha livraria, herdeira da primitiva estante dos Bombeiros e acrescida de alguma oferta particular. A da Fundação, constituída por livros em barda e todos em folha, será útil ao comum dos leitores. Será própria para os desbravar e lhe estimular o gosto da leitura.”

“Uma grande lição”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, foi mais um pretexto para distinguir a acção cultural, em especial dos bombeiros, nas comemorações do primeiro centenário de uma figura pública reguense, de valor nacional, que ele muito considerava, o Dr. Maximiano de Lemos, insigne médico, professor e historiador da medicina portuguesa.

“Nem sempre a Régua adormeceu em pontos de civismo. A 3 de Dezembro de 1960, deu uma grande lição, comemorando, com solenidade, o primeiro centenário do Dr. Maximiano de Lemos - insigne reguense.
Bombeiros Voluntários, Hospital de D. Luís I e Câmara Municipal colaboraram no sentido de não envergonharem a terra com comemorações.
(…)
Diga-se também que os nossos bombeiros inauguraram o ressurgimento da sua livraria, dando-lhe o nome de Maximiano de Lemos.
(…)
O Dr. Alberto Saavedra, homem de Ciências e Letras produziu um belo discurso na inauguração da Biblioteca. Publicado em fascículo, esse discurso é hoje venerável relíquia”.

Em 1978, na crónica “Uma Galera”, publicada no jornal “O Arrais”, lamentava que os bombeiros não possuíssem uma sala museu para guardarem os antigos materiais usados nos incêndios, as velhas fardas e os documentos de valor. Considera que essa atitude é uma falta grave. Mas incentiva ao aparecimento de um espaço no quartel destinado a um museu dos bombeiros. Aquele texto acaba por ter um efeito pedagógico.

Em 1980, um século depois da fundação, os bombeiros da Régua criavam o seu Museu, numa das salas do quartel que decidiram baptizar o Museu com o nome de Dr. João de Araújo Correia. A ideia por ele desejada, acaba assim por ser concretizada, mas sem que a galera voltasse ao seu destino de origem.

“De uma das vezes que atravessei uma vila risonha, apeei-me da burra, como quem diz do carro, para espreitar uma casinha baixa, de portas abertas para um grande largo. Era um quartel de bombeiros…Mas, tão antigo, em seu material, que era um museu de bombas e capacetes, machados e agulhetas, tudo disposto para acudir a incêndio ateado aí cem anos antes.
Estive, vai não vai, para nele pegar nele e trazê-lo para a Régua, oferece-lo aos bombeiros da minha terra, que tinham quartel novo, no trinque, e não tinham guardado, do quartel velho, grandes recordações. Podiam, em edifício à parte, manter aquele museu como saudade do século passado. Podiam oferece-lo à memória de quem fundou, há cerca de um século, a primeira associação de bombeiros da Régua.
Que resta desse tempo? Uma galera, que andou de jó para já até um dia. Consta-me que foi parar, emprestada que não dada, a um quartel do Porto.
Hoje, que os nossos bombeiros ampliaram o quartel, devem chamá-la a si como relíquia dos seus velhos tempos… Já não lhe falta espaço onde a meter e exibir.
Os bombeiros da Régua, que tanto cabedal fazem da sineta de Canelas, que só a Canelas pertence, devem recolher, quanto antes, a galera que só a eles deve pertencer. Venha para a Régua, quanto antes, a galera que levou a muito incêndio, em tempos idos, os bombeiros da Régua. Tanto mais, que é uma linda galera, muito bem conservada… Parece que acabou de sair de mãos de artista.” 
Continua...

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
João de Araújo Correia na "Infopédia"
João de Araújo Correia na "Wikipédia"

terça-feira, 4 de maio de 2010

Cartas de longe: As conversas do dr. Camilo

A arte de contar do escritor, do médico-Amigo, do cidadão do Douro e da literatura portuguesa contemporânea Camilo de Araújo Correia:

Crónica - O cimo da Régua

Hoje em dia, já não se usa muito entre nós a designação toponímica de Cimo da Régua.

Como foi com ela que me criei, ainda hoje me sabe bem ouvi-la ou vê-la escrita.

