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terça-feira, 8 de outubro de 2013

MILAGRE

A JOSÉ AFONSO DE OLIVEIRA SOARES

Nesse inverno, de tanto chover, as estradas ficaram esbeiçadas. O rio levou pelo pé as vinhas dos nateiros. Das serras tombaram sobre os vales enormes fragas, redondas como jogas de brincar do tempo dos gigantes. Inverno pegado. Pelo Abril dentro, já as árvores se esfoiravam em pétalas brancas e em farrapos de côr, e as abelhas não saíam dos cortiços nem uma borboleta preava nos cálices alagados. Magoava a alma ver afogada em água sombria o sussurro claro do tempo das flores. Tristeza igual só a da cara dos lavradores meanhos quando iam às courelas esburgadas avaloar os estragos do temporal desfeito. Tragédia assim só se podia ler na máscara do cavador crucificado na umbreira dos cardenhos. A Páscoa estava connosco e o céu não se reconciliava com os pobres, nem rogado pelo canto aflitivo das aves. Era só chover, como se Nosso Senhor não tivesse arquitectado o firmamento com mais alegres desígnios.

Parecia um sinal.

Como Deus não bota os males todos a um canto, podia-se descontar um bem nesta desgraça. Debaixo dos escombros, que davam à paisagem o aspecto de bulida, aqui e além, por escava- terra vinda das profundas, nem um copo humano ficara sepultado. Tanto a sábios como a pobres de espírito dava isto que cismar. Inverno amaldiçoado e ninguém perecera fora de sua casa. Podiam-se dar louvores a quem manda…

Muito de admirar era também que certas casas arruinadas, solares antigos, paredes salitrosas de convento, rebutalhados de barbaçãs de guerra dos afonsinhos, permanecessem de pé, inabaláveis como velhinhos recurvos e cobertos de musgo, cuja resistência a todas as doenças causa o espanto dos médicos e a mal rebuçada alegria dos herdeiros.

Em Covelas havia um pardieiro naquelas condições. Chamavam-lhe a Casa das Mónicas, pedreira que vira expirar quatro senhoras decrépitas na alba do nosso século. Essa casa tinha numa padieira quebrada a certidão de idade: 1665.Todavia, mais que a padieira, rezavam da sua vetustez barrigas e cotovelos dos seus panos cobertos de heradeiras, assim como as órbitas vazadas de varandins e janelas, apenas guarnecidas de gonzos ferrugentos. Sem vislumbre de esquadria, parecida avantesma no acto de levantar vôo ou horsa desconjuntada com tropeção nos jarretes. E não caía… Os mendigos, acossados  dos vendavais, era ali que se refugiavam sem susto. As crianças das escolas eram ali que brincavam. Por chuva e por neve, o seu coito era aquele. De verão trepavam às cornijas aluídas e expulsavam dos buracos os zilros, fazendo competência de gritaria com eles. Nestes perigosos brincos não se magoou nunca rapaz nem rapariga – que as raparigas, nas escaladas do casarão esburacado, eram mais atrevidas que os rapazes.

Naquele inverno esperava-se que tombasse, que se afundasse de vez a nau desmantelada das Mónicas. As almas piedosas preveniam os mendigos: ó tio homem, vocemecê não se meta em semelhante lora, que morre lá assapado! As mãis proibiam os filhos de se aproximarem daquela ratoeira, armada pelo demo para os castigar, à falsa fé, das suas travessuras.

- Olhaide! Se vos vejo lá, ponho-vos esse rabo mais negro que esta saia…

Bem se importavam com os pobres e as crianças! Os pobres continuavam, com grande freima, a coçar as costas, roça que roça, nas esquinas de granito. As crianças não tinham outro recreio senão a Casa das Mónicas. Havia de ser o que Deus quisesse.

Tempos antes, andara de povo em povo um maluquinho triste, cuja atitude era tôda de protecção a imaginários seres em perigo. Olhos receosos, mãos enconchadas como se estivessem a acariciar a penugem de oiro de crânios infantis, era, por uma pena, a figura alada que vela crianças dormidas à beira de precipícios.

Uma tal Leopoldina, muito esperteleja para pôr alcunhas, quando o viu em Covelas a primeira vez, baptizou-o logo. É o Anjo da Guarda!

O apodo pegou de raiz. Frondejou em mil aldeias. Até gentes eclesiásticas, em todo o Cima-Douro, ao avistá-lo, soltavam esta graça: o Anjo da Guarda está connosco.

Naquele Inverno rigoroso, não se sabia o sumiço que levara o maluquinho. Estaria por lá entre os potes da cozinha de casa rica ou teria morrido. Se tivesse morrido, bem regalado devia estar, à banda de cima das nuvens, com sol do melhor e bons manjares celestes, enquanto os terreanos, de molhados, começavam a criar barbatanas de robalo.

Ia esquecido o Anjo da Guarda. O mais certo era ter-se lembrado Nosso Senhor de o recolher, porquanto o desgraçadinho andava cá em baixo só para penar.

No sábado de Ramos desse Inverno assinalado, à chuva juntou-se o trovão e o vento. Parecia o fim do mundo, o dia de juízo. Bem carregados podiam ser os carros no Verão seguinte, já que tão molhados se levavam a benzer os ramos. Que, lá diz o rifão: Ramos molhados, carros carregados.

Ás três horas da tarde negra – não há memória de negrume igual – esbugalharam-se os olhos dos aldeões, as queixadas dos aldeões descaíram de súbito. Ouvira-se um fragor medonho. As mulheres foram as primeiras que se puseram de alevante. Com os cabelos colados às costas, aderentes as saias às pernas musculosas, convergiram ao sítio donde partira o formidável estrondo.

A Casa das Mónicas estava por terra.

– Que é da canalha? O meu Zé? Ah! Fernandes! Filho da minha alma! Ah! Marques! Ah! meu ruço, que te não torno a ver!

Ficaram calvas algumas de tanto se arrepelarem. Outras ficaram roucas, outras ficaram gagas. Depois, atiraram-se às pedras que supunham ser as lajes da sepultura dos filhos, e aí se desunharam e se ensanguentaram, enquanto os homens, hirtos e pávidos, eram como bois no açougue, com a choupa espetada, antes de ajoelhar.

Cristo! Daí a pouco, não houve quelho donde não saísse canalha. Ele apareceu o Zé, o Fernandes, o Marques, o Henriques, o Fulgêncio, o Tobias, o Álvaro, quantos rebentos graciosos havia daquelas arrepeladas mães.

Contaram-se e recontaram-se. Estavam  todos. Nem se quer faltava a Mecias, engano da Natureza, que a fizera menina, devendo sair rapaz. Gritou-se ao milagre, que se podia ouvir no Porto ou em Salamanca. Desorientada, a Zefa Maníaca pôs catadura feroz, fechou os punhos, levou-os à cara do gentio, e disse:

– Calaide-vos! O Anjo da Guarda está sempre debaixo das sapadas.

Tresmalhou-se o rebanho. Os rapazes saltavam como cabritos. A Mecias, cabra de chocalho, ia ao chinquelimpé diante do soco materno alçado.

Do maluquinho triste ninguém se lembrava. O tempo desanuviou-se, assim como as caras dos aldeões se desanuviaram. Brilhou o sol à sua vontade, amadurecendo os poucos frutos vingados. Veio o Junho. Ceifou-se de noite por via do calor. Nas varandas de pau, abriram os cravos e as cravelinas – que rico cheiro!

Estávamos no pino do Verão – uma beleza. As vinhas começavam a ruçar. Apanhavam-se à mão pássaros estonteados do calor.

A Casa das Mónicas era um grande moroiço onde se empoleiravam à noite, em mangas de camisa, os trabalhadores suados. Aí se punham a cantar, sem tom nem som, cada um para seu lado, modas nossas e modas raianas, aprendidas nas segadas da Terra - Quente. Ainda foi bem cair a Casa das Mónicas para os cantadores terem poleiro!

Um dia – foi num domingo – apareceu em Covelas, vindo do Brasil, um sobrinho das Mónicas, dono e senhor daquelas ruínas. Era um chincharra-velho – nem há homem pequeno e magro com quem se compare. Escuro como o chocolate, olhos ígneos como os brilhantes que trazia ao peito, falas poucas e muito sossegadas, aí se põe a sondar, a medir amorosamente as pedras que tinham visto expirar as tias.

– Quero levantar esta casa. Se houvesse aí um mestre-de-obras que conhecesse a casa como ela era e ma reconstituísse, dava-lhe muito dinheiro.

