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quinta-feira, 28 de março de 2013

A “pátria pequena” e os valores humanitários

Ana Ribeiro*
O bem comum mais precioso é o homem. Como quem diz: somos nós. 
João de Araújo Correia em Pátria Pequena.

Em 1977, Pátria pequena veio juntar-se ao já extenso rol de publicações de João de Araújo Correia. Tal designação traz à lembrança títulos como Pátria (1896), de Guerra Junqueiro, ou A minha pátria (1906), de Ana de Castro Osório. Distancia-se deles, no entanto, ao circunscrever um recorte daquela que, por contraste, poderá ser considerada a pátria grande. Esse retalho corresponde, como o autor esclarece na nota introdutória, à “vila e concelho do Peso da Régua”, aos quais também dedica o livro. Num primeiro plano, este título, à semelhança de Terra ingrata ou Montes pintados, fornece a representação de um espaço, cuja exiguidade é várias vezes referida ao longo da obra.

A “pátria pequena” de João de Araújo Correia é, porém, muito mais do que um território, pois esta figuração metafórica expressa sobretudo a relação profunda que o escritor mantém com este local. Quando declara “Aqui nasci, aqui vivo e aqui morrerei sem espírito provinciano”, faz dele uma espécie de casa onde passou a sua vida, convertendo-o num espaço íntimo da maior importância na sua geografia sentimental.

Enraizado no seu torrão natal para a vida e para a morte, nem por isso deixa o autor de o transcender. “Sem espírito provinciano”, ele é um cidadão do mundo fiel às suas origens, mas de vistas alargadas. Somada à sua estreita ligação ao meio onde decorreu a sua existência, esta característica legitima o projecto que desenvolve nos diversos textos coligidos em Pátria pequena. Na nótula de abertura, o autor apresenta-os como “setas de papel disparadas pelo meu arco, sempre insofrido, contra fealdades e vícios de cunho provinciano” que afectam a Régua e arredores. Como dirá na crónica “De boa mente”, onde realiza o balanço de três anos de publicações mensais no Vida por vida, “não mira outro alvo que não seja quanto a deslustre ou prejudique”.

Na identificação desassombrada das males de que a sua terra padece, o escritor reguense parece transferir para a sua “pátria pequena” aquele comportamento tão típico dos portugueses, que, como diz Barry Hatton, “são mais críticos de si mesmos do que os estrangeiros”. No entanto, é a sua afeição por ela e o seu espírito cívico que assim o determinam: “É admissível e até louvável que o natural da Régua diga mal da sua terra por amor, isto é, com o intuito de a corrigir de algum defeito grave ou esvoaçante pecha que a deslustre” (“Pobre Régua”). À semelhança de José Correia de Magalhães, que cita em “Música de Poiares”, João de Araújo Correia pretende “fazer da Régua uma vila perfeita”. Tal aspiração, partilhada “por quem se distingue do barro comum”, não será alheia à responsabilidade associada ao estatuto de capital do Douro, pois, como o escritor recorda em “Escolas técnicas”, “A Régua é o Douro, região com características de autêntica província. É a capital do país vinícola mais célebre do mundo”.

A denúncia com objectivos terapêuticos traduz-se num retrato da Régua no século XX, uma vez que, embora redigidos na segunda metade deste século, os textos não excluem a convocação do passado recente. Note-se, no entanto, que os antecedentes desta actividade remontam ao Sem método (1938), a obra inaugural do autor. De facto, nas “notas críticas de certeiro jacto” de que fala Vergílio Correia no prefácio da 1ª edição, João de Araújo Correia identifica na sua terra chagas como o descaso pela memória, o esquecimento de vultos ilustres que nela nasceram ou viveram, a ausência de estruturas básicas de saúde e de assistência social, o desperdício de potencialidades turísticas e agrícolas, o bairrismo estéril, a descaracterização de hábitos (num prenúncio de globalização) e a fúria arboricida. Cerca de vinte anos depois, estes temas regressam nos textos recolhidos em Pátria pequena. É caso para dizer que se mudam os tempos mas não se mudam as vontades. Daí que, em “Alvitres”, o autor ironize: “Parece-nos a nós […] que os nossos estímulos, a bem do nosso meio, já não têm conta. /O que conta é o efeito que produziram. Matematicamente, é igual a zero. Poderá haver maior consolação?”. No entanto, a indiferença que acolhe as suas sugestões não faz esmorecer o seu zelo, como bem revela uma alusão à “Parábola do semeador” na crónica “De boa mente”: “Que faz porém quem nada mais deseja que ser semeador? Semeia… Se a semente cair em bom terreno, muito bem… se cair em mau terreno, paciência…” . Espécie de Cristo a pregar no deserto, só o amor inquebrantável à sua terra justifica que, entre 1956 e 1974, apesar de algumas interrupções, persista na sua intervenção cívica nas páginas do Vida por vida, o jornal dos Bombeiros locais.

Por outro lado, diz também muito do meio que o envolve o facto de, durante quase vinte anos, nele continuar o escritor a encontrar motivos que justificam a sua acção pedagógica, reincidindo até em alguns, como a defesa das árvores e a imperiosa necessidade de criar espaços verdes na Régua, a inaceitável decadência das termas do Moledo, a urgência de preservar os miradouros e de os tornar lugares convidativos à contemplação da paisagem, o resgate do esquecimento de reguenses de vulto como Vieira da Costa e Maximiano de Lemos e a falta de educação e de civismo que afecta alguns dos seus conterrâneos.