O Cimo da Régua ia, mais ou menos, do Valente Novo à Casa da Fortuna, de um lado. Do outro, estendia-se da Valente Velho às lojas de ferragens do João Guerra e Domingos Figueiredo. Perpendicularmente, na Rua Serpa Pinto, chegava à loja do Antão, frente a frente com a Associação Comercial.

Pelo seu intenso e variado comércio, o Cimo da Régua era, pode dizer-se, a nossa "Baixa".

Toda a gente se via, toda a gente comprava isto e aquilo no Cimo da Régua.

O ponto nevrálgico desta nossa "Baixa" era a loja do Zé Pinto, onde se podia comprar do melhor arroz ao melhor café, do melhor papel de carta à melhor escova. Também se podiam engraixar os sapatos em cadeirão episcopal montado num pequeno estrado. O "Vintecinco", mesmo com um grãozinho na asa, engraixava a preceito, dava as novidades e vendia as cautelas delicadamente. Era na loja do Zé Pinto que se encontravam os figurões da Régua para longas cigarradas e longas conversas, a que não faltava uma pontinha de má língua local e nacional. O Zé Pinto, dentro do balcão, saía da conversa para atender os fregueses. Mesmo aos que apertava a mão com efusiva fraternidade, não deixava de apertar os preços do que viessem comprar. Implacável até ao tostão !

Fora da loja o Zé Pinto era a pessoa mais magnânima do mundo. Num passeio de amigos gostava de pagar tudo a toda a gente.

Muito perto do Zé Pinto, ficava o Quartel dos Bombeiros. Aí se reuniam estudantes, empregados e artífices. Além de mesas de jogo, havia um bilhar e uma grande estante de bons livros. As instalações eram de tal maneira exíguas que os carros se viam e desejavam para sair e entrar. Quando tocava o fogo, toda a gente que andasse por ali se juntava para assistir às manobras. O globo de entrada era tão baixo que o Justino Nogueira, garboso porta-estandarte, o partiu algumas vezes com a ponta do mastro.

- Ó Justino! Ó Justino... agacha-te! - avisavam os companheiros.

Junto dos Bombeiros ficava a oficina do João Latas. A oficina era de latoaria, mas tinha uns prateleirões até ao teto, onde adormeciam os mais variados artigos de ferragem.

Pelo seu temperamento e pela sua longa história de estranhas atitudes, o João Latas era, como então se dizia, um maduro. Foi das primeiras pessoas da Régua a lidar com automóveis, dando pelas escabrosas estradas de então grandes passeios com as pessoas gradas da terra. Chegavam a ir à Galiza o que, na altura, era longe e arriscado como ir ao fim do mundo. São muitas e pitorescas as aventuras que se contavam do Joâo Latas ao volante.

De tão maduro que era, tanto podia responder como não corresponder aos cumprimentos de quem lhe entrasse na oficina. Também podia ter toda ou nenhuma paciência com os fregueses:

- Boa tarde, senhor João!

- ... ...

- Tem desandadores assim, assim...?

- Tenho... tenho... Faltam-me ele desandadores desses! Olhe, estão lá em cima a ouvi-lo...

E apontava uma prateleira lá do alto.

- Faça o favor de me dar um...

- Disso está você bem livre! Tenho o escadote lá para trás... não estou para o ir buscar - respondia, continuando o tam-tam na lata que estava a afeiçoar.

E o freguês lá ia embora a resmungar, lamentando não ter ido ao João Latas em melhores dias...

....

- Bom dia, senhor João!

- Bom dia, ora viva o meu amigo! Que o traz por cá?

- Ando, desde o Porto, à procura de uma navalha espanhola, de duas lâminas e...

- Tenho ainda umas ou duas... - cortava o João Latas.

- Quero uma.

- Se tiver dinheiro para a levar!

- Ó senhor João... então não hei-de ter!?

- Pode não ter... pode não ter... eu lhe digo... estas navalhas são de antes da guerra... feitas as contas ao preço actual...

O João Latas caía, então, numa folha de costaneira, a fazer contas sobre contas, até afirmar, peremptório:

- A navalha está-lhe em 200$00 e pico.

- Ó senhor João... mas isso é uma fortuna!

- É pegar ou largar !
O freguês largava, com o fogo no rabo, sem a desejada navalha e sem compreender tamanho desconchavo.

O João Latas era também um caso único a mandar as contas aos seus fregueses. Tanto as mandava logo, com a solda ainda quente, como depois de muita insistência de quem lhas pedia.