Mestre-de-obras não havia outro em Covelas e seus arredores senão o Mestre José Pais. Está por nascer o que lhe há-de levar as lampas em obra de cantaria e de alvenaria. Chamado pelo brasileiro, justa a obra por tuta-e-meia, pois o Mestre José Pais, artista incomparável, nascera para perder e não para ganhar.

– Vamos a isso quando Vossa Senhoria quiser – foram as suas palavras.

Começou a remoção do entulho. Num vão, ajeitado em forma de carneiro rico, estava de pé, encostado a uma parede, o corpo do maluquinho triste. Parecia vivo, e dizem que cheirava bem. Daí a pouco, ficou nuzinho em pêlo. Da vestimenta de cotim e do cordovão dos sapatos fizeram-se relíquias...
- In Contos Bárbaros de João de Araújo Correia

Clique  nas imagens para ampliar. Texto cedido pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e editado para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sábado, 3 de agosto de 2013

Rostos do humanitarismo

Toda a fotografia é um certificado de presença - Roland Barthes

Num texto publicado neste jornal no já distante ano de 1979, João de Araújo Correia, a coberto do pseudónimo Joaquim Pires, interroga-se sobre o paradeiro de retratos pintados que conheceu, mas que perdeu de vista. Procura pistas sobre um retrato de D. Maria II, de autor desconhecido, e dois do seu filho D. Luís I, ambos de famosos pintores portuenses. Evoca ainda retratos de figuras locais como o Heitorzinho e o Chico Doido, obras de um artista também local, Afonso Soares.

Esta pesquisa reflecte o seu empenho na valorização da sua “pátria pequena”, pois “Não é muito rica, não é nada rica em obras de arte a nossa Régua. Deve acarinhar as poucas que possui”. Por isso as antevê no desejado museu municipal, que “precisará de quadros que o embelezem e enriqueçam”. No seu entusiasmo, vaticina que a estas pinturas outros “retratos de senhora e homem pintados por grandes mestres” se hão-de vir juntar, antecipando assim a criação de um espaço consagrado a retratos. Curiosamente, nesta sua demanda, o nosso contista privilegia critérios estéticos, tendo em mente a criação de uma galeria de arte.

Esta é sem dúvida uma das diversas formas de abordar o retrato, remetendo para segundo plano o retratado e as motivações da sua representação pictórica, aspectos que, a serem considerados, conduziriam à constituição de uma galeria de notáveis como aquela que a Santa Casa da Misericórdia de Peso da Régua depositou no Museu do Douro, que a expôs há alguns meses, explorando uma outra faceta da colecção gratulatória. A pluralidade de abordagens do retrato é por si só um sinal das potencialidades desta forma de representação, a qual, precisamente pelos vários aspectos que nela se cruzam, é definida por Didi-Huberman como um “nó antropológico”.

Género clássico da pintura – foi, aliás, como retrato que a pintura nasceu -, até pela sua ligação a esta arte, o retrato foi durante vários séculos privilégio das classes mais elevadas. Através do retrato pintado, chega-nos não só a imagem de uma pessoa, mas também o poder que essa pessoa tem de se fazer representar e, assim, lutar contra o esquecimento. Cumulativamente ou não, a personalidade imortalizada pelo pincel pode ser alguém que se destaca pelos seus feitos. O retrato continua a ser uma forma de distinção, posta, neste caso, ao serviço de uma homenagem que estende o exemplo da pessoa representada aos vindouros, como sucede com os já referidos retratos da Santa Casa da Misericórdia.

Inicialmente tão elitista como o retrato pintado, a fotografia irá, no entanto, alterar este panorama. Depois do daguerreótipo, processo de fixação duma imagem numa superfície surgido em 1839, desenvolveram-se diversos materiais e equipamentos que conduziram à melhoria da qualidade da imagem e da sua reprodutibilidade, à diminuição dos custos e ao uso da máquina fotográfica em contexto privado. Como consequência, a fotografia tornou o retrato acessível a um público mais vasto, que assim passou também a dispor da possibilidade de se representar e afirmar socialmente. Mas há mais, pois o retrato também é uma espécie de espelho no qual cada um pode contemplar-se e (re)conhecer-se. Daí que o culto romântico do “eu” seja igualmente importante para compreender a apetência oitocentista pelo retrato, que vai encontrar na fotografia uma excelente alternativa à pintura, sem que tal implique, contudo, o abandono do retrato pintado. Mesmo a literatura, cuja matéria-prima é a palavra, não deixa de expressar esta tendência retratista.

Lembremos, a propósito, o famoso soneto em que Bocage se diz “Magro, de olhos azuis, carão moreno”, publicado no início do século XIX.

O retrato serve ainda outros propósitos. Através dele também projectamos uma determinada imagem nossa para os outros, os quais têm no fotógrafo o seu representante primeiro. Para além disto, os retratos são uma espécie de passaporte para a imortalidade, uma vez que perpetuam uma imagem do retratado para além do seu desaparecimento. Retrato e memória são, por isso, amigos íntimos. Tudo isto nos ajuda a compreender porque é que, como diz Fernando de Sousa na apresentação disponível na “net” do Espólio Fotográfico Português, “mais de 90% das fotografias realizadas nas primeiras décadas do século XX, em Portugal, eram retratos”.

É precisamente porque o retrato é esta plataforma entre o presente, o passado e o futuro que hoje podemos recordar um antigo bombeiro e presidente da Associação, falecido há já uns anos. O bombeiro Zé Maria, ou Zé Matano como lhe chamavam os amigos, chegou até nós através de dois retratos ainda do tempo do preto e branco, mas nem por isso menos expressivos. Neles se combinam algumas das variáveis deste tipo de fotografias: um deles, feito em estúdio, é obra de um profissional e centra-se na cabeça e parte superior do tronco, ao passo que o outro, de corpo inteiro, foi tirado ao ar livre, talvez por um fotógrafo não encartado.

Uma vez que, como afirma Margarida Medeiros no seu estudo Fotografia e narcisismo, “o retrato fotográfico partilha com toda a espécie de fotografia esta vertigem da observação, do olhar, a dominância da sensorialidade visual”, um pequeno “zoom” sobre cada um deles dar-nos-á pistas que nos revelarão como um retrato é muito mais do que uma imagem.

Comecemos pela fotografia que representa o busto de Zé Maria sobre um invariável fundo cinzento. Pelo contraste com o escuro da farda, é o rosto, elemento identitário fundamental, que se destaca no retrato.

Com a cabeça posicionada a ¾ , o olhar tímido de Zé Maria não enfrenta a câmara, antes parece perdido em busca de algo distante. Absorto em algum pensamento, o nosso retratado não ostenta o semblante risonho de quem “olha o passarinho”. Enquanto o rosto torna bem patente a sua juventude, o seu trajar não deixa dúvida quanto aos ideais que perfilha. Uma vez que a fotografia revela a importância de uma coisa para alguém e, ao mesmo tempo, lhe confere relevância também, ao envergar o uniforme de bombeiro, Zé Maria manifesta a sua identificação com o elevado ideal humanitário dos soldados da paz, mostrando um precoce e exemplar sentido de serviço ao próximo. Os diversos anos que dedicou ao bem comum demonstram que não se tratou de generosidade apenas inspirada pelo idealismo típico da idade. O altruísmo, tão afivelado a si como o capacete à volta da sua face, fazia parte da sua natureza.

Embora seja a imagem que prende o nosso olhar, não podemos esquecer que uma fotografia também é um acontecimento, pelo que as circunstâncias de que resulta permitem vê-la a uma outra luz. De facto, a opção por um fotógrafo profissional, a deslocação propositada ao seu estúdio e a submissão às suas directivas, a cuidadosa selecção da indumentária, indiciam que não se trata de um retrato qualquer. Todo o cerimonial subjacente a este tipo de fotografias resulta do desejo de eternizar a melhor imagem do retratado, entendida no sentido daquela que melhor o representa. Essa imagem, captada num instante preciso, surge cristalizada no que podemos considerar o seu retrato oficial, destinado a constar num “altar de família” ou a servir de penhor de afectos. Era, pois, na pele de bombeiro que Zé Maria se sentia no seu elemento, dando fé não só da sua filantropia, mas também fornecendo um sinal para a posteridade sobre a forma como pretendia ser recordado. Se através do retrato, como antes foi dito, se procura vencer a morte, era como um jovem e convicto bombeiro que ele gostaria de permanecer vivo.