Não quer isto dizer, no entanto, que a pena de João de Araújo Correia seja atraída apenas pelo lado negro da sua terra. Como afirma em “Pobre Régua”, “Criticar é apreciar, é distinguir, na coisa criticada, os valores negativos e positivos”. Por isso se revolta, na mesma crónica, contra aqueles que, munidos de critérios desajustados, deixam escapar aquilo que torna um local único, conferindo-lhe uma identidade própria: “Quem sai da cidade sem nada na cabeça, mas com a bitola do Porto ou de Lisboa, diz mal da Régua como diz mal de Mirandela. Diz mal das terras pequenas, porque não são grandes. Do gracioso e do pitoresco não cura. Só lhe praz o colossal”. Mais uma vez, a “pátria pequena” inspira ao autor dos Contos bárbaros um patriotismo idêntico ao dos portugueses pelo seu país natal, os quais, no dizer de Barry Hatton, “são facilmente susceptíveis a estrangeiros desaprovadores”.

Pequena, mas não desprezível, a pátria de João de Araújo Correia detém, pois, potencialidades que deve explorar sem, contudo, se descaracterizar. É neste sentido que vão as sugestões do autor, as quais, numa dialéctica entre tradição e inovação, pretendem abrir caminho para um futuro alternativo a um presente pouco auspicioso.

Tal como ele a vê em meados do século passado, a sua pátria carece de atractivos quer para os naturais, quer para quem a visite: não tem um parque, não tem vida cultural, não tem monumentos, não tem locais de onde se possa desfrutar a bela paisagem envolvente, não tem escolas que possam contribuir para o desenvolvimento da região, não tem asseio nem maneiras, não tem uma rede local de transportes públicos, não oferece espaços agradáveis de alojamento e restauração, é barulhenta, tem muitos carros e condutores incumpridores...

Nada há de fatal, no entanto, neste cenário, pois, na óptica do escritor, não faltam recursos ao concelho da Régua para mudar de rumo. A começar pelas condições naturais, propícias ao turismo e à floricultura, por exemplo. Para além da natureza, também o passado é apresentado, sem contradição, como uma fonte de renovação. A ele se hão-de ir recuperar iniciativas como a parada agrícola, a tourada, as bandas de música ou os grupos de teatro, ou seja, aspectos que fazem da terra do nosso contista mais do que um entreposto vinícola. Ela pode também embelezar-se recuperando trechos como a estrada do Rodo, com as suas amoreiras. Desse passado fecundo, do qual se traça um retrato eufórico, deverá manter-se ainda a tradição dos queijinhos e do requeijão fornecidos pelas aldeias vizinhas, e ícones como o barco rabelo e o carro de bois, “relíquias da nossa terra ameaçadas de morte”. A memória e identidade locais também não podem dispensar os “reguenses ilustres”, imortalizados em nomes de ruas ou em monumentos. O antigo jornal diário também deve ser ressuscitado, para “defesa e ilustração” da capital do Douro. Enfim, a criação de escolas técnicas e o exemplo de outras terras são alguns dos estímulos para que a Régua deixe de ser uma “princesa indolente”.
Se criticar, como vimos acima, é também apontar os aspectos positivos, os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua cabem certamente nesta categoria. Oriundos desse pretérito glorioso, não tiveram o mesmo destino efémero de muitas criações de outrora. Na sua crónica “Biblioteca de Maximiano Lemos”, João de Araújo Correia assinala precisamente a excepcionalidade da sobrevivência da corporação local de Bombeiros entre fracassos de diversa ordem: “Na Régua é tradição que falhem todas as iniciativas. Falharam as touradas, as exposições fotográficas, o teatro de amadores, o orfeão, a parada agrícola, os desportos fluviais e até o carnaval inventado pelo Chico Pulga. Tudo falhou, menos a Associação dos Bombeiros Voluntários, fundada em 1880 e, de ano para ano, mais florescente”. Ao perdurar vigorosamente, a corporação de bombeiros poderá constituir um exemplo a seguir, demonstrando que o sucesso é possível.

A vitalidade desta instituição está bem patente nos textos que inspira a este seu admirador e entusiasta apoiante. Diga-se a propósito que logo a segunda crónica de Pátria pequena, “Uma relíquia”, de 1956, os traz à liça. O mesmo sucede numa das últimas, “O pelourinho de Canelas”, de 1971, o que sugere uma certa continuidade da presença deste tema ao longo dos anos. Registe-se ainda que, se a primeira crónica assinala os setenta e seis anos da corporação, a segunda evoca o aniversário do seu jornal, o Vida por vida.

Também as crónicas “Novembro” e “Bombeiros da velha guarda”, de 1963 e 1965, respectivamente, celebram natalícios dos Bombeiros. Constituem, por isso, atestados da robustez do corpo de Bombeiros, ao mesmo tempo que expressam o regozijo do autor com tal efeméride.

Este sentimento é indissociável do envolvimento do escritor na missão humanitária daqueles que sempre designa como “os nossos bombeiros”. Se não foi bombeiro como o pai ou presidente da Associação como o filho Camilo, nem por isso deixou de contribuir para o futuro de uma instituição com propósitos tão semelhantes aos da sua profissão. Com a discrição da abelha no seu casulo, foi da escrita que se serviu para fomentar o progresso dos soldados da paz da sua terra. Neste aspecto, a actuação de João de Araújo Correia é talvez única no país, já que nenhum outro dos nossos escritores, ao longo da sua vida, terá dedicado na imprensa tantos textos aos Bombeiros seus conterrâneos. Neles enaltece publicamente a nobre missão dos soldados da paz, iluminando com as suas palavras um recanto da sociedade geralmente deixado na sombra.

Por outro lado, a existência de Pátria pequena é, por si só, bem reveladora da ligação estreita entre o escritor e a corporação dos “nossos bombeiros”. Como explica na nota introdutória a este volume, foi no boletim Vida por vida, “órgão da [então] quase secular Associação dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua”, que surgiram pela primeira vez, raramente identificados com o seu nome, os textos que esta obra reúne e reivindica como seus. Ao alimentar as páginas do órgão da Associação com as suas 121 crónicas, o contista duriense contribuiu certamente para a afirmação e robustecimento de ambos.