Uma vez, mandou à Senhora D. Branca Martinho, por quem, como toda a gente, tinha o maior respeito, a seguinte conta:

- Um fundo novo numa cafeteira de litro - grátis.
- Um pingo numa panela - grátis.
- Soldar a asa de um funil - grátis.
- Mão nova num regador velho - grátis.
- Total: 4 serviços grátis a 2$50 - 10$00.

...Aquele Cimo da Régua... ... ...
- Por Camilo de Araújo Correia - Villa Regula de Março de 1999.
Crónica - o Douro de anteontem

O nosso rio era caudaloso no Inverno e sereno do findar da Primavera ao findar do Outono. Sempre alegre e corredio, o Douro era um potro à solta entre as margens. Vieram depois as barragens meter-lhe o freio e o bridão. Fizeram dele um amestrado e pachorrento cavalo de circo.

Muito lucramos com esta sucessão de enormes espelhos de água, permitindo um desporto e um turismo impensáveis no lombo de um potro irrequieto. Mas também muito perdemos...

O estrujão, o sável e a lampreia, de tanto marrarem contra o cimento das barragens, acabaram por desistir de procurar para a desova os rios ainda abertos às suas imperiosas condições de procriação.

Entre nós conhecido por solho, o estrujão foi-se extinguindo. Dele ficou apenas um dito, de que muita gente já não saberá a origem. Dormir como um solho quer dizer dormir profunda e serenamente. A imagem vem do tempo em que esses grandes peixes do nosso rio se deixavam levar pela corrente, muito quietos, como se dormissem à flor da água.

As lampreias também deixaram de se vender pelas ruas da Régua, oferecidas em regadores, ainda vivas, num desespero de pouca água e pouco espaço. Meu pai, médico de muitas caridades, recebia em abundância os mimos de cada época do ano. As lampreias eram, por vezes, tantas que era preciso largá-las no tanque do quintal, para lhes dar vazão. Agarrá-las era depois um alvoroço de gritinhos e fugas precipitadas.

O sável era ainda mais abundante que a lampreia. Por toda a Régua passavam homens e mulheres a apregoá-lo com dois ou três enfiados num vime. O saboroso peixe chegava a todas as casas, à boca do rico e do pobre, frito ou de escabeche.
O Dr. Júlio Vilela falava, a lamber o beiço, de um sável na telha arranjado pelos homens do rio. E descrevia:

- O sável, bem temperado com azeite, alho, pimenta e loureiro, entala-se entre duas telhas. Depois, é só ir virando sobre uma fogueirinha de lenha. Além de ficar delicioso, a espinha desembainha-se como uma espada.

O Dr. Júlio e os seus petiscos...

Um ano, o sável foi tão abundante que chegou a exaltar o homem mais sereno da Régua - José Afonso de Oliveira Soares.

Pintor e poeta de grande mérito, veio a merecer um busto no jardinzinho bem perto da casa onde morou.

Diz, assim, o pedestal:

Talento e bondade
Flor de simpatia
Que nos merecia
Esta saudade.

Também mereceu da Câmara Municipal uma segunda edição da sua História da Vila e Concelho do Peso da Régua.

Pois, um dia, o nosso sereníssimo Afonso Soares, cheio de sável até ao simpático bigode, largou de casa a esbracejar, ao ver que a esposa se preparava para lhe servir ao almoço, mais uma vez, umas postas de sável frito.

Foi do Cruzeiro para os lados da estação a remoer vinganças num grande nuvem de tabaco. Entrou na Pensão Borges e foi sentar-se à mesa mais recolhida. Logo se aproximou, todo mesureiro, o Adelino Gomes.

- Que temos para o almoço, Adelino?

- Para o senhor Soares arranjam-se umas postinhas de sável...

Ao virar do segundo para o terceiro milénio o Douro de anteontem acordou estremunhado do sono telúrico. Tomou o freio nos dentes, soltou-se da corrente e largou à desfilada pelas margens, galgando-as até onde lhe chegou o fôlego. Por quatro vezes, casas e vinhedos lhe sofreram a fúria. A Princesa do Douro ficou irreconhecível por uns dias. Mas, ao sol de Março pôde mirar-se ao espelho do seu rio, outra vez vaidosa e conformada.
- Camilo de Araújo Correia, Villa Regula de Março de 2001.
Crónica - O Pecador

O senhor Valentim era um homem triste e de poucas falas. Dizia-se, até, que fôra para aquela aldeia remoer grandes pecados da cidade.