Numa altura em que a fotografia não era tão comum como hoje, Zé Maria fez-se representar como bombeiro ainda uma outra vez, reafirmando a sua ligação à causa humanitária. Em relação a este retrato, é difícil reconstituirmos o contexto que lhe deu origem: não sabemos se foi iniciativa do fotógrafo ou do fotografado, que tipo de fotógrafo é o seu autor e se resultou dum encontro casual entre ambos ou foi previamente combinado. Limitamo-nos por isso ao que nos dizem os nossos olhos. O desmaiado cenário de estúdio deu lugar a um ambiente de exterior cujo pano de fundo se divide quase igualitariamente entre o branco de uma parede iluminada pelo sol e o negro de uma porta. Entre elas, Zé Maria em corpo inteiro. É como se o nosso bombeiro saísse de um quadro para entrar na vida real. Apesar de serem só duas, as molas da roupa que flanqueiam a porta e uma janela que se anuncia lá estão como sinais do quotidiano. São elas os únicos adereços nesta tela despojada. Ainda por cima, o traje de cerimónia do retrato oficial foi substituído pela roupa de trabalho, indiciando o que na vida de bombeiro existe para além de desfiles ou ocasiões solenes. Se é verdade, como sustentam diversos estudiosos, que as fotografias são repositórios das coisas agradáveis da vida, não há dúvida que Zé Maria encarava com prazer a labuta em prol do seu semelhante.

Quanto à sua figura, ela surge bem no meio do retrato, suscitando a nossa atenção. Na cabeça ligeiramente inclinada sobre o lado direito, o rosto, embora esteja de frente, fica em grande parte encoberto pela sombra.

Mesmo assim, é possível vislumbrar uma expressão séria. A face perde o protagonismo e não temos a certeza de estar perante um jovem. Agora é o corpo no seu todo que representa o retratado, alguém que continua a definir-se como bombeiro quase da cabeça aos pés. Na verdade, no corpo descontraído, com as pernas afastadas e um pouco flectidas, sobressaem as mãos firmemente agarradas ao que aparenta ser um cinto, equipamento que, tal como o capacete, remete para as funções de bombeiro, ao mesmo tempo que o identifica. Só faltam as botas para termos perante nós alguém pronto a entrar em acção e auxiliar o seu próximo.

Diz a epígrafe que as fotografias não mentem. Pedaços de papel que guardam fragmentos de uma vida “para mais tarde recordar”, os retratos revelam-nos muito sobre quem através deles sobrevive. Neste caso concreto, qualquer uma das fotografias, mais do que de presença, fala-nos da entrega de Zé Maria a um ideal de solidariedade e fraternidade, graças ao qual a sua história individual se cruza com a história dos bombeiros de Peso da Régua. Aliás, os quase cento e trinta e três anos desta corporação não se entenderiam sem pessoas como Zé Maria. A passagem do tempo pode apagar o nome deles, mas terão sempre numa fotografia um monumento ao seu contributo e ao seu exemplo.
Ana Ribeiro

Clique na imagem para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2013. Texo e imagem cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sábado, 18 de maio de 2013

Retratos

Ninguém me dá relação de um retrato de D. Maria ll, que existiu ou deve ter existido na Câmara Municipal do Peso da Régua. Eu vi-o, lembro-me de o ver, creio que na Câmara, sendo eu pequenino. Recordo-me do saliente busto da rainha, tão saliente, pintado numa tela, que justificaria o cognome de Boa Mãe – aplicado à filha de D. Pedro IV.

Não sei se foi ou não excelente pintura. Não sei a que pintor se atribuiu. Sei que um bacharel idoso, vindo de Lisboa, quis provar, não sei com que razões, que se deveria atribuir a um pincel obscuro. Dava como autor da obra, um parente de apelido Inácio, conhecido por Inácio da Ribeira.

Ponha-se de parte o capricho reivindicativo do bacharel ansião para perguntar: onde pára o retrato de D. Maria II? Se alguém mo souber dizer, tenha a bondade de mo comunicar num postalzinho, embora o postalzinho, nestes belos tempos, lhe possa custar coiro e cabelo.

Passemos a D. Maria II ao seu segundo filho, que veio a ser, por morte do irmão Pedro, rei de Portugal.

Passemos a D. Luís, homem delicado, que patrocinou a fundação do nosso hospital em 1873. Foi seu patrono, é modo de dizer, até há poucos dias. Hoje, o nosso hospital não tem padrinho. Não tem nome. Confunde-se com qualquer outro. Por amor à centralização ou a descentralização? Responda quem souber.

De D. Luís I conheço dois retratos muito bons. Vi-os muitas vezes no chamado Hospital Velho, na casa onde funciona, hoje em dia, o Centro de Saúde. Retratos muito bons…

O de corpo inteiro é um retrato de rei, com botas de montar e outros atributos de soberania.

Pintou-o, para a nossa Régua, o pintor João Correia, que deixou nome no Porto. É esplêndido!

Mas, para meu gosto, melhor retrato é o de meio corpo é mais humano, menos destinado a fascinar. Saiu das mãos de Resende, mestre portuense amigo de Camilo.

Não sei onde se ostentam agora os dois retratos de D. Luís I. Oxalá estejam a bom recado, que mãos inteligentes e precavidas os protejam. Não é muito rica, não é nada rica em obras de arte a nossa Régua. Deve acarinhar as poucas que possui.

Do sempre saudoso reguense José Afonso de Oliveira Soares, homem tão hábil a escrever com a desenhar e pintar, talento disperso em múltiplos talentos, ficaram por aí alguns quadros, no género retrato, dignos de conservação. O retrato do Heitorzinho e do Chico Doido e mais alguns ficaram para sempre na retina de quem pôde ver e admirar. Quem os possuir não deve atirar com eles para um canto.

Se um dia a Régua se dispuser a instalar na Casa Vaz, abandonada pelo instituto do Vinho do Porto, o museu municipal, que muito lhe vai tardando, precisará de quadros que o embelezem e enriqueçam. Nele ficariam a matar os retratos que mencionei e outros, que tenho visto em casas particulares. Se o Museu for bem organizado e bem defendido, não lhe faltarão beneméritos. Muita gente haverá que deseje distinguir-se, oferecendo ao Museu retratos que se podem perder em sucessivas partilhas. Estou a ver e cobiçar, para o Museu, retratos de senhora e homem pintados por grandes mestres.

- João de Araújo Correia. Publicado no jornal O Arrais, de 4 de Maio de 1979, sob o pseudónimo de Joaquim Pires.

- João de Araújo Correia no blogue "Escritos do Douro".

Clique  nas imagens para ampliar. Sugestão de texto do Dr. José Alfredo Almeida (JASA) para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Maio de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 28 de março de 2013

A “pátria pequena” e os valores humanitários

Ana Ribeiro*
O bem comum mais precioso é o homem. Como quem diz: somos nós. 
João de Araújo Correia em Pátria Pequena.

Em 1977, Pátria pequena veio juntar-se ao já extenso rol de publicações de João de Araújo Correia. Tal designação traz à lembrança títulos como Pátria (1896), de Guerra Junqueiro, ou A minha pátria (1906), de Ana de Castro Osório. Distancia-se deles, no entanto, ao circunscrever um recorte daquela que, por contraste, poderá ser considerada a pátria grande. Esse retalho corresponde, como o autor esclarece na nota introdutória, à “vila e concelho do Peso da Régua”, aos quais também dedica o livro. Num primeiro plano, este título, à semelhança de Terra ingrata ou Montes pintados, fornece a representação de um espaço, cuja exiguidade é várias vezes referida ao longo da obra.

A “pátria pequena” de João de Araújo Correia é, porém, muito mais do que um território, pois esta figuração metafórica expressa sobretudo a relação profunda que o escritor mantém com este local. Quando declara “Aqui nasci, aqui vivo e aqui morrerei sem espírito provinciano”, faz dele uma espécie de casa onde passou a sua vida, convertendo-o num espaço íntimo da maior importância na sua geografia sentimental.

Enraizado no seu torrão natal para a vida e para a morte, nem por isso deixa o autor de o transcender. “Sem espírito provinciano”, ele é um cidadão do mundo fiel às suas origens, mas de vistas alargadas. Somada à sua estreita ligação ao meio onde decorreu a sua existência, esta característica legitima o projecto que desenvolve nos diversos textos coligidos em Pátria pequena. Na nótula de abertura, o autor apresenta-os como “setas de papel disparadas pelo meu arco, sempre insofrido, contra fealdades e vícios de cunho provinciano” que afectam a Régua e arredores. Como dirá na crónica “De boa mente”, onde realiza o balanço de três anos de publicações mensais no Vida por vida, “não mira outro alvo que não seja quanto a deslustre ou prejudique”.