O júbilo do autor não decorre apenas de o aniversário dos Bombeiros, à conta de se festejar há muitos anos, se ter tornado em mais uma tradição que, no penúltimo mês do ano, como reflecte em “Novembro”, se veio juntar aos santórios, aos diospiros, aos almanaques e às castanhas assadas. De facto, estas crónicas de comemoração servem ainda para assinalar a invulgar juvenilidade destes Bombeiros com mais de oitenta anos. É que, e ainda segundo esta mesma crónica, eles, “ao contrário de nós, que somos mortais, remoçam com a idade”. Ao salientar este fenómeno, João de Araújo Correia torna patente a cadeia intergeracional através da qual a vida dos Bombeiros se renova, contrariando o esmorecimento do seu projecto humanitário. E assim deve ser, pois, como prossegue, “É objecto que os nossos Bombeiros vivam sem envelhecer”. 

Tanto em “Novembro” como em “Bombeiros da velha guarda”, o autor do Sem método não deixa também de referir a forma como os Bombeiros celebram o seu aniversário. Na primeira destas crónicas chama-lhe “velha tradição”, na qual vemos não só o reflexo de uma existência, ao tempo, quase centenária, mas também um dos suportes da longevidade da instituição. Segundo esta mesma crónica, tal tradição consiste apenas num “jantar fraternal”, associando assim ao jantar os valores que norteiam a actividade dos soldados da paz. Em “Bombeiros da velha guarda”, há um retrato mais completo da forma como os Bombeiros comemoram o seu aniversário: “Depois das cerimónias piedosas e do desfile nas ruas, sentam-se à mesa e comem. Comem bem e gracejam…”. A vida da corporação é, pois, marcada pela jovialidade, pela boa disposição e pela camaradagem. Os valores religiosos também fazem parte do ADN dos Bombeiros, assim como a sua ligação à comunidade, para a qual se exibem em trajes de gala.

Logo pelo seu título, esta crónica apresenta um pendor evocativo que no texto se desenvolve através de recordações várias. Em primeiro lugar, “os sócios e bombeiros antigos” que já participaram neste convívio anual. Numa luta contra o esquecimento e o anonimato, o autor constrói uma espécie de memorial, no qual reúne nomes mais ou menos sonantes, todos eles irmanados numa causa comum: “Lembra-se de Afonso Soares […]; do poeta Camilo Guedes […]; do José Avelino […]; do José Ruço […]; do José Maria Leite, o Riço […]”. Esta mescla de homens de origem social diversa que partilham valores afins torna patente a natureza democrática dos Bombeiros, bem explícita quando João de Araújo Correia afirma: “Clube, ponto de reunião sem preconceito, era o quartel dos Bombeiros”. Sinal desta sã convivência entre escalões sociais diversos são talvez as “gargalhadas que faziam estremecer o quartel”. Aliás, na evocação do autor, é a boa disposição que caracteriza esses bombeiros de outros tempos: “Pelo que nos toca, ou toca aos nossos Bombeiros, recordemos os da velha guarda, tão garbosos como os de agora, mas, muito mais alegres, mais divertidos, mais despreocupados”.

Para além das pessoas, a rememoração do passado da corporação não dispensa a referência às suas antigas instalações “na Chafarica, no largo dos Aviadores, como hoje se diz”, informação que também regista as alterações na onomástica da vila, aspecto que mereceu a atenção do autor em “Nomes de ruas”, incluído no mesmo volume.

Estas recordações fornecem a João de Araújo Correia o ensejo para chamar a atenção para a necessidade de escrever a história dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua: “Tempos simples aqueles! Falta escrever-lhes a história”. Ao longo de Pátria pequena, é recorrente a preocupação do escritor com a preservação do passado. Para além da dos Bombeiros, falta “a história de notabilidades nossas – de raiz ou adoptivas” (“Reguenses ilustres”), “a história dos Artistas da Régua” (“Escolas técnicas”) e mesmo a história do teatro na vila (“Teatro na Régua”), capítulos que viriam completar a História da Vila e Concelho do Peso da Régua (1936-1938), da autoria de Afonso Soares. A causa da insistência na importância do passado encontramo-la em “Primórdios”, onde afirma: “As coisas são como os rios. Têm sua origem, que, embora tímida, nunca é desprezível”. Esta sua cruzada contra o esquecimento dos tempos pretéritos embate na indiferença da sua “pátria pequena”, já que “a Régua não tem amor a velharias, que são o pergaminho das localidades” (“Pobre padre Carminé”). A história dos bombeiros, que dá corpo à sua longa existência, ao permitir tomar consciência de um labor continuado de obreiros vários, torna-se relevante para um melhor conhecimento da instituição e, ao mesmo tempo, da terra onde lançou raízes e se desenvolveu.
Aniversários, tradições e história não teriam razão de ser se não fosse o relevante papel que os Bombeiros desempenham na sociedade, particularmente na “pátria pequena”, a qual, de acordo com o Sem método, “tirante os bombeiros, não tem coisa nenhuma útil ao comum”. É sabido que, após a publicação do livro de estreia de João de Araújo Correia, outras instituições se vieram juntar aos Bombeiros no zelo pelo bem de todos, mas tal libelo mostra bem como os Bombeiros são indispensáveis à colectividade. Mas se é verdade que a comunidade tem nos Bombeiros um dos pilares da sua existência, estes também não sobrevivem sem ela. Isto mesmo se depreende do agudo apelo que João de Araújo Correia dirige aos leitores do Vida por Vida em “Socorro!”. O título não podia ser mais adequado, já que se trata de um pedido de ajuda. No entanto, contrariamente ao habitual, são os Bombeiros que precisam de auxílio para desempenhar da melhor maneira a missão humanitária de transporte de doentes que lhes compete, tarefa para a qual é fundamental a aquisição de uma nova ambulância. Com a sua clarividência habitual, o escritor sublinha que, ao aderir a esta causa comum, é a nós mesmos que estamos a ajudar, pois “Ninguém dirá, vendo passar a auto-maca: de ti, estou eu livre”. Nesta sugestão de que o puro altruísmo não existe parece o nosso escritor ir ao encontro da irónica máxima que Nietzsche apontou no seu Crepúsculo do ídolos: “Ajuda-te a ti mesmo: então todos os outros te ajudarão. Princípio do amor ao próximo”.