Passava o ano em redor da vinha e da horta que granjeava com exemplar esmero. As árvores e o cão, que sempre tinha, eram a sua família e o seu único convívio.

Quando alguém o abordava ou quando aparecia na venda a fazer compras, era agradável de falas e de modos. Mas parecia sempre morto por regressar à sua tristeza, ao seu pequeno mundo de silêncio.

Ninguém lhe conheceu mulher legítima ou devaneio de ocasião. Eu próprio, quando o visitei na única doença que teve, não vi por toda a casa retrato ou sinal de família desfeita. Chamou-me a atenção uma litogravura de Nossa Senhora do Socorro colada na parede, como um selo, por cima da barra da cama.

Depois de o auscultar, olhei para a gravura e disse-lhe, sorrindo:

- Não o fazia religioso, senhor Valentim...

- E não sou. Essa gravura que aí vê comprei-a no ano em que resolvi não voltar à procissão do Socorro.

- Mas porquê? Fazia-lhe bem ir à festa, sempre se distraia um pouco...

- Eu sou enjeitado, senhor doutor; e sempre me senti enjeitado por onde andei, até me fixar aqui.

- Mas... as pessoas parecem estimá-lo...

- Estimam, sim... mas foi Nossa Senhora do Socorro que me fez sentir calor humano pela primeira vez na vida.

- Mais uma razão para não deixar de a visitar! Dizem-me que nem à Régua vai...

- Ia todos os anos... mas, a certa altura, senti que andava a pecar...

- A pecar?!

- Sim... a pecar. O senhor doutor não compreende... É preciso ser enjeitado para sentir toda a bondade e beleza de Nossa Senhora do Socorro. Muitos anos a olhei, da beira do passeio, como se visse a mãe que nunca tive. Depois... depois dei comigo a olhá-la como se ela fosse a mulher que nunca reparou em mim...

Viveu ainda muitos anos. Era um homem só, com a sua vinha, o seu cão e o seu pecado.
- Camilo de Araújo Correia - Extraído da brochura das festas de Nossa Senhora do Socorro de Agosto de 1982.

Camilo de Araújo Correia - Filho de peixe sabe nadar

Camilo de Araújo Correia, filho do escritor João de Araújo Correia, nasceu no Porto em 1925, mas vive na Régua desde os três anos. Aí fez a instrução primária na escola oficial e o 1º ciclo do liceu no extinto Colégio Reguense. Completou o curso nos liceus de Lamego e Vila Real. Frequentou depois a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, onde viria a formar-se em 1953.Enquanto estudante de Coimbra, viveu sempre em república (o Palácio da Loucura) e despertou para a literatura, colaborando nos jornais académicos da época - A via latina, A Briosa e o Pagode. Em 1961 foi mobilizado para Moçambique, integrado como anestesista no Hospital Militar 338, destinado a Porto Amélia. Ajudou a formar e a dinamizar o “Grupo Cénico de Porto Amélia”. Além de ter sido ensaiador, escreveu para um dos espectáculos daquele grupo a revista Atracou o "Troça Nova". Mantém no Arrais uma coluna semanal, desde 1978. Publicou entre outros: Histórias na Palma da Mão; Coimbra Minha; Livro de Andanças; Na Rota do Sal; Médicos, Doentes e Outras Gentes; Coimbra, Outra Vez. - Entrevista completa em: http://www.trasosmontes.com/eitofora/numero11/entrevista2.html

(Transferência de arquivos do sitio "Peso da Régua" que será desativado em breve)

terça-feira, 29 de julho de 2008

História de um soneto.