Na identificação desassombrada das males de que a sua terra padece, o escritor reguense parece transferir para a sua “pátria pequena” aquele comportamento tão típico dos portugueses, que, como diz Barry Hatton, “são mais críticos de si mesmos do que os estrangeiros”. No entanto, é a sua afeição por ela e o seu espírito cívico que assim o determinam: “É admissível e até louvável que o natural da Régua diga mal da sua terra por amor, isto é, com o intuito de a corrigir de algum defeito grave ou esvoaçante pecha que a deslustre” (“Pobre Régua”). À semelhança de José Correia de Magalhães, que cita em “Música de Poiares”, João de Araújo Correia pretende “fazer da Régua uma vila perfeita”. Tal aspiração, partilhada “por quem se distingue do barro comum”, não será alheia à responsabilidade associada ao estatuto de capital do Douro, pois, como o escritor recorda em “Escolas técnicas”, “A Régua é o Douro, região com características de autêntica província. É a capital do país vinícola mais célebre do mundo”.

A denúncia com objectivos terapêuticos traduz-se num retrato da Régua no século XX, uma vez que, embora redigidos na segunda metade deste século, os textos não excluem a convocação do passado recente. Note-se, no entanto, que os antecedentes desta actividade remontam ao Sem método (1938), a obra inaugural do autor. De facto, nas “notas críticas de certeiro jacto” de que fala Vergílio Correia no prefácio da 1ª edição, João de Araújo Correia identifica na sua terra chagas como o descaso pela memória, o esquecimento de vultos ilustres que nela nasceram ou viveram, a ausência de estruturas básicas de saúde e de assistência social, o desperdício de potencialidades turísticas e agrícolas, o bairrismo estéril, a descaracterização de hábitos (num prenúncio de globalização) e a fúria arboricida. Cerca de vinte anos depois, estes temas regressam nos textos recolhidos em Pátria pequena. É caso para dizer que se mudam os tempos mas não se mudam as vontades. Daí que, em “Alvitres”, o autor ironize: “Parece-nos a nós […] que os nossos estímulos, a bem do nosso meio, já não têm conta. /O que conta é o efeito que produziram. Matematicamente, é igual a zero. Poderá haver maior consolação?”. No entanto, a indiferença que acolhe as suas sugestões não faz esmorecer o seu zelo, como bem revela uma alusão à “Parábola do semeador” na crónica “De boa mente”: “Que faz porém quem nada mais deseja que ser semeador? Semeia… Se a semente cair em bom terreno, muito bem… se cair em mau terreno, paciência…” . Espécie de Cristo a pregar no deserto, só o amor inquebrantável à sua terra justifica que, entre 1956 e 1974, apesar de algumas interrupções, persista na sua intervenção cívica nas páginas do Vida por vida, o jornal dos Bombeiros locais.

Por outro lado, diz também muito do meio que o envolve o facto de, durante quase vinte anos, nele continuar o escritor a encontrar motivos que justificam a sua acção pedagógica, reincidindo até em alguns, como a defesa das árvores e a imperiosa necessidade de criar espaços verdes na Régua, a inaceitável decadência das termas do Moledo, a urgência de preservar os miradouros e de os tornar lugares convidativos à contemplação da paisagem, o resgate do esquecimento de reguenses de vulto como Vieira da Costa e Maximiano de Lemos e a falta de educação e de civismo que afecta alguns dos seus conterrâneos.

Não quer isto dizer, no entanto, que a pena de João de Araújo Correia seja atraída apenas pelo lado negro da sua terra. Como afirma em “Pobre Régua”, “Criticar é apreciar, é distinguir, na coisa criticada, os valores negativos e positivos”. Por isso se revolta, na mesma crónica, contra aqueles que, munidos de critérios desajustados, deixam escapar aquilo que torna um local único, conferindo-lhe uma identidade própria: “Quem sai da cidade sem nada na cabeça, mas com a bitola do Porto ou de Lisboa, diz mal da Régua como diz mal de Mirandela. Diz mal das terras pequenas, porque não são grandes. Do gracioso e do pitoresco não cura. Só lhe praz o colossal”. Mais uma vez, a “pátria pequena” inspira ao autor dos Contos bárbaros um patriotismo idêntico ao dos portugueses pelo seu país natal, os quais, no dizer de Barry Hatton, “são facilmente susceptíveis a estrangeiros desaprovadores”.

Pequena, mas não desprezível, a pátria de João de Araújo Correia detém, pois, potencialidades que deve explorar sem, contudo, se descaracterizar. É neste sentido que vão as sugestões do autor, as quais, numa dialéctica entre tradição e inovação, pretendem abrir caminho para um futuro alternativo a um presente pouco auspicioso.

Tal como ele a vê em meados do século passado, a sua pátria carece de atractivos quer para os naturais, quer para quem a visite: não tem um parque, não tem vida cultural, não tem monumentos, não tem locais de onde se possa desfrutar a bela paisagem envolvente, não tem escolas que possam contribuir para o desenvolvimento da região, não tem asseio nem maneiras, não tem uma rede local de transportes públicos, não oferece espaços agradáveis de alojamento e restauração, é barulhenta, tem muitos carros e condutores incumpridores...

Nada há de fatal, no entanto, neste cenário, pois, na óptica do escritor, não faltam recursos ao concelho da Régua para mudar de rumo. A começar pelas condições naturais, propícias ao turismo e à floricultura, por exemplo. Para além da natureza, também o passado é apresentado, sem contradição, como uma fonte de renovação. A ele se hão-de ir recuperar iniciativas como a parada agrícola, a tourada, as bandas de música ou os grupos de teatro, ou seja, aspectos que fazem da terra do nosso contista mais do que um entreposto vinícola. Ela pode também embelezar-se recuperando trechos como a estrada do Rodo, com as suas amoreiras. Desse passado fecundo, do qual se traça um retrato eufórico, deverá manter-se ainda a tradição dos queijinhos e do requeijão fornecidos pelas aldeias vizinhas, e ícones como o barco rabelo e o carro de bois, “relíquias da nossa terra ameaçadas de morte”. A memória e identidade locais também não podem dispensar os “reguenses ilustres”, imortalizados em nomes de ruas ou em monumentos. O antigo jornal diário também deve ser ressuscitado, para “defesa e ilustração” da capital do Douro. Enfim, a criação de escolas técnicas e o exemplo de outras terras são alguns dos estímulos para que a Régua deixe de ser uma “princesa indolente”.
Se criticar, como vimos acima, é também apontar os aspectos positivos, os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua cabem certamente nesta categoria. Oriundos desse pretérito glorioso, não tiveram o mesmo destino efémero de muitas criações de outrora. Na sua crónica “Biblioteca de Maximiano Lemos”, João de Araújo Correia assinala precisamente a excepcionalidade da sobrevivência da corporação local de Bombeiros entre fracassos de diversa ordem: “Na Régua é tradição que falhem todas as iniciativas. Falharam as touradas, as exposições fotográficas, o teatro de amadores, o orfeão, a parada agrícola, os desportos fluviais e até o carnaval inventado pelo Chico Pulga. Tudo falhou, menos a Associação dos Bombeiros Voluntários, fundada em 1880 e, de ano para ano, mais florescente”. Ao perdurar vigorosamente, a corporação de bombeiros poderá constituir um exemplo a seguir, demonstrando que o sucesso é possível.

A vitalidade desta instituição está bem patente nos textos que inspira a este seu admirador e entusiasta apoiante. Diga-se a propósito que logo a segunda crónica de Pátria pequena, “Uma relíquia”, de 1956, os traz à liça. O mesmo sucede numa das últimas, “O pelourinho de Canelas”, de 1971, o que sugere uma certa continuidade da presença deste tema ao longo dos anos. Registe-se ainda que, se a primeira crónica assinala os setenta e seis anos da corporação, a segunda evoca o aniversário do seu jornal, o Vida por vida.

Também as crónicas “Novembro” e “Bombeiros da velha guarda”, de 1963 e 1965, respectivamente, celebram natalícios dos Bombeiros. Constituem, por isso, atestados da robustez do corpo de Bombeiros, ao mesmo tempo que expressam o regozijo do autor com tal efeméride.

Este sentimento é indissociável do envolvimento do escritor na missão humanitária daqueles que sempre designa como “os nossos bombeiros”. Se não foi bombeiro como o pai ou presidente da Associação como o filho Camilo, nem por isso deixou de contribuir para o futuro de uma instituição com propósitos tão semelhantes aos da sua profissão. Com a discrição da abelha no seu casulo, foi da escrita que se serviu para fomentar o progresso dos soldados da paz da sua terra. Neste aspecto, a actuação de João de Araújo Correia é talvez única no país, já que nenhum outro dos nossos escritores, ao longo da sua vida, terá dedicado na imprensa tantos textos aos Bombeiros seus conterrâneos. Neles enaltece publicamente a nobre missão dos soldados da paz, iluminando com as suas palavras um recanto da sociedade geralmente deixado na sombra.