À semelhança de “Socorro!”, a crónica “Acudam-lhe”, tal como o título anuncia, também encerra um pedido de auxílio. As atenções voltam-se agora para a Ceia de Cristo existente na igreja matriz, obra de Pedro Alexandrino degradada pelo tempo. Neste caso, os Bombeiros são chamados, como habitualmente, a prestar assistência, mas num domínio bem diferente daquele em que costumam intervir. Entre a Casa do Douro e a Associação dos Bombeiros, o escritor prefere esta última para acolher o painel setecentista depois de recuperado. Com uma certa dose de humor, argumenta que os Bombeiros, “bairristas por excelência, defendê-lo-iam de todos os ultrajes, nomeadamente o fogo”. É o amor deles à “pátria pequena”, comprovativo da ligação profunda que os liga à sua terra, que os torna os melhores guardiães dos tesouros que ela possui e não deve perder. A sua missão humanitária vê-se assim complementada por uma vertente cultural.

A ser aceite a sugestão de João de Araújo Correia, não seria a tela religiosa o primeiro objecto com história a ser albergado pelos Bombeiros. Ela iria juntar-se à “sineta que alarmou os povos em 1808”, “relíquia” exibida, em 1956, pela “cobertura da nossa casa, como quem diz, [n]o telhado do nosso quartel”. Estas mesmas instalações seriam, provavelmente, o destino do “Pelourinho de Canelas”, se o desafio lançado nos quinze anos do Vida por vida desse fruto. Preciosidades provenientes do concelho que, em 1853, foi extinto a favor da Régua, fazem parte da pré-história do novo concelho. Nestas circunstâncias, seriam, pois, os Bombeiros a suprir a inexistência de um Museu da Régua, equipamento cultural que o escritor também antecipa em “Fontainhas”. Neste texto de 1958, João de Araújo Correia acalenta ainda o sonho de “uma bibliotecazinha municipal”. Acudindo mais uma vez a uma carência da vila e do concelho, é precisamente pela sua biblioteca que os Bombeiros se impõem na paisagem cultural reguense da segunda metade do século XX.
Ao longo de Pátria pequena, nenhum outro aspecto da vida da corporação ocupa tanto a atenção do escritor como a biblioteca. Tal traduz certamente o relevo que atribui a esta iniciativa, a qual, segundo o autor, numa crónica não coligida neste volume , visa “provocar o amor à cultura, à instrução, à educação das gerações”. Numa região de “Vocações perdidas” “por falta de cultura e ensino técnico perfeito”, compreende-se o entusiasmo do contista com mais esta actividade humanitária dos Bombeiros.

As crónicas que João de Araújo Correia dedica a este tema dão-nos conta de diversos marcos do historial daquela que designa como “a coqueluche dos Bombeiros”. De acordo com “Primórdios”, a sua origem remonta a 1885, isto é, a cinco anos após a fundação da Associação. Embora se desconheça a paternidade da ideia, a sua existência é bem significativa da apetência pela leitura entre os seus sócios e dos valores que os norteavam. Setenta e cinco anos mais tarde, “o velho armário repleto de livros sem catalogação” dá lugar a uma biblioteca propriamente dita, que os Bombeiros pretendem baptizar com o nome de Maximiano de Lemos, “fazendo coincidir o acto inaugural com o centenário natalício do nosso conterrâneo”. Deste modo, para além de promover a ilustração dos habitantes do concelho, a biblioteca perpetua o nome de um reguense ilustre ameaçado de esquecimento, ajudando a sedimentar a memória colectiva. Saliente-se, a este respeito, que, de acordo com “Alvíssaras”, terão sido os Bombeiros o motor das “comemorações do primeiro centenário natalício do professor Maximiano de Lemos”, pois, seguindo-lhe o exemplo, outras entidades se agregaram a esta homenagem. A actividade cultural dos bombeiros realiza-se, deste modo, de diversas maneiras. Ela vem a ser outra das concretizações do já referido espírito bairrista que, segundo o escritor, anima a corporação.

Três anos após a inauguração da Biblioteca Maximiano de Lemos teve lugar outro acontecimento importante da sua história. Nesta altura, recebeu ela “uma valiosa colecção de livros oferecidos pela benemérita Fundação Calouste Gulbenkian”. A biblioteca inaugurada em 1960, constituída sobretudo por espécimes provenientes do antigo armário-estante e por ofertas particulares, vê-se assim ampliada e actualizada. O aumento do acervo bibliográfico e o alcance social desta obra dos Bombeiros tornam manifesta a necessidade de organização, sugerindo o escritor a criação de um regulamento. Tal como a respeito da aquisição da nova ambulância, considera ainda que a Associação dos Bombeiros deve, também neste domínio, ser auxiliada pela sociedade civil. Apela por isso à colaboração dos “reguenses dados à leitura” e propõe a fundação do “Grupo dos Amigos da Biblioteca Maximiano de Lemos”. Esta é uma das múltiplas associações cuja semente lançou ao longo da sua colaboração no Vida por vida, visando acrescentar vida cultural à “vila comercial” que a Régua então era.

Com este repto lançado aos seus conterrâneos terminou João de Araújo Correia a sua batalha nas páginas do boletim da Associação em prol da biblioteca humanitária. Volta, no entanto, a convocar a intervenção dos Bombeiros no texto “Música de Poiares”: “Bombeiros e outros grémios devem apadrinhar a ressurreição da música de Poiares”. Deste modo, a missão cultural dos soldados da paz alargaria consideravelmente o seu âmbito ao estender-se a um domínio artístico específico e a uma aldeia do concelho da Régua. Ao permitir recuperar uma banda que era “a mais antiga, a mais perseverante e, há tantos anos, única música do nosso concelho”, esta parceria entre os Bombeiros e outras entidades impediria o empobrecimento cultural da “pátria pequena”. Se isto não bastasse, os benefícios da Música justificariam só por si o empenho no ressurgimento da banda poiarense: “Não é preciso inculcar a ninguém o valor da Música. Todos o sentimos. Como educadora do povo rude, é inestimável. Desperta-lhe sentimentos bons adormecidos, desvia-a de recreios perigosos. É imprescindível para suavizar índoles bravias”. De novo João de Araújo Correia implica os Bombeiros numa causa “A bem da humanidade”.