(Clique na imagem para ampliar)
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Na dramática noite do dia 8 de Agosto de 1953 estava em frente à estação da Régua, junto ao muro que dá para o rio Douro, assistindo ao dantesco espetáculo. Com seis anos de idade à época, acompanhava meu saudoso Pai Jaime Ferraz Rodrigues Gabão. Jamais saiu de minha memória a beleza assustadora e dramática das chamas envolvendo o edifício enorme da Casa Viúva Lopes. Foi experiência que marca até aos dias de hoje, com nitidez impressionante, minhas lembranças.
- J. L. Gabão, Brasil, Julho de 2008.
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O perigo anda de mãos dadas com a vontade de acudir e de servir a todos. A tragédia espreita a cada canto, e por vezes a morte sai a rua. Foi o que aconteceu no dia 8 de Agosto de 1953 com o Bombeiro João Gomes Figueiredo. João de Araújo Correia, homenageou o valente Soldado da Paz como se pode ler no texto abaixo:
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HISTÓRIA DE UM SONETO
- Por João de Araújo Correia
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Quando, em 1953, ardeu por completo, nesta vila, a CASA VIÚVA LOPES, empório de secos e molhados, como se diz no Brasil, morreu no incêndio o bombeiro João Figueiredo, mais conhecido por João dos Óculos.
No dia seguinte ao fogo, vi o cadáver, estendido de costas, do lado de dentro de uma abertura, que tinha sido, poucas horas antes, uma das portas da grande mercearia.
O corpo do João, ligeiramente vestido, como que ostentava, em toda a extensão das partes descobertas, o que se diz em Medicina, queimaduras do primeiro grau.
Não sei se a rápida morte do João foi devida às queimaduras, talvez mais extensas do que as ostentadas, se foi devida a asfixia ou queda. Não li relatório de autópsia nem sei até se o João foi autopsiado. Sei que morreu durantge o incêndio da CASA VIÚVA LOPES.
Era um pouco triste e um pouco frio, no trato, o João dos Óculos. Mas, homem bem comportado, honesto compositor na IMPRENSA DO DOURO. Vi-o trabalhar, muitas vezes, sem erguer os olhos do componedor.
Tive muita pena do desgraçado bombeiro. Tanto mais, que me eram simpáticos os seus padrinhos e pais adoptivos, o já cansado tipógrafo João Monteiro e sua mulher, a Senhora Glorinha, proprietários de uma arcaica tipografia quase morta chamada TRASMONTANA. Tinham descido de Vila Pouca de Aguiar à Régua, com seu prelo, como se tivessem embarcado para o Brasil. A Régua é chamariz de quem precisa de governar a vida.
Tive muita pena do João dos Óculos, falecido em 1953. Quando, em 1955, festejou as bodas de diamante a benemérita ASSOCIAÇÃO DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA, lembrei-me dele e da sua trágica morte. E, vai daí, andando a passear no meu quarto, improvisei um soneto à sua memória. Digo improvisei, porque me apareceu no cérebro, desde a primeira à última palavra. Nasceu-me, de mais a mais, a conversar com um dos meus filhos, o Camilo, que não é nada tolo, como toda a gente sabe.
Por ele não ser tolo, recitei-lhe o soneto antes de o escrever.
Mas que má impressão lhe causei! Premiou-me os catorze versos com uma coroa de catorze espinhos. Disse-me que eram versos de cego.
Versos de cego, em 1955, eram uma versalhada, que os ceguinhos entoavam na rua, ao som da viola, violão ou outro instrumento de corda, para apurar tostões. Levavam de terra em terra, tocando e cantando, o noticiário de grandes casos. Eram, quase sempre, eco de grandes crimes, principalmente crimes passionais.
Estou a ouvi-los entoar a versalhada, que, na opinião de meu filho, era mãe do meu soneto.
Embora... Publiquei os meus catorze versos numa folha ilustrada, comemorativa dos setenta e cinco anos dos nossos Bombeiros.
Aqui reproduzo o soneto como se repetisse a minha oferenda a um quartel que festeja, em 1980, o primeiro centenário. É como segue:
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BODAS DE DIAMANTE
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O João dos Óculos nasceu bombeiro.
Embora fosse pálido e franzino,
Cumpriu até o fim o seu destino
Com impoluta alma de guerreiro.
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Nenhuns braços lhe foram cativeiro
Mal da sereia ouvisse o som mofino...
Em uma noite de luar divino
Foi encontrar a morte num braseiro.
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A sua Associação, cândida amante,
Celebra hoje as bodas de diamante,
Quase cem anos de exostência honesta.
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Um bom diamante, sócios, é carvão.
Ide buscar o coração do João
E fazei dele o símbolo da festa.
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Mal chegou a Lisboa o sonetito, encontrou no Dr. Nuno Simões carinhoso acolhimento. Depois de o ler na folha única, não se conteve o ilustre publicista. Comunicou o seu entusiasmo à Associação dos Bombeiros.
Isto de críticos... Se todos pensassem o mesmo, a respeito de qualquer obra, tombava o mundo para uma banda, correria o risco de se perder na imensidade.
Todos os conselhos ouvirás e o teu não deixarás - reza o prolóquio. Todas as críticas ouvirás e a tua não deixarás - digo eu antes e depois de publicar os meus escritos. Sei ou suponho que sei até que ponto merecem ser publicados.
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Não se ficou somente pelo texto atrás reproduzido, a homenagem do "Mestre de todos nós" ao bombeiro falecido no incêndio da Casa Viúva Lopes...
Foi fatídico esse ano de 1953. A 24 de Dezembro, coube a desdita ao garboso e corajoso Afonso Pinto Monteiro, que acabado de almoçar, ao primeiro toque da sirene veio a correr atá ao Quartel. O incêndio era em Sedielos, e ainda a viatura subia a rua junto à Igreja Matriz de Godim, e já o Bombeiro falecia por indigestão provocada pela pela aflitiva corrida de momentos antes.
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Livro - "Bombeiros Voluntários do Peso da Régua-125 anos da sua História";
Propriedade - Bombeiros Voluntários do Peso da Régua;
Autor - Manuel Igreja;
Fotografia - B. V. do Peso da Régua, Foto Baía, Manuel Igreja;
Paginação, fotolitos e impressão - Imprensa do Douro;
Depósito Legal n. 234957/05;
Tiragem - 2.000 exemplares.

