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segunda-feira, 28 de março de 2011

Uma Sineta de Palavras - 3

 A presença dos bombeiros na vida e obra  de João de Araújo Correia

“A associação é digna do meu zelo e até do meu sacrifício”
João de Araújo Correia

Continuação.
O mundo dos bombeiros tem uma magia muito especial para todos os seres humanos, muito em especial quando crianças, que é imutável mesmo que mudem as cores das fardas, os pronto-socorros sejam mais potentes e equipados com material sofisticado e os sinais de incêndios tenham outras formas de alertar os bombeiras. De uma época para outra, a modernidade traz algumas alterações na forma como os bombeiros actuam e desempenham a sua missão. Umas são mais notórias e caem em desuso, mas provam que se verifica também uma evolução na sua missão de socorro.


A partir de certa altura, os sinais de incêndios que só os velhos bombeiros aprenderam caíram também em desuso. Antigamente eram usados para saberem em que ruas da Régua andava o fogo, mas hoje os bombeiros não assim chamados, mas pelo toque de uma sirene que, começa já começou a dar lugar a um novo aviso, as mensagens difundidas pelos modernos telemóveis.

Em “Sinais de Incêndios”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, João de Araújo Correia evoca o tempo em os fogos metiam mais medo e os bombeiros eram chamados pelos diferentes toques do sino da Capela do Cruzeiro.

“Estou a ver, no quarto de meu pai, dentro de um caixilho, uma espécie de registo intitulado Sinais de Incêndio. Mas em ortografia antiga… Os Sinais rezam como Signaes.
Pela ortografia se poderá avaliar a idade do registo. Idade antiga, embora posterior a Gregos e Romanos…
Pendia o registo com a sua moldura, sobre a mesinha de cabeceira de meu pai. Era uma espécie de semideus lareiro. De noite ou de dia, se o sino do Cruzeiro tocasse a fogo, aqui na Régua, o benemérito registo indicava a meu pai o sítio em que lavraria ponta de incêndio capaz de destruir a Régua.
No tempo de meu pai, havia mais medo a fogos do que hoje. Se havia confiança nos bombeiros, haveria menos confiança no material que então usavam. Hoje, tanto se confia na bomba como no bombeiro. O munícipe sossega.
Também havia, no tempo de meu pai, maior curiosidade ou possibilidade de saber onde era o fogo. Hoje, não o diz a ninguém a lúgubre sereia. O morador desiste de ser curioso ou sai à rua a perguntar: onde é o incêndio?
Graças à pagela, pendurada no quarto de meu pai, sabia ele a qualquer hora, diurna ou nocturna, se havia fogo e em que bairro andaria ele ateado.
Como de facto. A tabela rezava assim:
  • 4 badaladas – Souto, Boa Morte, Calvário, Quebra Costas, Rua das Árvores, Estrada Nova, Eiró, S. Pedro, S. João, Eirinha.
  • 5 badaladas – Fontainhas, Cruz das Almas, Rua do Passo, Carreira, Fundo de Vila, Azenha, Ferrans (?), Rua de S. José, Vila Franca.
  • 6 badaladas – Rua Serpa Pinto, Bordalo, Americano.
  • 7 badaladas – Ameixieira, Senhor dos Aflitos, Rua Custódio José Vieira, Cais de Baixo, Passeio Alegre, Rua João de Lemos, Rua Nova.
  • 8 badaladas – Rua dos Camilos à Ponte, Rua da Alegria, Rua 1.º de Dezembro, Guindais, Midão.
  • 9  badaladas – Fora de Vila
  • Para parar - 5 badaladas.
Copiei a lista de exemplar velhinho e esbotenado. Copiei-a, acertando-lhe a ortografia pelo cânone actual. Mas, tão velho é o espécime, que duvido do topónimo Ferrans – tanto ou quanto safado. Se alguém me quiser tirar dúvidas…
É curiosa a lista de badaladas. Fala-nos de ruas velhas, ruas que mudaram de nome ou o perderam – como a do Passo. Fala-nos da Régua de nossos pais que se pode considerar antiga.
Muito estimaria que alguém me oferecesse um exemplar perfeito dos SIGNAES DE INCÊNDIO. O que possuo não pertenceu a meu pai. Deu-mo um amigo. Mas, tão gasto, que mal o posso ler. É pena… Como folha velha, teria mais poesia se fosse mais legível.