Esta viagem pelo Pátria pequena à boleia dos soldados da paz ficaria incompleta sem uma referência ao Vida por vida, não por ser este o depositário original dos textos que deram origem àquela obra, mas por causa do que ele representa. Na pequena nótula introdutória surge a mais extensa referência a este mensário, relativa ao seu historial. Os seus breves dezoito anos de existência expressam talvez a vitalidade da Associação a que dá voz, num período particular. Avançando para o interior do volume, passagens como “folhinha privativa de uma Associação de Bombeiros”, “pequena tribuna”, “cantinho” ou “recanto da Imprensa Portuguesa” colocam a tónica na modéstia do jornal. No entanto, a sua discrição não é sinónimo de inoperância, pois ele é também “luzinha numa espécie de serração espiritual”, “guia” para “espíritos ávidos de claridade”. O humilde periódico ocupa, portanto, um lugar especial no panorama reguense, ao mesmo tempo que confere novas valências à actuação da Associação em proveito da comunidade em que se insere.

É este espírito de serviço ao seu semelhante que subjaz à porfiada colaboração de João de Araújo Correia nas páginas do Vida por vida. Se aponta os males da sua “pátria pequena”, também indica as terapias para os debelar e assim melhorar a vida dos seus conterrâneos. Não será por isso descabido dizer “Ditosa pátria que tal filho teve!”.

O autor de Cinza do lar não tem olhos apenas para as coisas negativas da sua terra. A corporação de Bombeiros merece-lhe particular carinho e atenção, desde logo pela sua resistência num meio onde tudo parece destinado ao fracasso. Enquanto representante dos valores humanitários que eram tão caros ao nosso escritor, procura alargar o âmbito de acção da corporação a domínios de grande relevância para a comunidade. Sublinha, ao mesmo tempo, que o auxílio dos Bombeiros à colectividade depende do apoio que dela receber, mostrando que ambos estão interligados. Afinal, os Bombeiros, como a Régua, dependem da colaboração de todos. Para além de tudo isto, João de Araújo Correia apresenta-nos os Bombeiros por dentro, relatando alguns dos seus hábitos e um ou outro dado da sua história. Se lhe fosse possível regressar ao seu torrão natal, ficaria certamente contente por saber que “os nossos Bombeiros” estão a caminho do seu 133º aniversário, sem perderem o garbo e a juvenilidade que lhes conheceu. Simpatizaria, sem dúvida, com o “Arquivo dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua” do Arrais, jornal a que, de diversas maneiras, esteve ligado em vida e onde também publicou crónicas sobre os seus Bombeiros.
Agradar-lhe-ia também a notícia de que alguns episódios da longa e proveitosa vida da corporação se encontram já fixados num livro, constituindo a primeira resposta ao seu apelo ao registo escrito da história dos Bombeiros locais. Nada está perdido. Quem sabe de que outras propostas de Pátria pequena não se encarregará o futuro?

1* - Referimo-nos ao texto “A Biblioteca dos Bombeiros”, encontrado pelo Dr. José Alfredo Almeida no Vida por vida de Dezembro de 1960, do qual gentilmente nos forneceu uma cópia. Embora assinado com as iniciais A.D., pelo estilo e pelo ardoroso apelo que encerra, é, sem dúvida, da autoria de João de Araújo Correia.

*Crónica escrita pela drª. Ana Ribeiro, Profª. da Faculdade de Letras da Universidade do Minho em volta do escritor  reguense João de Araújo Correia.
Clique nas imagens para ampliar. Fotos e texto cedidos por Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2013.  Também publicado no jornal semanário regional "O ARRAIS" edição de 27 de Março de 2013 (1ª parte). É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

De volta ao Milagre do Cruzeiro

Estou de volta ao Milagre do Cruzeiro a pedido de alguém que gostaria de conhecer o essencial da história contada na opereta, em episódios tão românticos como realistas. No dia da estreia foi distribuído um livrinho-programa onde constava um resumo dessa história e que agora transcrevo, com um outro acrescento da minha lavra.

Diz assim esse resumo: “Era uma vez uma menina chamada Joaninha que, por ser órfã, foi recolhida e amparada pela sua madrinha, a Srª Morgada. Vivendo no aconchego de tão santo lar, a Joaninha não podia deixar de revelar as excelsas qualidades da sua madrinha, se bem que ela possuísse um coração terno e afável, nunca indiferente à miséria e dor alheias, daí resultando a estima de toda a gente, principalmente os pobres que ela socorria.

Certo dia, por motivo de um casual encontro com Fernando - mestre-escola – sentiu dentro de si a chama do amor.

Alvaro, filho do fidalgo dos Cabris, moço galanteador de quem as raparigas da aldeia fugiam, por se dizer de boca em boca, ser autor de certos males, lembrou-se de dirigir olhares pecaminosos e palavras intencionais à bondosa Joaninha, perseguindo-a durante as suas visitas de devoção ao alto do Cruzeiro.

O maldoso João ferreiro soube disso e estaria pronto a ajudar o fidalgo nos seus torvos intentos.

Inesperada tragédia atinge em cheio Fernando e despedaça o coração de Joaninha. É que um tiro, também inesperado, atingiu e matou o fidalgo, ele que momentos antes tinha trocado umas palavras azedas com Fernando.

Joaninha, como louca foge de casa e dirige-se ao Cristo do Cruzeiro e implora-lhe a morte como único alívio para a sua dor, para o seu coração desfeito! Tomba inanimada e o bom Deus manda os anjos levantar o seu corpo débil e iluminar-lhe o caminho por onde, novamente, a felicidade viria.