História de um Soneto
João de Araújo Correia
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 27 de Janeiro de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
História de um Soneto

terça-feira, 20 de março de 2012

José Afonso de Oliveira Soares

José Afonso de Oliveira Soares, natural do Peso da Régua, é reconhecido enquanto artista e decano dos jornalistas de província, por João de Araújo Correia. Dirige a sua vida à causa social enquanto bombeiro, vindo a comandar a corporação entre 1893 e 1927.
O Senhor Soares, como era conhecido na terra, à qual se dedicou toda a vida, assistiu às épocas conturbadas da viragem do século XIX para o século XX, mantendo-se alheio à política. Desenvolve a sua actividade profissional, além do voluntariado nos bombeiros, no campo das artes plásticas, da literatura e do jornalismo[i].
Nos bombeiros, Afonso Soares, não faz parte do grupo de sócios fundadores, embora apoie a causa desde início, inscrevendo-se como sócio contribuinte. Em 1885, procura fundar uma biblioteca no quartel, revelando, desde logo, um grande interesse pela literatura. Sabemos, no entanto, segundo José Almeida, que essa biblioteca não “mais seria que uma estante com livros raros”[ii]. Eleito comandante da corporação em 1893, sendo o segundo da história desta associação, ocupa o cargo até 1927, ano em que abandona no comando, pois os estatutos não lhe permitiam continuar devido à idade.
Afonso Soares não se destaca no panorama artístico nacional. Embora João de Araújo Correia o designe como “desenhador, gravador, modelador e pintor”, admite, por outro lado, que Afonso Soares não evolui, em primeiro lugar, devido ao seu “feitio dispersivo” e, também, por causa do meio onde se encontrava, longe de “escolas, de estímulos e entusiasmos”[iii]. Mesmo assim, Afonso Soares mantém o seu dinamismo enquanto pintor, efectuando diversos retratos, que tratamos neste trabalho, além de outras obras, algumas delas descritas por João de Araújo Correia no conto Configurações[iv].
Dedicando-se, paralelamente, à escrita, destaca-se como jornalista na imprensa regional, chegando a ser director do Jornal da Régua (1930). Realiza uma monografia, História da Vila e Conselho de peso da Régua (1936), editado pela Câmara Municipal do Peso da Régua. A referida obra acaba por ser publicada numa segunda edição em 1979, o que demonstra a sua importância para a divulgação da cidade e para estudos locais e regionais, mantendo-se ainda actual. Esta monografia, realizada no início do século XX é a única obra de referência deste género acerca do Peso da Régua[v].
A obra plástica que se conhece consiste sobretudo em retrato desenhado, publicado na monografia que realizou e na imprensa, o retrato a óleo sobre tela, pertencentes à colecção de retratos da SCMPR. Como referimos anteriormente, Afonso Soares demonstra uma capacidade diversificada em vários géneros – desde a literatura às artes plásticas, revelando-se um artista de carácter regional, autodidacta, mantendo-se informado cerca das evoluções técnicas da época, nomeadamente da fotografia. Vai socorrer-se deste processo técnico, como faziam os demais pintores, para executar os retratos que conhecemos. Com formação em desenho técnico[vi], o seu traço revela-se com uma qualidade superior em relação à técnica de óleo sobre tela, que não dominava.
A execução técnica das obras revela a ausência de formação académica em pintura, no entanto, a execução do desenho parece-nos muito bem elaborada. A falta de formação na área da pintura leva-o a cometer alguns erros na modelação cromática quer nos fundos, quer nas carnações, retratando figuras hieráticas e inexpressivas. Sentimos que o autor se preocupa, essencialmente, com a semelhança das feições do retrato com o retratado, decorando a execução do retrato psicológico das personagens.
A prática da pintura permite-lhe aperfeiçoar a técnica de óleo sobre tela, a ponto de ser reconhecido enquanto, pintor e de ter legitimidade para fundar na Régua uma escola/ ateliê, onde ensina gratuitamente[vii]. Deduzimos que este reconhecimento público se reflecte na quantidade de obras que Afonso Soares realiza para a SCMPR, o que nos permite supor que nos inícios do século XX, este se torna o “ pintor oficial” da instituição.
Em comparação com os outros pintores expostos na sala das sessões do hospital, as obras executadas por Afonso Soares, um autodidacta, são plasticamente inferiores. No entanto, cumpriram, na perfeição, o objectivo da SCMPR, o de prolongar no tempo a memória de quem contribuiu para a Misericórdia, funcionando como exemplo e incentivo a novos benfeitores, como já referimos no capítulo anterior.
- João Tomé Duarte* - CITEM 

