Encontro-me à mesa da minha secretária, num
entardecer outonal com a luz a resplendecer nas águas do rio e nos vinhedos que
serpenteiam o vale Abraão, absorvido na leitura de um livro que, de um momento
para o outro, me leva às vindimas no meu Douro. Enquanto ouço, lá no meio dos socalcos
coloridos, os cantares das vindimadeiras e os sons de uma gaita-de-beiços, um
harmónio, os ferrinhos e os bombos que acompanham o pisar das uvas pelos
homens, deixo-me viajar no tempo em direcção ao passado.
Acabo de chegar à vila da Régua dos finais
do século dezanove. O comboio que me trouxe terminou aqui a sua marcha, apenas
com um ligeiro atraso relativamente ao seu horário. Estou na estação, que
esconde muita da sua beleza arquitectónica nos ramos dos frondosos plátanos. Da
sua porta principal, começa a sentir-se o bulício de pessoas e dos transportes
na estrada nacional que lhe passa em frente. Sinto odores de vinho fino que se
misturam com perfumes de flores silvestres. As diligências da viúva Vilela,
empresária e benemérita, estão de saída para outras paragens.
A vila está a crescer e o comércio prospera,
mas é a sua beleza que atrai a atenção do meu olhar e me deixa, por breves
instantes, extasiado pela luz e pela intensidade das cores de uma paisagem
fascinante que alastra até às margens do rio. Sou despertado por uma velha rebuçadeira
de bata branca que vende pacotinhos de uns rebuçados embrulhados em papel. Compro-lhe
dois pacotinhos e delicio-me com o aroma de flor de laranjeira de um doce rebuçado da Régua.
Olho as horas no relógio da estação, está
muito calor, decido passear-me pela Rua da Bandeira, o coração da vila, onde se
faz todo
o comércio de retalho, as casas exportadoras guardam o vinho e as aguardentes, onde
ficam as hospedarias e as pensões e se encontram as figuras mais respeitáveis
da terra. Depois de fazer uma ligeira refeição numa hospedaria mais
recomendada, quero visitar a Loja do Zé Pinto, progressista ferrenho, e aí
comprar a última edição do bi-semanário O Douro. O jornal interessa-se por
divulgar os assuntos da lavoura, do comércio dos vinhos e a gestão da câmara do
regenerador Dr. Júlio Vasques. À entrada desta loja, onde se vende um pouco de
tudo, deixo o meu olhar penetrar numa sala para aí rever figuras ilustres numa
roda de cavaqueira e que, agora, me parecem almas retiradas das profundezas da
Eternidade ou de um outro mundo. Na verdade, não os conheço nem eles me
conhecerão a mim, mas nutro por eles uma indisfarçável admiração, simpatia e
respeito pelo que fizeram no seu tempo. Se eu pudesse falar com alguns deles,
seria com o poeta Camilo Guedes Castelo Branco, que continua a usar a sua farda de soldado
da paz.
Retomo a minha caminhada e, de uma viela
que circunda o Largo do Cruzeiro, vejo passar o senhor Afonso Soares de barbas
brancas e olhos luminosos. Deve ter acabado o seu repasto, porque fuma com redobrado
prazer. Disseram-me que é um apreciador de sável, um saboroso peixe que ainda se
pesca no rio Douro. Bem gostava de o ter convidado para provar comigo esta
deliciosa especialidade gastronómica, mas o senhor Soares é um artista
diletante, jornalista, escritor, erudito e pintor. Quase que desconfio que não pode
dissipar nenhum do seu precioso tempo com um estranho que lhe apareça assim de
frente. Tem mesmo muito que fazer e deve estar preocupado com o futuro da corporação
de bombeiros, onde acabou de ser escolhido para Comandante.
Desço a ruela das Vareiras, com as tabernas
que vendem os vinhos mais baratos e apreciados pelo povo e onde crescem
negócios em que o sal e a sardinha salgada de barricas são as principais mercadorias.
Ao fundo da rua sobressai o areal extenso por onde corre o rio e voam
vertiginosamente as últimas andorinhas, anunciando que estão de partida. Um
barco rabelo de bela içada, carregado com cinquenta pipas de vinho da feitoria,
produzido pela firma Martinez e Gassiot, solta as amarras de um movimentado cais
fluvial.
Como se faz tarde, aproximo-me da Rua Nova
para me dirigir à Casa da Companhia. No seu átrio, juntam-se lavradores, comerciantes,
corretores e comissários das casas inglesas. Enquanto uns discutem os preços da
pipa de vinho da vindima, outros exibem amostras de colheitas antigas. O preço
da pipa ronda os 25.000 mil réis e os viticultores estão insatisfeitos. Diante
de mim, tenho os senhores Francisco Ferreira e António Claro, fiéis empregados
da Casa A.A. Ferreira, Scrs. Estou surpreendido, os lavradores,
numa veneração digna de deuses, saúdam-nos com
vénias e mesuras. Gostava de cumprimentar a D. Antónia, a Ferreirinha, que deve estar pela Quinta das Nogueiras, e
agradecer-lhe a generosidade para com a associação de bombeiros, que, como primeira
sócia contribuinte, muito ajudou nos primeiros anos de existência.
Quem eu vinha procurar, um tal comissário
da casa Sandeman, não encontrei. Ali perto, está a relojoaria de Adolfo Pauman,
um velho actor galego que deixou as artes cénicas para ser bombeiro voluntário
e se dedicar ao comércio reguense. A porta da loja está encerrada, pelo que
decido entrar na Botica do Anastácio, outro memorável ponto de tertúlia.