Foi milagre!!!! E no fim daquele trágico dia brilhou a luz da verdade! Soaram as “Avé Marias”.

Este último quadro, tal com estas últimas palavras, fazem crer que o autor Rafael Magalhães, era um homem de devoção e de fé. De facto, era de uma religiosidade singular, intimista de todo e entendia que qualquer prece, qualquer diálogo com Deus, devia acontecer com muito respeito e total privacidade.
E é crível também que o autor da opereta, ao passar diariamente na rua Pedro Verdial, tenha encontrado ali uma fonte de inspiração, fosse no palavreado das mulheres do soalheiro, fosse nos janelões gradeados da velha cadeia onde os detidos, desirmanados do mundo e da razão, tinham olhos libertos e afoitos a todo o largo da concha reguense.

Já agora, traga-se aqui aos cenários, duas ou três personagens que ficaram para sempre na memória de quem as viu em cena. Pontificava a Teresa Chocalheira, serviçal da Sr.ª Morgada. Parecia o diabo à solta num mundo de milagres, mas não se servia de impropérios descabidos nem usava termos estapafúrdios. O seu fraseado eram só chalaças, sarcasmos e ironias, respostas na ponta da língua de mais a mais com assentimento e aprovação da patroa, a Sr.ª Morgada. Também o oficial de diligências, figura bem delineada e tão bem desempenhada pelo inconfundível Teixeirinha (lembram-se?). Diante da Teresa Chocalheira e diante das provas que incriminavam o assassino do fidalgo mostrava-se muito confuso, hesitante e inseguro, cheio de embaraços a fazer as suas partes gagas. Novelas, o regedor ou António, o perdido eram dois figurantes que nos diálogos e na postura se revelaram com muita desenvoltura tal como o João ferreiro, a disfarçar as sobras dos seus maus humores.

No final da opereta, final da história, surgiam duas figuras de anjos na beatitude milagrosa do cenário e um coro de vozes cantou uma Avé-Maria.

Diga-se, agora, que muita gente tem dito que “O Milagre do Cruzeiro” devia voltar à cena. Acho que não... Os tempos são outros e se mudou o mundo também mudaram as circunstâncias. Nos tempos que correm, tempos confusos e destemperados, o “milagre” não teria cabimento nem aceitação. Deixe-mo-lo no pó dos arquivos.

Enquanto isso, venho eu à boqueira do palco do velho Teatro dos Bombeiros da Régua dar vazão aos cenários do sentimentalismo.
Manuel Braz de Magalhães, Janeiro de 2013

Clique  nas imagens para ampliar. Sugestão do Dr. José Alfredo Almeida (JASA)  Também publicado no semanário regional "O Arrais", edição de 23 de Janeiro de 2013. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Miguel Torga (12-08-1907 - 17-01-1995)

Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, (São Martinho de Anta, 12 de Agosto de 1907 — Coimbra, 17 de Janeiro de 1995) foi um dos mais influentes poetas e escritores portugueses do século XX. Destacou-se como poeta, contista e memorialista, mas escreveu também romances, peças de teatro e ensaios. - Fonte Wikipédia
Em homenagem a Miguel Torga, recordo o grande Poeta e Escritor com o poema "Recomeçar" (que bem precisamos neste presente de dificuldades) e um excerto diarístico que nos conduz à terra (Devo à paisagem as poucas alegrias que tive neste mundo). 
Em nome dos nomes grandes da nossa Literatura, aqui fica a minha singela homenagem a Miguel Torga (12-08-1907 - 17-01-1995).
- Maria da Luz Magalhães - via e.mail

Recomeçar

Recomeça....
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...
- Miguel Torga

Devo à Paisagem as Poucas Alegrias que Tive no Mundo

Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras, e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil. Lá está o exemplo de Miguel Angelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu declaro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nunca vi nada mais puro, mais gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar um dia no alto das penedias da Calcedónia, no Gerez. Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespeare... Palavra, que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha, Mãe!
- Miguel Torga, in "Diário (1942)"

Clique  na imagem para ampliar. Sugestão do Dr. José Alfredo Almeida (JASA) e e-mail de Maria da Luz Magalhães. Edição de imagem e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Heitor Gama

Ser bombeiro faz parte do imaginário de qualquer criança, mesmo antes de aprender a ler, fazer contas e de desenhar. Nas brincadeiras, os mais novos gostam de se imaginar como bombeiros. Para cada missão fardam-se a rigor e entram pelo quartel adentro aos primeiros toques da sirene. E de lá saem no pronto-socorro, empolgados para conseguirem salvar vidas em perigo. Se for necessário tanto combatem o mais pequenino como combatem o maior e o mais temível incêndio, arriscando mesmo a sua vida.

As crianças vestem a farda de bombeiro como se vestissem a farda de um dos seus heróis. Nunca pensam numa qualquer recompensa ou receber uma medalha. Apenas querem imitar os verdadeiros bombeiros e, seguindo os seus exemplos, crescerem como homens altruístas, corajosos e generosos. Quem não ouviu da boca de uma criança esta frase: “Quando eu for grande… quero ser bombeiro!”.

Como todas as crianças, o Heitor Gama deve ter sonhado ser bombeiro. Mas, se nunca sonhou ser bombeiro, deve ter ouvido ao avô materno algumas histórias relacionadas com os bombeiros, a sua coragem, o seu altruísmo e a sua abnegação. E, com esse seu avô que foi um antigo director da Associação, deve ter presenciado os aprumados desfiles dos bombeiros, ao som estridente de uma fanfarra, em direcção ao Jardim do Cruzeiro, onde paravam e, perfilados em continência, colocavam um ramo de flores diante da estátua ao Comandante Afonso Soares.
Mas, o Heitor Gama guarda do tempo da sua infância um desenho numa folha A4 que traça com fiel rigor os aspectos de uma cerimónia em que os bombeiros homenagearam o seu avô, a título póstumo, pela sua dedicação à causa ao voluntariado.