Por outro lado, a existência de Pátria pequena é, por si só, bem reveladora da ligação estreita entre o escritor e a corporação dos “nossos bombeiros”. Como explica na nota introdutória a este volume, foi no boletim Vida por vida, “órgão da [então] quase secular Associação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua”, que surgiram pela primeira vez, raramente identificados com o seu nome, os textos que esta obra reúne e reivindica como seus. Ao alimentar as páginas do órgão da Associação com as suas 121 crónicas, o contista duriense contribuiu certamente para a afirmação e robustecimento de ambos.

O júbilo do autor não decorre apenas de o aniversário dos Bombeiros, à conta de se festejar há muitos anos, se ter tornado em mais uma tradição que, no penúltimo mês do ano, como reflecte em “Novembro”, se veio juntar aos santórios, aos diospiros, aos almanaques e às castanhas assadas. De facto, estas crónicas de comemoração servem ainda para assinalar a invulgar juvenilidade destes Bombeiros com mais de oitenta anos. É que, e ainda segundo esta mesma crónica, eles, “ao contrário de nós, que somos mortais, remoçam com a idade”. Ao salientar este fenómeno, João de Araújo Correia torna patente a cadeia intergeracional através da qual a vida dos Bombeiros se renova, contrariando o esmorecimento do seu projecto humanitário. E assim deve ser, pois, como prossegue, “É objecto que os nossos Bombeiros vivam sem envelhecer”. 

Tanto em “Novembro” como em “Bombeiros da velha guarda”, o autor do Sem método não deixa também de referir a forma como os Bombeiros celebram o seu aniversário. Na primeira destas crónicas chama-lhe “velha tradição”, na qual vemos não só o reflexo de uma existência, ao tempo, quase centenária, mas também um dos suportes da longevidade da instituição. Segundo esta mesma crónica, tal tradição consiste apenas num “jantar fraternal”, associando assim ao jantar os valores que norteiam a actividade dos soldados da paz. Em “Bombeiros da velha guarda”, há um retrato mais completo da forma como os Bombeiros comemoram o seu aniversário: “Depois das cerimónias piedosas e do desfile nas ruas, sentam-se à mesa e comem. Comem bem e gracejam…”. A vida da corporação é, pois, marcada pela jovialidade, pela boa disposição e pela camaradagem. Os valores religiosos também fazem parte do ADN dos Bombeiros, assim como a sua ligação à comunidade, para a qual se exibem em trajes de gala.

Logo pelo seu título, esta crónica apresenta um pendor evocativo que no texto se desenvolve através de recordações várias. Em primeiro lugar, “os sócios e bombeiros antigos” que já participaram neste convívio anual. Numa luta contra o esquecimento e o anonimato, o autor constrói uma espécie de memorial, no qual reúne nomes mais ou menos sonantes, todos eles irmanados numa causa comum: “Lembra-se de Afonso Soares […]; do poeta Camilo Guedes […]; do José Avelino […]; do José Ruço […]; do José Maria Leite, o Riço […]”. Esta mescla de homens de origem social diversa que partilham valores afins torna patente a natureza democrática dos Bombeiros, bem explícita quando João de Araújo Correia afirma: “Clube, ponto de reunião sem preconceito, era o quartel dos Bombeiros”. Sinal desta sã convivência entre escalões sociais diversos são talvez as “gargalhadas que faziam estremecer o quartel”. Aliás, na evocação do autor, é a boa disposição que caracteriza esses bombeiros de outros tempos: “Pelo que nos toca, ou toca aos nossos Bombeiros, recordemos os da velha guarda, tão garbosos como os de agora, mas, muito mais alegres, mais divertidos, mais despreocupados”.

Para além das pessoas, a rememoração do passado da corporação não dispensa a referência às suas antigas instalações “na Chafarica, no largo dos Aviadores, como hoje se diz”, informação que também regista as alterações na onomástica da vila, aspecto que mereceu a atenção do autor em “Nomes de ruas”, incluído no mesmo volume.

Estas recordações fornecem a João de Araújo Correia o ensejo para chamar a atenção para a necessidade de escrever a história dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua: “Tempos simples aqueles! Falta escrever-lhes a história”. Ao longo de Pátria pequena, é recorrente a preocupação do escritor com a preservação do passado. Para além da dos Bombeiros, falta “a história de notabilidades nossas – de raiz ou adoptivas” (“Reguenses ilustres”), “a história dos Artistas da Régua” (“Escolas técnicas”) e mesmo a história do teatro na vila (“Teatro na Régua”), capítulos que viriam completar a História da Vila e Concelho do Peso da Régua (1936-1938), da autoria de Afonso Soares. A causa da insistência na importância do passado encontramo-la em “Primórdios”, onde afirma: “As coisas são como os rios. Têm sua origem, que, embora tímida, nunca é desprezível”. Esta sua cruzada contra o esquecimento dos tempos pretéritos embate na indiferença da sua “pátria pequena”, já que “a Régua não tem amor a velharias, que são o pergaminho das localidades” (“Pobre padre Carminé”). A história dos bombeiros, que dá corpo à sua longa existência, ao permitir tomar consciência de um labor continuado de obreiros vários, torna-se relevante para um melhor conhecimento da instituição e, ao mesmo tempo, da terra onde lançou raízes e se desenvolveu.
Aniversários, tradições e história não teriam razão de ser se não fosse o relevante papel que os Bombeiros desempenham na sociedade, particularmente na “pátria pequena”, a qual, de acordo com o Sem método, “tirante os bombeiros, não tem coisa nenhuma útil ao comum”. É sabido que, após a publicação do livro de estreia de João de Araújo Correia, outras instituições se vieram juntar aos Bombeiros no zelo pelo bem de todos, mas tal libelo mostra bem como os Bombeiros são indispensáveis à colectividade. Mas se é verdade que a comunidade tem nos Bombeiros um dos pilares da sua existência, estes também não sobrevivem sem ela. Isto mesmo se depreende do agudo apelo que João de Araújo Correia dirige aos leitores do Vida por Vida em “Socorro!”. O título não podia ser mais adequado, já que se trata de um pedido de ajuda. No entanto, contrariamente ao habitual, são os Bombeiros que precisam de auxílio para desempenhar da melhor maneira a missão humanitária de transporte de doentes que lhes compete, tarefa para a qual é fundamental a aquisição de uma nova ambulância. Com a sua clarividência habitual, o escritor sublinha que, ao aderir a esta causa comum, é a nós mesmos que estamos a ajudar, pois “Ninguém dirá, vendo passar a auto-maca: de ti, estou eu livre”. Nesta sugestão de que o puro altruísmo não existe parece o nosso escritor ir ao encontro da irónica máxima que Nietzsche apontou no seu Crepúsculo do ídolos: “Ajuda-te a ti mesmo: então todos os outros te ajudarão. Princípio do amor ao próximo”.

À semelhança de “Socorro!”, a crónica “Acudam-lhe”, tal como o título anuncia, também encerra um pedido de auxílio. As atenções voltam-se agora para a Ceia de Cristo existente na igreja matriz, obra de Pedro Alexandrino degradada pelo tempo. Neste caso, os Bombeiros são chamados, como habitualmente, a prestar assistência, mas num domínio bem diferente daquele em que costumam intervir. Entre a Casa do Douro e a Associação dos Bombeiros, o escritor prefere esta última para acolher o painel setecentista depois de recuperado. Com uma certa dose de humor, argumenta que os Bombeiros, “bairristas por excelência, defendê-lo-iam de todos os ultrajes, nomeadamente o fogo”. É o amor deles à “pátria pequena”, comprovativo da ligação profunda que os liga à sua terra, que os torna os melhores guardiães dos tesouros que ela possui e não deve perder. A sua missão humanitária vê-se assim complementada por uma vertente cultural.

