O tempo corre, voa, passa, mas as recordações perduram, fazendo reviver nitidamente na nossa retina factos passados há muitos e muitos anos, como este que vou citar:
As corporações dos Bombeiros Voluntários do Porto e da Régua, a primeira instalada, ao tempo, nuns antigos casarões da Rua do Bonjardim, a que pomposamente denominavam Pátio do Paraíso, e a desta vila num prédio do Largo dos Aviadores, resolveram aceder ao convite, feito por determinada individualidade de Vigo, para uma visita àquela linda e hospitaleira cidade galega.
Dias decorridos, estava designada a data da largada, ficando os Voluntários do Porto de esperar os seus camaradas da Régua na Estação de Ermesinde, de onde seguiriam em comboio especial.
Os bombeiros da velha guarda, com os quais ainda tive a ventura de acamaradar – Afonso Soares, Camilo Guedes, Joaquim de Sousa Pinto, Lourenço Medeiros, Luís Maria da Cunha Ilharco, José Vicente Ferreira da Cunha, João Pinto Cardoso, Justino Lopes Nogueira, Aires Saldanha, José Maria de Almeida, João da Silva Bonifácio (pai), e tantos outros, no desejo, muito de louvar, de que a Corporação «fizesse figura», chegaram à minuciosidade de encomendarem, para toda a Corporação, apurados e elegantes sapatos de verniz.
A azáfama, no Quartel, era enorme. Limpavam-se metais, poliam-se machados, etc.,etc.
E então, no dia aprazado, a Corporação seguiu na sua máxima força, sendo acompanhada pelos seus médicos e farmacêutico privativos e pelo seu Capelão, padre Manuel Lacerda de Oliveira Borges.
No dia da partida, a Régua em peso e com o seu Peso, acompanharam à estação aqueles valorosos soldados da paz, sempre dispostos, desinteressadamente, a sacrificar-se em prol do seu semelhante.
À chegada a Vigo tiveram uma recepção apoteótica, sendo recebidos no Ajuntamiento pelo respectivo alcaide, que lhes deu as boas-vindas numa sessão solene a que assistiram as mais altas individualidades daquela cidade e elevado número de Senhoras da alta sociedade.
A seguir foi rezada uma missa campal na vasta praça de Camões, à qual assistiu toda a guarnição militar, entidades oficiais e muitíssimo povo, e que foi celebrada pelo Capelão dos nossos Bombeiros, padre Manuel de Lacerda.
Seguiu-se o almoço oficial, primorosamente servido. E ao café, antes de se efectuar a renhida e deslumbrante «batalha de flores», e quando se comentava a forma primorosa como tudo estava a decorrer, o bombeiro nº 26, João Pinto Cardoso, conhecido por «João Latas», (talvez pelo motivo de ser latoeiro), teve este desabafo:
- A única coisa que admirei, porque nunca o julguei tão inteligente, foi a facilidade com que o nosso padre Manuel leu o latim espanhol, precisamente com o mesmo «à vontade» como lê o latim português, na missa do Cruzeiro.
Autêntico!
Rebentou uma estrondosa gargalhada que fez estremecer a casa e que deixou o 26 de boca aberta, pois não atinava com o motivo de tão estranha e, no seu entender, tão injustificada e despropositada risota.
A esta excursão juntou-se um numeroso grupo de reguenses, do qual fazia parte o Adolfo Rodriguéz Pauman, de nacionalidade espanhola, que já havia sido bombeiro e há muitos anos residia nesta vila, onde possuía uma relojoaria na Rua João de Lemos, precisamente na casa onde actualmente está instalado o estabelecimento do Butagaz, que faz esquina com a Rua da Companhia.
E como constasse do programa, no segundo dia da estadia em Vigo, um passeio ao Monte de Santa Luzia, de onde se disfruta, em deslumbrante panorama, a sua linda baía, com a povoação de Cangas, lá ao longe, a encerrar o cenário, todos trataram de arranjar meio de transporte, que consistia, naquele tempo, em velhas e estafadas tipóias, tiradas por parelhas de esqueléticas pilecas.
Ora, na que transportava Camilo Guedes, Joaquim de Sousa Pinto e outros, também tomou lugar o Adolfo Pauman, o qual, com as suas compridas e responsáveis barbas brancas, mais parecia um velho patriarca das Índias do que um mero excursionista.
Ficou justo, com o cocheiro, que o custo da passagem, por pessoa (e só ida), seria de uma peseta (um preço exageradíssimo, para aquela época).
Este contou os passageiros, já depois de instalados no carro, e à chegada a Santa Luzia voltou a contá-los.
Não sei como o tipo fez essa contagem. O que é certo é que, irritadíssimo, disse para os seus fregueses:
- Falta uno.
E não houve forma de o convencerem do contrário.
Depois de muito barafustar, e como não pudesse ser compreendido pela rapidez e indignação com que falava, alguém disse ao Adolfo que, como espanhol, se entendesse com ele.
Este, com muito bons modos, fez-lhe ver que estava enganado e que talvez, por equívoco, também se tivesse incluído na conta.
Traga Deus Bom Tempo!
O galego, vermelho de cólera, puxa de una cochila do tamanho de uma espada de cavalaria e disse para o amedrontado Adolfo, que tremia como se tivesse maleitas:
- Cala hombre. Usted no habla más palabra, su portuguesito duna figa (fazendo o gesto de lhe cravar o navalhão no bandulho).
Há tantos anos que o pobre relojoeiro vivia em Portugal que perdera, por completo, o sotaque espanhol, sendo julgado português.
E tiveram de lhe pagar a importância relativa «ao outro passageiro», que nunca existiu, sob pena do maldito galego os transformar em picado.
Soube-se, depois, que esse tipo era useiro e vezeiro na prática dessas proezas, principalmente quando se tratava de estrangeiros.
E levou a dele avante, aquele estafermo.
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Passou-se isto há muitos anos!
Já todos desapareceram do número dos vivos.
Bons tempos! E que saudades!
- António Guedes Castelo Branco - (antigo Chefe dos BV da Régua). Publicado no jornal Vida por Vida, de Março/Abril de 1971.
- Adolfo Pauman neste blogue.
Clique na imagem para ampliar. Texto de António Guedes Castelo Branco publicado no jornal Vida por Vida, de Março/Abril de 1971. Imagem e texto cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Edição de imagem e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Fevereiro de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.
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