Nota do Autor: Diz-me pessoa amiga que a Rua do Passo, no Peso, é a que vai da Cruz das Almas, em linha recta, às Rua da Carreira. Abre para essa rua a propriedade a que chamam de Gama. Esta informação, que muito agradeço, completa o artigo que intitulei de Sinais de Incêndio”.

Os temas sobre as crónicas dos bombeiros são fragmentos essenciais para completar a história colectiva do seu remoto passado. São pedaços de memórias que permitem refazer com rigor e verdade quem foram os homens e os seus momentos decisivos que revelaram uma determinação e fé inabalável em manter em funcionamento esta maravilhosa obra de ajuda a quem precisa.

Em 1938, no seu primeiro livro publicado, intitulado “Sem Método”, o escritor na Nota XXIX, reconhece a importância social dos soldados da paz da sua terra, ao expressar o seguinte:

“Despedi-me do doutor Feliciano com um abraço amargurado. É que me lembrei desta desventurada terra chamada Régua, tão desenfeliz que nem água tem para beber. Que não tem uma escola. Que não tem um hospital. Que, tirante os bombeiros, não tem coisa nenhuma útil ao comum.”

Mais tarde, o elogio aos bombeiros e à Associação repete-se em “Biblioteca Maximiano de Lemos” (in Pátria Pequena-1963) para fazer um louvor à instituição que revelava dinamismo e uma frescura “física”, em cada aniversário que comemorava.

“Na Régua, é tradição que falhem todas as iniciativas. Falharam as touradas, as exposições fotográficas, o teatro de amadores, o orfeão, a parada agrícola, os desportos náuticos e até o carnaval inventado pelo Chico Pulga. Tudo falhou, menos a Associação dos Bombeiros Voluntários, fundada em 1880, e de ano para ano, mais florescente”.

Na crónica “Uma velha Estante”, publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, o escritor volta à sua infância -  quando teria onze ou doze anos de idade – para reviver o fascínio  das  salas recreativas do primeiro quartel,  onde  reparou  numa velha estante os   livros que nunca mais esqueceu.

“Quando o quartel dos bombeiros funcionou modestamente numa casa situada no actual Largo dos Aviadores, frequentei-lhe as salas recreativas com o meu pai - era eu rapazinho.
Na sala dos jogos, inofensivos jogos de cartas, dominó e quino, lembro-me de ver, encostada a uma parede, uma alta e larga estante de madeira rica, toda envidraçada e repleta de livros.
Creio que ninguém lhes tocava. Quem se entretinha com a sueca, o dominó e o quino talvez nem reparasse na volumosa estante, abarrotada de livros.
Reparava eu... E o meu regalo seria abrir aquela estante e colher de lá um livro para o folhear e ler antes de me deitar. Assim eu o percebesse. Era ainda tão novo… Teria onze, doze anos.
Os meus encantos, naquele clube, eram aquela estante. Mas, sempre fechada e muda. Até que uma noite, e em noites seguidas, a vi abrir. Um senhor, que usava óculos, ia retirando e colocando de novo, no seu lugar, rimas de volumes. Arrecadava-os depois de lhes escriturar os títulos num grande livro de papel almaço.
Livros que nunca mais esqueci. Quando, depois de instalados os bombeiros no quartel novo, alguém me disse que todos esses volumes estavam à matroca, empilhados num monte, sem o mínimo vislumbre de arrumação, caiu-me a alma aos pés. E assim, esteve, de rastos uma porção de anos.
Até que ontem, dia que marquei com uma pedra, vim a saber que os livros já estão arrumadinhos na estante – bela estante de mogno.”

Os bombeiros da Régua fazem mais do que apagar os incêndios. Desde o seu início constituíram uma organização social e humanitária. O seu quartel não guarda só os equipamentos e fardamentos, mas serve como um centro convívio social da comunidade reguense. De acordo com o estabelecido nos estatutos da Associação, os sócios fundadores propuseram-se criar uma biblioteca, desde que os fundos o permitissem. Se assim o pensaram e desejaram, depressa o conseguiram realizar, com a ajuda de Afonso Soares e de muitos beneméritos.