A ser aceite a sugestão de João de Araújo Correia, não seria a tela religiosa o primeiro objecto com história a ser albergado pelos Bombeiros. Ela iria juntar-se à “sineta que alarmou os povos em 1808”, “relíquia” exibida, em 1956, pela “cobertura da nossa casa, como quem diz, [n]o telhado do nosso quartel”. Estas mesmas instalações seriam, provavelmente, o destino do “Pelourinho de Canelas”, se o desafio lançado nos quinze anos do Vida por vida desse fruto. Preciosidades provenientes do concelho que, em 1853, foi extinto a favor da Régua, fazem parte da pré-história do novo concelho. Nestas circunstâncias, seriam, pois, os Bombeiros a suprir a inexistência de um Museu da Régua, equipamento cultural que o escritor também antecipa em “Fontainhas”. Neste texto de 1958, João de Araújo Correia acalenta ainda o sonho de “uma bibliotecazinha municipal”. Acudindo mais uma vez a uma carência da vila e do concelho, é precisamente pela sua biblioteca que os Bombeiros se impõem na paisagem cultural reguense da segunda metade do século XX.
Ao longo de Pátria pequena, nenhum outro aspecto da vida da corporação ocupa tanto a atenção do escritor como a biblioteca. Tal traduz certamente o relevo que atribui a esta iniciativa, a qual, segundo o autor, numa crónica não coligida neste volume , visa “provocar o amor à cultura, à instrução, à educação das gerações”. Numa região de “Vocações perdidas” “por falta de cultura e ensino técnico perfeito”, compreende-se o entusiasmo do contista com mais esta actividade humanitária dos Bombeiros.

As crónicas que João de Araújo Correia dedica a este tema dão-nos conta de diversos marcos do historial daquela que designa como “a coqueluche dos Bombeiros”. De acordo com “Primórdios”, a sua origem remonta a 1885, isto é, a cinco anos após a fundação da Associação. Embora se desconheça a paternidade da ideia, a sua existência é bem significativa da apetência pela leitura entre os seus sócios e dos valores que os norteavam. Setenta e cinco anos mais tarde, “o velho armário repleto de livros sem catalogação” dá lugar a uma biblioteca propriamente dita, que os Bombeiros pretendem baptizar com o nome de Maximiano de Lemos, “fazendo coincidir o acto inaugural com o centenário natalício do nosso conterrâneo”. Deste modo, para além de promover a ilustração dos habitantes do concelho, a biblioteca perpetua o nome de um reguense ilustre ameaçado de esquecimento, ajudando a sedimentar a memória colectiva. Saliente-se, a este respeito, que, de acordo com “Alvíssaras”, terão sido os Bombeiros o motor das “comemorações do primeiro centenário natalício do professor Maximiano de Lemos”, pois, seguindo-lhe o exemplo, outras entidades se agregaram a esta homenagem. A actividade cultural dos bombeiros realiza-se, deste modo, de diversas maneiras. Ela vem a ser outra das concretizações do já referido espírito bairrista que, segundo o escritor, anima a corporação.

Três anos após a inauguração da Biblioteca Maximiano de Lemos teve lugar outro acontecimento importante da sua história. Nesta altura, recebeu ela “uma valiosa colecção de livros oferecidos pela benemérita Fundação Calouste Gulbenkian”. A biblioteca inaugurada em 1960, constituída sobretudo por espécimes provenientes do antigo armário-estante e por ofertas particulares, vê-se assim ampliada e actualizada. O aumento do acervo bibliográfico e o alcance social desta obra dos Bombeiros tornam manifesta a necessidade de organização, sugerindo o escritor a criação de um regulamento. Tal como a respeito da aquisição da nova ambulância, considera ainda que a Associação dos Bombeiros deve, também neste domínio, ser auxiliada pela sociedade civil. Apela por isso à colaboração dos “reguenses dados à leitura” e propõe a fundação do “Grupo dos Amigos da Biblioteca Maximiano de Lemos”. Esta é uma das múltiplas associações cuja semente lançou ao longo da sua colaboração no Vida por vida, visando acrescentar vida cultural à “vila comercial” que a Régua então era.

Com este repto lançado aos seus conterrâneos terminou João de Araújo Correia a sua batalha nas páginas do boletim da Associação em prol da biblioteca humanitária. Volta, no entanto, a convocar a intervenção dos Bombeiros no texto “Música de Poiares”: “Bombeiros e outros grémios devem apadrinhar a ressurreição da música de Poiares”. Deste modo, a missão cultural dos soldados da paz alargaria consideravelmente o seu âmbito ao estender-se a um domínio artístico específico e a uma aldeia do concelho da Régua. Ao permitir recuperar uma banda que era “a mais antiga, a mais perseverante e, há tantos anos, única música do nosso concelho”, esta parceria entre os Bombeiros e outras entidades impediria o empobrecimento cultural da “pátria pequena”. Se isto não bastasse, os benefícios da Música justificariam só por si o empenho no ressurgimento da banda poiarense: “Não é preciso inculcar a ninguém o valor da Música. Todos o sentimos. Como educadora do povo rude, é inestimável. Desperta-lhe sentimentos bons adormecidos, desvia-a de recreios perigosos. É imprescindível para suavizar índoles bravias”. De novo João de Araújo Correia implica os Bombeiros numa causa “A bem da humanidade”.

Esta viagem pelo Pátria pequena à boleia dos soldados da paz ficaria incompleta sem uma referência ao Vida por vida, não por ser este o depositário original dos textos que deram origem àquela obra, mas por causa do que ele representa. Na pequena nótula introdutória surge a mais extensa referência a este mensário, relativa ao seu historial. Os seus breves dezoito anos de existência expressam talvez a vitalidade da Associação a que dá voz, num período particular. Avançando para o interior do volume, passagens como “folhinha privativa de uma Associação de Bombeiros”, “pequena tribuna”, “cantinho” ou “recanto da Imprensa Portuguesa” colocam a tónica na modéstia do jornal. No entanto, a sua discrição não é sinónimo de inoperância, pois ele é também “luzinha numa espécie de serração espiritual”, “guia” para “espíritos ávidos de claridade”. O humilde periódico ocupa, portanto, um lugar especial no panorama reguense, ao mesmo tempo que confere novas valências à actuação da Associação em proveito da comunidade em que se insere.

É este espírito de serviço ao seu semelhante que subjaz à porfiada colaboração de João de Araújo Correia nas páginas do Vida por vida. Se aponta os males da sua “pátria pequena”, também indica as terapias para os debelar e assim melhorar a vida dos seus conterrâneos. Não será por isso descabido dizer “Ditosa pátria que tal filho teve!”.

O autor de Cinza do lar não tem olhos apenas para as coisas negativas da sua terra. A corporação de Bombeiros merece-lhe particular carinho e atenção, desde logo pela sua resistência num meio onde tudo parece destinado ao fracasso. Enquanto representante dos valores humanitários que eram tão caros ao nosso escritor, procura alargar o âmbito de acção da corporação a domínios de grande relevância para a comunidade. Sublinha, ao mesmo tempo, que o auxílio dos Bombeiros à colectividade depende do apoio que dela receber, mostrando que ambos estão interligados. Afinal, os Bombeiros, como a Régua, dependem da colaboração de todos. Para além de tudo isto, João de Araújo Correia apresenta-nos os Bombeiros por dentro, relatando alguns dos seus hábitos e um ou outro dado da sua história. Se lhe fosse possível regressar ao seu torrão natal, ficaria certamente contente por saber que “os nossos Bombeiros” estão a caminho do seu 133º aniversário, sem perderem o garbo e a juvenilidade que lhes conheceu. Simpatizaria, sem dúvida, com o “Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua” do Arrais, jornal a que, de diversas maneiras, esteve ligado em vida e onde também publicou crónicas sobre os seus Bombeiros.
Agradar-lhe-ia também a notícia de que alguns episódios da longa e proveitosa vida da corporação se encontram já fixados num livro, constituindo a primeira resposta ao seu apelo ao registo escrito da história dos Bombeiros locais. Nada está perdido. Quem sabe de que outras propostas de Pátria pequena não se encarregará o futuro?

1* - Referimo-nos ao texto “A Biblioteca dos Bombeiros”, encontrado pelo Dr. José Alfredo Almeida no Vida por vida de Dezembro de 1960, do qual gentilmente nos forneceu uma cópia. Embora assinado com as iniciais A.D., pelo estilo e pelo ardoroso apelo que encerra, é, sem dúvida, da autoria de João de Araújo Correia.

*Crónica escrita pela drª. Ana Ribeiro, Profª. da Faculdade de Letras da Universidade do Minho em volta do escritor  reguense João de Araújo Correia.
Clique nas imagens para ampliar. Fotos e texto cedidos por Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2013.  Também publicado no jornal semanário regional "O ARRAIS" edição de 27 de Março de 2013 (1ª parte). É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

quarta-feira, 13 de março de 2013

O comissário da Sandeman

Encontro-me à mesa da minha secretária, num entardecer outonal com a luz a resplendecer nas águas do rio e nos vinhedos que serpenteiam o vale Abraão, absorvido na leitura de um livro que, de um momento para o outro, me leva às vindimas no meu Douro. Enquanto ouço, lá no meio dos socalcos coloridos, os cantares das vindimadeiras e os sons de uma gaita-de-beiços, um harmónio, os ferrinhos e os bombos que acompanham o pisar das uvas pelos homens, deixo-me viajar no tempo em direcção ao passado.