[i] TÓRO – O concelho do Peso da Régua.
[ii] ALMEIDA, José Alfredo – Recordar o Comandante Afonso Soares.
[iii] CORREIA, João de Araújo – Horas Mortas. Régua: Imprensa do Douro, 1968,p.23.
[iv] Ibidem,pp.23-26.
[v] Bandeira de Tóro (1946) e José Braga – Amaral (2007), realizam estudos monográficos acerca de Peso
 da Régua, no entanto, não conseguem ir além do estudo de Afonso Soares, excepto nos assuntos das
 épocas contemporâneas aos referidos autores.
[vi] Supomos ser esta a formação inicial de Afonso Soares pois José Alfredo Almeida refere que o início da
 sua actividade profissional é nas obras da Linha do Douro entre Marco de Canaveses e Peso da Régua
 como “técnico e desenhador”. Cf. ALMEIDA – Recordar o Comandante Afonso Soares.
[vii] Ibidem.

* Este texto dedicado a José Afonso de Oliveira Soares, antigo Comandante dos Bombeiros da Régua, recordado como pintor, faz parte do relatório de estágio curricular  e profissional no Museu do Douro  de João Tomé Duarte, com o título “Retratos dos benfeitores da Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua no Museu do Douro : estudo da coleção” (edição de Autor, Porto, 2011). Agradecemos ao autor a autorização para a sua publicação.

    A fotografia, cedida pelo Senhor Abeilard Vilela para o Arquivo dos Bombeiros da Régua, testemunha o lançamento da primeira pedra para o Monumento Sacadura Cabral, realizado em Agosto de 1925. Podemos ver ao centro, Júlio Vilela a discursar, atrás deste os bombeiros da Régua com o estandarte da sua corporação e à esquerda o Comandante Afonso Soares acompanhado de Camilo Guedes Castelo Branco.

Clique nas imagens para ampliar. Este texto está também publicado na edição do semanário regional "O Arrais" de 22 de Março de 2012. Texto e sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março  de  2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Em tempo do III Fórum João de Araújo Correia que se realiza a 20 de Outubro no Museu do Douro:

Do texto de João de Araújo Correia (JAC), "Uma Eternidade", que é uma separata do livro de Elísio de Moura - "Vida e Obra - Testemunhos":

"Pouco posso dizer do professor Elísio de Moura, porque não fui seu discípulo. À parte a instrução primária e dois anos passados, aqui na Régua, a estudar francês e inglês, com o mestre particular Francisco Pinto Pereira, o "Chico das Agostinhas", a minha vida estudantil é portuense." - João de Araújo Correia
Clique nas imagens para ampliar. Imagens e texto sugeridos por Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

“José Saramago – Da Cegueira à Lucidez!” de António José Borges

Da Cegueira à Lucidez, é um livro de António José Borges, natural do Peso da Régua, a viver em Lisboa, que pretende dar uma nova visão da obra de Saramago, nomeadamente através do seu percurso ideológico e literário.