Não conhecia aquela sua preciosidade infantil, com um traço rudimentar e inocente, mas cheio de ternura e generosidade, que muito me sensibilizou quando mo mostrou. Olhando para as figurinhas por aí retratadas, recordei a cerimónia de homenagem e de gratidão ao seu avô Heitor Gama, que aconteceu no Largo da Igreja Matriz, no dia 28 de Novembro de 1999, no 119º Aniversário da Associação.

O desenho para mim estava perfeito, fazia-me recordar, sem a ajuda de nenhuma fotografia para comparar, o rosto tímido da criança de nove anos, debruçada sobre o carro de fogo nos braços do Comandante Manuel Gouveia, ansiosa por destapar uma placa de metal gravada com o nome do avô. Bastou-me olhar para o desenho para compreender que as simpáticas figurinhas que saiam seu desenho, se identificavam com pessoas que ali compareceram para testemunhar o acontecimento. A começar pelo próprio, que se auto-retratou acompanhado pelo seu  pai e a avó, que seguiam com atenção o que ali faziam o velho  Comandante, os bombeiros de machado em punho e, por fim, o senhor padre  a benzer o carro com a  água benta.
Mais tarde, reparei que naquele desenho faltava a presença de uma figurinha, do presidente da direcção…! Melhor dito, faltava a minha pessoa. Mas, não estranhei que tivesse passado despercebido. O mais certo era que não soubesse que também existiam bombeiros sem farda.

Ora, o seu avô tinha sido um grande bombeiro sem farda, um director zeloso, dedicado, rigoroso em tudo o que fazia, que, durante muitos anos, serviu, mesmo com sacrifício para a sua vida pessoal, uma causa de interesse público. Não tive a sorte de conhecer o senhor Heitor Gama, antigo funcionário administrativo da Casa do Douro, mas coube a mim fazer-lhe a devida e merecida homenagem. Quem, hoje, ainda o recorda, elogia-o como um cidadão exemplar e um abnegado director que, em tempos de grandes dificuldades, muito se dedicou à vida da associação e do seu Corpo de Bombeiros.

No verão passado, o jovem Heitor Gama entrou, mais uma vez, no majestoso Quartel Delfim Ferreira para representar, num palco improvisado, com os alunos da Universidade Sénior da Régua, a belíssima e inteligente peça de teatro D. Antónia - Uma Mulher Fora do Seu Tempo. Como não podia deixar de ser, lembrou-se que o seu avô tinha sido também um bombeiro sem farda, um director que muito contribuíra que qualquer missão dos soldados da paz fosse bem desempenhada.

Desta vez, envergando a velha farda que pertenceu ao primeiro Comandante, Manuel Maria de Magalhães, compreendeu que os voluntários, quer usem ou não uma farda, são necessários para apagar todos os fogos... ou socorrer em qualquer tragédia da vida.

Sem que tenha seguido o exemplo do seu avô, o Heitor Gama, pelo teatro, conseguiu ser um bombeiro. Talvez, um dia mais tarde, ao se lembrar também da farda que usou, possa ainda dizer: “Quando eu for grande… não quero esquecer-me de que fui criança e… um bombeiro da Régua”.
E assim nunca esquecerá o exemplo cívico do seu avô, o bom cidadão reguense Heitor Gama, um bombeiro sem farda.

- José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Dezembro de 2012
*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também cronicas que registam neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.


Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS", edição de 5 de Dezembro de 2012. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O Milagre do Cruzeiro

Tenho diante de mim o livrinho - programa referente à estreia da opereta O Milagre do Cruzeiro, com letra e música de meu pai António Rafael Magalhães. Nele se diz que a opereta foi escrita em Abril de 1950 e apresentada ao público em 11 de Novembro do mesmo ano no quartel dos Bombeiros Voluntários da Régua.

Cinco anos antes tinha acabado a II guerra mundial e toda a gente vivia nas benquerenças da paz e duma permanente euforia. Por sugestão do Lourencinho, ao tempo comandante dos bombeiros e também a pedido de meia dúzia de componentes da Orquestra Reguense, meu pai lá se dispôs a escrever e a musicar uma opereta, coisa impensável nos seus horizontes artísticos. Mas, como quem se precata, começou a dar tento dos teatros do mundo que é como quem diz, o quotidiano do seu viver e das suas congeminações… Se nas horas forras do seu comércio de tabacos vinha até à porta da loja, a olhar a rua, o que é que via? Via o chamado Cimo da Régua com um polícia sinaleiro atento ao trânsito e via a novidade dos carros americanos, carros de bom tamanho e bons cromados sendo alguns conduzidos pelo novo-riquismo do volfrâmio. Nas costas do polícia era a sala de estar dos mirones e dos meninos bonitos, todos fazendo horas espreguiçadas e a olharem a tacanhez provinciana do mundo em derredor… E o Rafael Magalhães a dar conta do cenário.
No regresso à casa de Remostias passava junto da cadeia da vila, com seus janelões gradeados e onde se corporizava a responsabilidade de crimes maiores ou menores, sabe-se lá se alguma virtude escondida num corpo injustiçado. As celas escuras e soturnas recebiam uma esmola de luz e aconchego pela tardinha, à hora do sol poente. Seria tudo isto mais um capítulo, um novo cenário dos teatros do mundo? Seria, seria…

Um pouco mais adiante, num encruzamento de caminhos, era o bom dia ou a boa tarde das mulheres do soalheiro, isto se o tempo estivesse de feição e com boa temperança. Meu pai, Rafael Magalhães, respondia à saudação e reparava que elas se catavam umas às outras e espiolhavam o norte e o desnorte de vidas alheias… Se uma fazia meia, outra remendava o cu das calças do seu homem. Mas, todas elas integradas num resumo dos teatros do mundo e meu pai a congeminar até que chegava ao lugar das Fontainhas.