No tema “Primórdios” (in Pátria Pequena - 1963) volta a falar da criação da biblioteca dos bombeiros, criada em 1885, pelo  sócio contribuinte Afonso Soares que, por modéstia, não quis que o seu nome fosse revelado.

“Pena é que o saudoso historiador da nossa vila e concelho mão tenha nomeado o sócio contribuinte, que tanto desejou ver o nosso quartel espiritualizado com uma livraria. Dizemos tanto desejou, porque o seu desejo moveu a vontade do Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro.
Devemos a um anónimo a fundação, em 1885, da nossa Biblioteca. Se soubéssemos o nome dele, seria obrigação perpetuar-lhe a memória com algum voto condigno. Como não se sabe, imagine-se que foi o humilde benemérito. Algum obscuro artista, amigo da Instrução…
Obscuro não deve ter sido o Dr. Joaquim Correia Cardoso Monteiro, propulsor da luminosa ideia do sócio contribuinte. Inscreva-se-lhe o nome numa lápide se não pudermos eternizar-lhe o retrato entre os nossos livros. Devemos gratidão a esse antepassado.
As coisas são como os rios. Têm origem que, embora tímida, nunca é desprezível. A nossa Biblioteca nasceu em 1885. Ninguém esqueça essa data.
Nascida em 1885, só em 1960, em pleno século actual, veio a ser baptizada. Na província, a marcha de qualquer intuição é sempre lenta.”
(Clique na imagem para ampliar)

Aquela biblioteca foi ainda tema para mais duas crónicas, todas incluídas no livro Pátria Pequena: “Dr. Maximiano de Lemos (in Pátria Pequena-1960), “Alvíssaras” (in Pátria Pequena-1960) “Biblioteca Maximiano de Lemos” (in Pátria Pequena-1963).

Em 1960, a velha biblioteca era enriquecida com a instalação de uma biblioteca fixa da Fundação Calouste Gulbenkian. Os bombeiros passaram a garantir serviço público. Esta biblioteca, a única que existiu na Régua durante muitos anos, passava a ser procurada e frequentada pelos jovens.

Na primeira crónica que foi dedicada a Maximiano de Lemos, erudito historiador da Medicina Portuguesa, nascido na Régua, em 8 de Agosto de 1860, quando os bombeiros se preparavam para lhe fazer uma homenagem, escreveu:

“Querem os nossos Bombeiros inaugurar quanto antes a sua nova biblioteca, renascida do velho armário repleto de livros sem catalogação, e querem dar-lhe o nome de Maximiano de Lemos, fazendo coincidir o acto inaugural com o centenário natalício do nosso conterrâneo. Dois quereres, qual deles o mais gentil… Que vão por diante é o nosso voto.”

Na crónica seguinte que intitulou de “Alvíssaras” elogiava a iniciativa dos bombeiros, que contribuiriam de forma decisiva para a organização das comemorações do centenário natalício de Maximiano de Lemos e que ela tenha encontrado apoio em mais “boas vontades”.

“Parece que vão por diante, aqui na Régua, as comemorações do primeiro centenário natalício do professor Maximiano de Lemos. À boa vontade dos nossos bombeiros vieram sucessivamente, para esse feito, a boa vontade do senhor Provedor da Santa Casa da Misericórdia e a boa vontade do senhor Presidente da Câmara Municipal. Três boas vontades que, somadas, darão de si inabalável querer no cumprimento de uma obrigação.
No dia 8 de Agosto próximo, ao cumprir dos cem anos sobre o nascimento de quem se distinguiu ao ponto de ser querido dos sábios do seu tempo, inaugurarão os nossos bombeiros a sua nova biblioteca, dando-lhe o nome do reguense ilustre. O grande estudioso, que passou a vida entre livros, sorrirá do outro mundo à carinhosa ideia dos seus conterrâneos. Será capaz de vir ajudá-los na escolha, catalogação, arrumação e defesa de boas espécies bibliográficas.”