O lançamento de "José Saramago – Da Cegueira à Lucidez" teve lugar em Novembro, na Livraria Leya CE Bucholz, na R. Duque de Palmela, nº 4, em Lisboa. Além do autor, António José Borges, estiveram  presentes Renato Epifânio, director da colecção Nova Águia (na qual a obra é editada), e Miguel Real, a quem coube a apresentação da obra. Dele é o prefácio, onde sobre o autor e a obra refere o seguinte: «(…) António José Borges aduz um conjunto de argumentos (…), acrescentando, assim, uma nova luz ao esclarecimento das múltiplas perspectivas estéticas por que se tem enquadrado a obra de José Saramago.(…) O romance ganha em José Saramago um estatuto ensaístico de permanente inquirição e abertura de horizontes culturais, segundo interrogações radicais de carácter filosófico (a questão de Deus, a questão civilizacional do capitalismo, a questão da identidade do eu…), que desafiam, senão subvertem, o paradigma conceptual por que habitualmente interpretamos o mundo, forçando o romance a tornar-se, mais do que a narrativa de uma história, um inquiridor das regras e dos modelos do acto instaurador da palavra.»

No posfácio deste livro,  Elsa Rodrigues dos Santos ainda salientou: «Além de aprofundar as motivações do texto, numa análise muito rica, levando o leitor a novos caminhos de interpretação, [o autor] desvenda a essência humanista de Saramago coadjuvado por textos seus paralelos (diários, entrevistas e artigos), como dos seus dados biográficos, em que Lanzarote foi pedra basilar. Na defesa da tese da existência de um percurso ideológico e literário dentro dos parâmetros já referidos, António José Borges selecciona três aspectos como os mais relevantes: O tratamento da religião e mais concretamente o papel de Deus, o discurso aforístico (nomeadamente os ditados populares), o papel do cão nos seus romances deste período.»

Sobre António José Borges: Nasceu no Peso da Régua. Vive em Lisboa. É licenciado em Ensino de Português e Alemão, estudou por um breve período na Ruhr Universität Bochum, na Alemanha, e é mestre em Ensino da Língua e Literatura Portuguesas. Foi Professor na Universidade Nacional Timor Lorosa’e e na Escola Alemã de Lisboa. Fez traduções de Inglês e Alemão para várias editoras e organizações e é ocasionalmente revisor e consultor editorial da Porto Editora. É associado da Associação Portuguesa de Escritores e da Sociedade da Língua Portuguesa, membro da direcção do Movimento Internacional Lusófono, presidente da Assembleia-Geral da Associação de Apoio à Diocese de Baucau (Timor-Leste) e faz parte da Tertúlia de João de Araújo Correia. Integra o Conselho de Direcção da revista Nova Águia, onde colabora com publicações, e é cronista permanente nas revistas "Tribuna Douro" e "Contrabando" (edição multilingue). Participou nas revistas "Navegações"; "Espacio / Espaço Escrito" – Revista de literatura en dos lenguas"; "O Escritor"; "Mealibra"; "Humanitas"; "Revista de Letras"; "Douro – Estudos e Documentos"; "Geia" (Tertúlia de João de Araújo Correia); "Terra Feita Voz" (Círculo Cultural Miguel Torga) e "DiVersos". Como contista, publicou no jornal timorense "Semanário" e na antologia "Olhares Convergentes". Colaborou na antologia de textos durienses "Palavras que o Douro tece" e no "In Memoriam de João de Araújo Correia" (Grémio Literário Vila-Realense). É autor dos livros "Timor – As Rugas da Beleza" (crónicas, 2006) e "de olhos lavados / ho matan moos" (poesia – edição bilingue e ilustrada, 2009). Para mais informações: Zéfiro.
- Matéria enviada por J A Almeida - Régua, em Dezembro de 2010.