Acabo de chegar à vila da Régua dos finais do século dezanove. O comboio que me trouxe terminou aqui a sua marcha, apenas com um ligeiro atraso relativamente ao seu horário. Estou na estação, que esconde muita da sua beleza arquitectónica nos ramos dos frondosos plátanos. Da sua porta principal, começa a sentir-se o bulício de pessoas e dos transportes na estrada nacional que lhe passa em frente. Sinto odores de vinho fino que se misturam com perfumes de flores silvestres. As diligências da viúva Vilela, empresária e benemérita, estão de saída para outras paragens.

A vila está a crescer e o comércio prospera, mas é a sua beleza que atrai a atenção do meu olhar e me deixa, por breves instantes, extasiado pela luz e pela intensidade das cores de uma paisagem fascinante que alastra até às margens do rio. Sou despertado por uma velha rebuçadeira de bata branca que vende pacotinhos de uns rebuçados embrulhados em papel. Compro-lhe dois pacotinhos e delicio-me com o aroma de flor de laranjeira de um doce rebuçado da Régua.

Olho as horas no relógio da estação, está muito calor, decido passear-me pela Rua da Bandeira, o coração da vila, onde se faz todo o comércio de retalho, as casas exportadoras guardam o vinho e as aguardentes, onde ficam as hospedarias e as pensões e se encontram as figuras mais respeitáveis da terra. Depois de fazer uma ligeira refeição numa hospedaria mais recomendada, quero visitar a Loja do Zé Pinto, progressista ferrenho, e aí comprar a última edição do bi-semanário O Douro. O jornal interessa-se por divulgar os assuntos da lavoura, do comércio dos vinhos e a gestão da câmara do regenerador Dr. Júlio Vasques. À entrada desta loja, onde se vende um pouco de tudo, deixo o meu olhar penetrar numa sala para aí rever figuras ilustres numa roda de cavaqueira e que, agora, me parecem almas retiradas das profundezas da Eternidade ou de um outro mundo. Na verdade, não os conheço nem eles me conhecerão a mim, mas nutro por eles uma indisfarçável admiração, simpatia e respeito pelo que fizeram no seu tempo. Se eu pudesse falar com alguns deles, seria com o poeta Camilo Guedes Castelo Branco, que continua a usar a sua  farda de soldado da paz.

Retomo a minha caminhada e, de uma viela que circunda o Largo do Cruzeiro, vejo passar o senhor Afonso Soares de barbas brancas e olhos luminosos. Deve ter acabado o seu repasto, porque fuma com redobrado prazer. Disseram-me que é um apreciador de sável, um saboroso peixe que ainda se pesca no rio Douro. Bem gostava de o ter convidado para provar comigo esta deliciosa especialidade gastronómica, mas o senhor Soares é um artista diletante, jornalista, escritor, erudito e pintor. Quase que desconfio que não pode dissipar nenhum do seu precioso tempo com um estranho que lhe apareça assim de frente. Tem mesmo muito que fazer e deve estar preocupado com o futuro da corporação de bombeiros, onde acabou de ser escolhido para Comandante.

Desço a ruela das Vareiras, com as tabernas que vendem os vinhos mais baratos e apreciados pelo povo e onde crescem negócios em que o sal e a sardinha salgada de barricas são as principais mercadorias. Ao fundo da rua sobressai o areal extenso por onde corre o rio e voam vertiginosamente as últimas andorinhas, anunciando que estão de partida. Um barco rabelo de bela içada, carregado com cinquenta pipas de vinho da feitoria, produzido pela firma Martinez e Gassiot, solta as amarras de um movimentado cais fluvial.

Como se faz tarde, aproximo-me da Rua Nova para me dirigir à Casa da Companhia. No seu átrio, juntam-se lavradores, comerciantes, corretores e comissários das casas inglesas. Enquanto uns discutem os preços da pipa de vinho da vindima, outros exibem amostras de colheitas antigas. O preço da pipa ronda os 25.000 mil réis e os viticultores estão insatisfeitos. Diante de mim, tenho os senhores Francisco Ferreira e António Claro, fiéis empregados da Casa A.A. Ferreira, Scrs. Estou surpreendido, os lavradores, numa veneração digna de deuses, saúdam-nos com vénias e mesuras. Gostava de cumprimentar a D. Antónia, a Ferreirinha, que deve estar pela Quinta das Nogueiras, e agradecer-lhe a generosidade para com a associação de bombeiros, que, como primeira sócia contribuinte, muito ajudou nos primeiros anos de existência.

Quem eu vinha procurar, um tal comissário da casa Sandeman, não encontrei. Ali perto, está a relojoaria de Adolfo Pauman, um velho actor galego que deixou as artes cénicas para ser bombeiro voluntário e se dedicar ao comércio reguense. A porta da loja está encerrada, pelo que decido entrar na Botica do Anastácio, outro memorável ponto de tertúlia. Ao balcão, está um moço que avia umas receitas de pomadas. Pergunto-lhe pelo paradeiro do senhor António Roberto Pinto. Depois de sair o cliente, diz-me que devo encontrá-lo na casa da Real Associação dos Bombeiros, no Largo da Chafarica, onde ao fim da tarde costuma ir jogar dominó, quino e frequentar a sala de leitura. Meto as pernas ao caminho em direcção à Rua da Boavista e, em pouco tempo, chego ao quartel dos bombeiros voluntários, instalado numa casa antiga, o rés-do-chão para arrumar as bombas e o primeiro andar para reuniões e encontros de lazer.

É domingo, e as badaladas do sino da capela do Senhor do Cruzeiro dão as seis horas da tarde. Alguns associados, mais habituados a frequentarem a sala de jogos e a casa de leitura, apressam-se a entrar no quartel. Reconheço o senhor António da Silva Correia, solicitador, e o Dr. Júlio Manso Preto, jurisconsulto e publicista que exerce o foro na vila. Ninguém sabe onde nasceu, mas aqui se radicou e fez família. Intriga-me que deste autor ninguém tenha dado atenção ao folheto que publicou em 1864 com o sugestivo título Duas Palavras Acerca da Régua e Arredores. Não o li, mas o seu autor faz aí um magistral retrato poético desta terra, então com poucas ruas, algumas com bons edifícios elegantemente construídos, notável pelo seu comércio de vinhos. Ele, que adoptou esta terra para viver, viu beleza nas colinas tapeteadas de vinha e polvilhadas de casario branco, um encanto para o olhar, donde se  avistava um rio forte, sem igual, e os enormes  sabugueiros em flor.

Atravessa o Largo da Chafarica, vindo do seu escritório, um jovem que começara a advogar como sucesso. Apaixonado pelos ideais republicanos, vai dedicar-se com afinco a resolver as mais problemáticas das questões do Douro. O causídico chama-se Antão de Carvalho e está a iniciar o brilhante futuro que o levará ao cargo de Ministro da Agricultura, logo após a instauração da República, e depois a ser o mais dinâmico dos paladinos do Douro.

Aproxima-se o abastado comerciante Joaquim Sousa Pinto, fardado de bombeiro, acompanhado pelo Comandante Afonso Soares e pelo presidente da direcção, Alberto Pereira Rolla, sendo saudados com continência por um piquete de voluntários. Param diante de mim e, como não me reconhecem familiar ao meio, cumprimentam-me com um afável “Boa tarde, meu caro amigo”. De imediato, o Comandante Afonso Soares, que traz na mão esquerda um manuscrito do livro que irá publicar, os Apontamentos para a História da Vila e Concelho, abeira-se de mim e pergunta-me se me pode ser útil. Digo que sim, que procuro o senhor António Roberto Pinto, comissário da casa comercial Sandeman, a quem precisava de dar umas palavras...! Avisa-me que deve estar a chegar para entregar um donativo da casa Sandeman para ajudar a missão dos bombeiros. Ainda o ouço exclamar: “Bem precisamos de dinheiro….”. Entretanto, pergunta-me se me fiz associado contribuinte. Não sei como lhe responder, mas prometo ao Senhor Soares que, mais tarde, aparecerei para me inscrever como sócio e é o que faço… um século depois.