Ao balcão, está um moço que avia umas receitas
de pomadas. Pergunto-lhe pelo paradeiro do senhor António Roberto Pinto. Depois
de sair o cliente, diz-me que devo encontrá-lo na casa da Real Associação dos
Bombeiros, no Largo da Chafarica, onde ao fim da tarde costuma ir jogar dominó,
quino e frequentar a sala de leitura. Meto as pernas ao caminho em direcção à
Rua da Boavista e, em pouco tempo, chego ao quartel dos bombeiros voluntários,
instalado numa casa antiga, o rés-do-chão para arrumar as bombas e o primeiro
andar para reuniões e encontros de lazer.
É domingo, e as badaladas do sino da capela
do Senhor do Cruzeiro dão as seis horas da tarde. Alguns associados, mais
habituados a frequentarem a sala de jogos e a casa de leitura, apressam-se a
entrar no quartel. Reconheço o senhor António da Silva Correia, solicitador, e
o Dr. Júlio Manso Preto, jurisconsulto e publicista que exerce o foro na vila.
Ninguém sabe onde nasceu, mas aqui se radicou e fez família. Intriga-me que
deste autor ninguém tenha dado atenção ao folheto que publicou em 1864 com o
sugestivo título Duas Palavras Acerca da Régua e Arredores. Não o li, mas o seu autor faz aí um
magistral retrato poético desta terra, então com poucas ruas, algumas com bons
edifícios elegantemente construídos, notável pelo seu comércio de vinhos. Ele,
que adoptou esta terra para viver, viu beleza nas colinas tapeteadas de vinha e
polvilhadas de casario branco, um encanto para o olhar, donde se avistava
um rio forte, sem igual, e os enormes sabugueiros em flor.
Atravessa o Largo da Chafarica, vindo do
seu escritório, um jovem que começara a advogar como sucesso. Apaixonado pelos
ideais republicanos, vai dedicar-se com afinco a resolver as mais problemáticas
das questões do Douro. O causídico chama-se Antão de Carvalho e está a iniciar
o brilhante futuro que o levará ao
cargo de Ministro da Agricultura, logo após a instauração da República, e
depois a ser o mais dinâmico dos paladinos do Douro.
Aproxima-se o abastado comerciante Joaquim
Sousa Pinto, fardado de bombeiro, acompanhado pelo Comandante Afonso Soares e
pelo presidente da direcção, Alberto Pereira Rolla, sendo saudados com
continência por um piquete de voluntários. Param diante de mim e, como não me
reconhecem familiar ao meio, cumprimentam-me com um afável “Boa tarde, meu caro
amigo”. De imediato, o Comandante Afonso Soares, que traz na mão esquerda um manuscrito
do livro que irá publicar, os Apontamentos
para a História da Vila e Concelho, abeira-se de mim e pergunta-me se me
pode ser útil. Digo que sim, que procuro o senhor António Roberto Pinto,
comissário da casa comercial Sandeman, a quem precisava de dar umas
palavras...! Avisa-me que deve estar a chegar para entregar um donativo da casa
Sandeman para ajudar a missão dos bombeiros. Ainda o ouço exclamar: “Bem
precisamos de dinheiro….”. Entretanto, pergunta-me se me fiz associado
contribuinte. Não sei como lhe responder, mas prometo ao Senhor Soares que, mais
tarde, aparecerei para me inscrever como sócio e é o que faço… um século
depois.
As badaladas do sino do Cruzeiro voltam a ouvir-se
dolentemente e fazem-me acordar de um sono profundo, aconchegado pelo calor
outonal. Tenho aberto o livro de actas dos mandatos das primeiras direcções dos
bombeiros da Régua. Cá está o
desconhecido comissário que não tive a sorte de encontrar na minha viagem ao
passado. Uma acta da reunião extraordinária da Direcção dos Bombeiros
datada de 1893 confirma-me que, nesse dia, esteve presente o “Sr. António Roberto Pinto comissário da casa ingleza Sandeman, tendo por
este entregue á hora desta sessão a quantia 25.00 mil réis, que a
mesma offerece para os fundos da Associação. Deliberou-se por unanimidade
agradecer a oferta”.
A Sandeman, como casa comercial, morreu; aquele
mítico nome pertence agora a outra empresa de vinhos, a Sogrape. Com ela
morreram também os influentes comissários das casas inglesas, sobre os quais o
escritor João de Araújo Correia escreveu o seguinte: “Governam-se melhor que o
lavrador e quase tão bem como o comerciante. Estabelecem entre um e outro uma
risca de união perfeita de metal precioso. Ser comissário é ser alguém. Ser
comissário de casa inglesa é porventura ser mais do que alguém. (…) Ser
empregado de ingleses, no Douro, é ser gente estremada – ainda que o emprego se
exerça numa adega com caneco à cabeça. Se o emprego é porém de vulto, se
representa confiança e espelha a bizarria inglesa, o empregado chama-se
comissário e é um lorde. É um lorde entre lavradores preocupados com colheitas
e com vendas”.
Já cá não estão estes lordes da sociedade duriense para defenderem o seu bom nome. Morreram
todos. Perdura o nome do Sr. António Roberto Pinto, que, apesar de nada
sabermos acerca dele, deixou uma fama de benfeitor dos bombeiros da Régua.
Devia acabar aqui esta pequena história. Mas, o mais certo, é ela continuar
para acrescentar o exemplo da casa Symington - sócia contribuinte nº
578 – que assim concede o seu
apoio a uma instituição humanitária que tem como seu ideal fazer o bem comum.
- José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Fevereiro de 2013
*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras actividades escrevendo também cronicas que registam neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.
Clique nas imagens para ampliar. Texto e imagem de JASA. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro de 2013. Também publicado no jornal semanário regional "O ARRAIS" edição de 13 de Março de 2013 - 1ª parte. edição de 20 de Março de 2013 - 2ª parte. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.