Em “Biblioteca Maximiano de Lemos” (in Pátria Pequena, 1963), recorda, com sentido de humor, as duas bibliotecas que coexistiram, durante algum tempo, no último piso do Quartel dos Bombeiros:

“A Biblioteca Maximiano de Lemos, inaugurada em 1960, ao comemorar-se o primeiro centenário do seu ilustre patrono, vai ser enriquecida, no próximo mês de Novembro, com uma valiosa colecção de livros da Fundação Calouste Gulbenkian. Diremos, para ser precisos que vai funcionar, dentro da Biblioteca Maximiano de Lemos umas das bibliotecas fixas da Fundação Gulbenkian.
Queremos que as duas bibliotecas não briguem uma com a outra, antes se auxiliem e completem. A de Maximiano de Lemos pobre e velha livraria, herdeira da primitiva estante dos Bombeiros e acrescida de alguma oferta particular. A da Fundação, constituída por livros em barda e todos em folha, será útil ao comum dos leitores. Será própria para os desbravar e lhe estimular o gosto da leitura.”

“Uma grande lição”, crónica publicada no jornal “O Arrais”, em 1980, foi mais um pretexto para distinguir a acção cultural, em especial dos bombeiros, nas comemorações do primeiro centenário de uma figura pública reguense, de valor nacional, que ele muito considerava, o Dr. Maximiano de Lemos, insigne médico, professor e historiador da medicina portuguesa.

“Nem sempre a Régua adormeceu em pontos de civismo. A 3 de Dezembro de 1960, deu uma grande lição, comemorando, com solenidade, o primeiro centenário do Dr. Maximiano de Lemos - insigne reguense.
Bombeiros Voluntários, Hospital de D. Luís I e Câmara Municipal colaboraram no sentido de não envergonharem a terra com comemorações.
(…)
Diga-se também que os nossos bombeiros inauguraram o ressurgimento da sua livraria, dando-lhe o nome de Maximiano de Lemos.
(…)
O Dr. Alberto Saavedra, homem de Ciências e Letras produziu um belo discurso na inauguração da Biblioteca. Publicado em fascículo, esse discurso é hoje venerável relíquia”.

Em 1978, na crónica “Uma Galera”, publicada no jornal “O Arrais”, lamentava que os bombeiros não possuíssem uma sala museu para guardarem os antigos materiais usados nos incêndios, as velhas fardas e os documentos de valor. Considera que essa atitude é uma falta grave. Mas incentiva ao aparecimento de um espaço no quartel destinado a um museu dos bombeiros. Aquele texto acaba por ter um efeito pedagógico.

Em 1980, um século depois da fundação, os bombeiros da Régua criavam o seu Museu, numa das salas do quartel que decidiram baptizar o Museu com o nome de Dr. João de Araújo Correia. A ideia por ele desejada, acaba assim por ser concretizada, mas sem que a galera voltasse ao seu destino de origem.

“De uma das vezes que atravessei uma vila risonha, apeei-me da burra, como quem diz do carro, para espreitar uma casinha baixa, de portas abertas para um grande largo. Era um quartel de bombeiros…Mas, tão antigo, em seu material, que era um museu de bombas e capacetes, machados e agulhetas, tudo disposto para acudir a incêndio ateado aí cem anos antes.
Estive, vai não vai, para nele pegar nele e trazê-lo para a Régua, oferece-lo aos bombeiros da minha terra, que tinham quartel novo, no trinque, e não tinham guardado, do quartel velho, grandes recordações. Podiam, em edifício à parte, manter aquele museu como saudade do século passado. Podiam oferece-lo à memória de quem fundou, há cerca de um século, a primeira associação de bombeiros da Régua.
Que resta desse tempo? Uma galera, que andou de jó para já até um dia. Consta-me que foi parar, emprestada que não dada, a um quartel do Porto.
Hoje, que os nossos bombeiros ampliaram o quartel, devem chamá-la a si como relíquia dos seus velhos tempos… Já não lhe falta espaço onde a meter e exibir.
Os bombeiros da Régua, que tanto cabedal fazem da sineta de Canelas, que só a Canelas pertence, devem recolher, quanto antes, a galera que só a eles deve pertencer. Venha para a Régua, quanto antes, a galera que levou a muito incêndio, em tempos idos, os bombeiros da Régua. Tanto mais, que é uma linda galera, muito bem conservada… Parece que acabou de sair de mãos de artista.” 
Continua...

- Colaboração de J. A. Almeida - Régua para "Escritos do Douro".
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