As badaladas do sino do Cruzeiro voltam a ouvir-se dolentemente e fazem-me acordar de um sono profundo, aconchegado pelo calor outonal. Tenho aberto o livro de actas dos mandatos das primeiras direcções dos bombeiros da Régua. Cá está o desconhecido comissário que não tive a sorte de encontrar na minha viagem ao passado. Uma acta da reunião extraordinária da Direcção dos Bombeiros datada de 1893 confirma-me que, nesse dia, esteve presente oSr. António Roberto Pinto comissário da casa ingleza Sandeman, tendo por este entregue á hora desta sessão  a quantia  25.00 mil réis, que a mesma offerece para os fundos da Associação. Deliberou-se por unanimidade agradecer a oferta”.

A Sandeman, como casa comercial, morreu; aquele mítico nome pertence agora a outra empresa de vinhos, a Sogrape. Com ela morreram também os influentes comissários das casas inglesas, sobre os quais o escritor João de Araújo Correia escreveu o seguinte: “Governam-se melhor que o lavrador e quase tão bem como o comerciante. Estabelecem entre um e outro uma risca de união perfeita de metal precioso. Ser comissário é ser alguém. Ser comissário de casa inglesa é porventura ser mais do que alguém. (…) Ser empregado de ingleses, no Douro, é ser gente estremada – ainda que o emprego se exerça numa adega com caneco à cabeça. Se o emprego é porém de vulto, se representa confiança e espelha a bizarria inglesa, o empregado chama-se comissário e é um lorde. É um lorde entre lavradores preocupados com colheitas e com vendas”.

Já cá não estão estes lordes da sociedade duriense para defenderem o seu bom nome. Morreram todos. Perdura o nome do Sr. António Roberto Pinto, que, apesar de nada sabermos acerca dele, deixou uma fama de benfeitor dos bombeiros da Régua.

Devia acabar aqui esta pequena história. Mas, o mais certo, é ela continuar para acrescentar o exemplo da casa Symington - sócia contribuinte nº 578 – que assim concede o seu apoio a uma instituição humanitária que tem como seu ideal fazer o bem comum. 
- José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Fevereiro de 2013
*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras actividades  escrevendo também cronicas que registam neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.



Clique nas imagens para ampliar. Texto e imagem de JASA. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro de 2013. Também publicado no jornal semanário regional "O ARRAIS" edição de 13 de Março de 2013 - 1ª parte. edição de 20 de Março de 2013 - 2ª parte. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

RECORDANDO… Uma Excursão a Vigo

O tempo corre, voa, passa, mas as recordações perduram, fazendo reviver nitidamente na nossa retina factos passados há muitos e muitos anos, como este que vou citar:

As corporações dos Bombeiros Voluntários do Porto e da Régua, a primeira instalada, ao tempo, nuns antigos casarões da Rua do Bonjardim, a que pomposamente denominavam Pátio do Paraíso, e a desta vila num prédio do Largo dos Aviadores, resolveram aceder ao convite, feito por determinada individualidade de Vigo, para uma visita àquela linda e hospitaleira cidade galega.

Dias decorridos, estava designada a data da largada, ficando os Voluntários do Porto de esperar os seus camaradas da Régua na Estação de Ermesinde, de onde seguiriam em comboio especial.

Os bombeiros da velha guarda, com os quais ainda tive a ventura de acamaradar – Afonso Soares, Camilo Guedes, Joaquim de Sousa Pinto, Lourenço Medeiros, Luís Maria da Cunha Ilharco, José Vicente Ferreira da Cunha, João Pinto Cardoso, Justino Lopes Nogueira, Aires Saldanha, José Maria de Almeida, João da Silva Bonifácio (pai), e tantos outros, no desejo, muito de louvar, de que a Corporação «fizesse figura», chegaram à minuciosidade de encomendarem, para toda a Corporação, apurados e elegantes sapatos de verniz.

A azáfama, no Quartel, era enorme. Limpavam-se metais, poliam-se machados, etc.,etc.

E então, no dia aprazado, a Corporação seguiu na sua máxima força, sendo acompanhada pelos seus médicos e farmacêutico privativos e pelo seu Capelão, padre Manuel Lacerda de Oliveira Borges.

No dia da partida, a Régua em peso e com o seu Peso, acompanharam à estação aqueles valorosos soldados da paz, sempre dispostos, desinteressadamente, a sacrificar-se em prol do seu semelhante.

À chegada a Vigo tiveram uma recepção apoteótica, sendo recebidos no Ajuntamiento pelo respectivo alcaide, que lhes deu as boas-vindas numa sessão solene a que assistiram as mais altas individualidades daquela cidade e elevado número de Senhoras da alta sociedade.

A seguir foi rezada uma missa campal na vasta praça de Camões, à qual assistiu toda a guarnição militar, entidades oficiais e muitíssimo povo, e que foi celebrada pelo Capelão dos nossos Bombeiros, padre Manuel de Lacerda.

Seguiu-se o almoço oficial, primorosamente servido. E ao café, antes de se efectuar a renhida e deslumbrante «batalha de flores», e quando se comentava a forma primorosa como tudo estava a decorrer, o bombeiro nº 26, João Pinto Cardoso, conhecido por «João Latas», (talvez pelo motivo de ser latoeiro), teve este desabafo:

- A única coisa que admirei, porque nunca o julguei tão inteligente, foi a facilidade com que o nosso padre Manuel leu o latim espanhol, precisamente com o mesmo «à vontade» como lê o latim português, na missa do Cruzeiro.

Autêntico!

Rebentou uma estrondosa gargalhada que fez estremecer a casa e que deixou o 26 de boca aberta, pois não atinava com o motivo de tão estranha e, no seu entender, tão injustificada e despropositada risota.

A esta excursão juntou-se um numeroso grupo de reguenses, do qual fazia parte o Adolfo Rodriguéz Pauman, de nacionalidade espanhola, que já havia sido bombeiro e há muitos anos residia nesta vila, onde possuía uma relojoaria na Rua João de Lemos, precisamente na casa onde actualmente está instalado o estabelecimento do Butagaz, que faz esquina com a Rua da Companhia.

E como constasse do programa, no segundo dia da estadia em Vigo, um passeio ao Monte de Santa Luzia, de onde se disfruta, em deslumbrante panorama, a sua linda baía, com a povoação de Cangas, lá ao longe, a encerrar o cenário, todos trataram de arranjar meio de transporte, que consistia, naquele tempo, em velhas e estafadas tipóias, tiradas por parelhas de esqueléticas pilecas.

Ora, na que transportava Camilo Guedes, Joaquim de Sousa Pinto e outros, também tomou lugar o Adolfo Pauman, o qual, com as suas compridas e responsáveis barbas brancas, mais parecia um velho patriarca das Índias do que um mero excursionista.

Ficou justo, com o cocheiro, que o custo da passagem, por pessoa (e só ida), seria de uma peseta (um preço exageradíssimo, para aquela época).

Este contou os passageiros, já depois de instalados no carro, e à chegada a Santa Luzia voltou a contá-los.

Não sei como o tipo fez essa contagem. O que é certo é que, irritadíssimo, disse para os seus fregueses:

- Falta uno.

E não houve forma de o convencerem do contrário.
Depois de muito barafustar, e como não pudesse ser compreendido pela rapidez e indignação com que falava, alguém disse ao Adolfo que, como espanhol, se entendesse com ele.

Este, com muito bons modos, fez-lhe ver que estava enganado e que talvez, por equívoco, também se tivesse incluído na conta.

Traga Deus Bom Tempo!

O galego, vermelho de cólera, puxa de una cochila do tamanho de uma espada de cavalaria e disse para o amedrontado Adolfo, que tremia como se tivesse maleitas:

- Cala hombre. Usted no habla más palabra, su portuguesito duna figa (fazendo o gesto de lhe cravar o navalhão no bandulho).

Há tantos anos que o pobre relojoeiro vivia em Portugal que perdera, por completo, o sotaque espanhol, sendo julgado português.

E tiveram de lhe pagar a importância relativa «ao outro passageiro», que nunca existiu, sob pena do maldito galego os transformar em picado.

Soube-se, depois, que esse tipo era useiro e vezeiro na prática dessas proezas, principalmente quando se tratava de estrangeiros.

E levou a dele avante, aquele estafermo.
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Passou-se isto há muitos anos!

Já todos desapareceram do número dos vivos.

Bons tempos! E que saudades!
- António Guedes Castelo Branco - (antigo Chefe dos BV da Régua). Publicado no jornal Vida por Vida, de Março/Abril de 1971.
Clique na imagem para ampliar. Texto de António Guedes Castelo Branco publicado no jornal Vida por Vida, de Março/Abril de 1971. Imagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo AlmeidaEdição de imagem e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.