A partir daí não havia casas nem casebres nem sequer um arremedo de comparsas ou figurantes. A estrada de terra batida, ladeada de vinhedos, era chão afeiçoado a um cigarrinho de enrolar e às sementes que iam vicejando no ramalhete de uma história já pensada e já delineada. Disse-me um dia meu pai… Disse-me que as linhas e entrelinhas do enredo se revelavam no caminho das Fontainhas a Remostias, entre vinhedos, numa íntima comunhão com a natureza, como se aquele caminho fosse uma fonte de inspiração.
Chegado a casa, isolava-se na sala grande, sala propícia à leitura, à escrita e à música. Era ali o salão nobre das suas ideias, da sua criatividade e até das impressões que dia-a-dia se iam polarizando no seu cérebro. Havia ali um piano, uma flauta, um violino e um bandolim de quatro cordas. Dedilhava o bandolim e de pronto lançava no papel de música as notas compassadas e dançantes de um bailarico ou os acordes dulcificados de uma Avé Maria, tudo isso destinado ao canto e aos descantes da opereta. O enredo, esse tinha o romantismo tradicional, de mãos dadas com o realismo da época.
Os ensaios eram sucessivos e não se faziam à sobreposse. Faziam-se num ambiente de festa com a juventude e o entusiasmo de todos os figurantes.

A história do Milagre do Cruzeiro foi no dia 18 de Novembro,  no ano santo de 1950 e no quartel dos bombeiros onde se improvisou um palco e uma plateia num salão ainda inacabado. Foi ali que se assistiu ao êxito e ao sucesso de uma opereta que por onze vezes seria representada.

Se meu pai ressurgisse por aí, estou certo de que gostaria de ler e relembrar este memorial e até me dava a sua bênção. Mas isso, só por milagre dos milagres.
-  Manuel Braz de Magalhães, 24-11-12

Clique  nas imagens para ampliar. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no jornal regional semanário 'O ARRAIS', edição de 12 de Dezembro de 2012. Só é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Memórias do Comandante Lourencinho

Num aditamento ao texto que escrevi há três ou quatro semanas e que aqui se publicou, eu disse que o mesmo ia ser escrito no português da minha escola. Pois o texto de hoje obedece aos mesmos princípios, seja pela idade que vou tendo, seja pelo respeito aos bons dicionários que tenho na biblioteca. Adiante…

Depois da escola que me ensinou a ler Camilo ou o sermonário do padre António Vieira, continuei os estudos na Faculdade de Medicina do Porto, rés-vés o hospital de Stº. António. Foi por esse tempo que conheci o senhor Lourenço Pinto Medeiros, o Lourencinho, de boa memória. Também por esse tempo, nas férias grandes ou pequenas, eu deixava para trás o casão da Faculdade e vinha para a casa paterna, ou avoenga, casa de quinta, no lugar de Remostias. No Porto ficavam os livros de estudo, anatomias, patologia geral, embriologia, obstetrícia, propedêuticas, e por aí fora, todos eles em repouso e entregues a si mesmos, como se cada qual fosse uma leira de terra em pousio.

Gostava de trazer comigo, a boa companhia do tratado de Fisiologia, só para continuar os estudos em dias feriados… O funcionamento do corpo humano, os seus segredos e interrogações, até alguns milagres, tudo isso me fascinava e tudo isso chegou a ser tema de amenas conversas com o Lourencinho, ali na tabacaria de meu pai, na rua de Serpa Pinto.

Era nas férias grandes, naquelas manhãs ou tardes de um verão canicular que muitas vezes eu deixava para trás a meia-encosta de Remostias, toda ela com sucessivos quadros de uma natureza aprimorada, e vinha por aí abaixo até ao centro da Régua, mesmo no Agosto que dia- a-dia se ia chegando às vindimas, já com tantos e tantos cachos aflorados de oiro e de pintor. Feito vádio, modo de dizer, vinha até à Régua, eu e o tratado de Fisiologia, a fazermos uma pousada na tabacaria de meu pai. Era ali que se encontrava quase sempre o Lourencinho, sempre bem vestido, fato de bom talhe, gravata a condizer, sapatos brilhantes de bom lustro.

Na tabacaria, no espaço destinado ao público, havia um banco corrido de três ou quatro lugares, encimado por um largo espelho de cristal e ladeado por duas estantes expositoras, coisa rara e talvez única em qualquer outro estabelecimento da Régua. Meu pai, um diletante, de mais a mais com um apurado sentido da cultura, entendeu que o comércio de tabacos por junto, era negócio de toma lá dá cá, negócio nada marralheiro e a pedir algum espaço de descanso e de convívio.

O banco, sendo corrido, naturalmente rectangular, passou a ser um círculo de diálogo e de cultura. Era o banco do Lourencinho, afora um ou outro freguês que nele descansasse de uma longa caminhada. Sentado no banco o Lourecinho fazia horas e fazia-as diariamente, cioso de algum sossego, sei lá se de alguma secreta solidão e a deitar contas à vida. Fumava cigarros atrás de cigarros e olhava a rua com olhos distantes, mesmo inexpressivos, como se a retina estivesse virada para dentro de si mesmo.

Tirando os dias de feira, o quotidiano da rua era o habitual, um sobe e desce de automóveis, carros de bois, carretas de mão e gente que ia à sua vida, novos e velhos, cada qual integrado no andamento do mundo.

Muitas vezes eu subia ao andar da Associação Comercial a estudar Fisiologia. Depois vinha fazer horas de espera junto do Lourencinho que logo me perguntava: - Então, já estudou? Continue… continue, não desista. Conversávamos então sobre vários aspectos da fisiologia humana, coisas que ele gostava de ouvir e que lhe ateavam um fogo de curiosidades. De espanto em espanto, como que se deslaçava nele uma qualquer timidez que, se não era medular era própria da sua postura intimista.

O bombeiro Lourencinho, já comandante da Corporação, não era atreito a exibicionismos nem a protagonismos, muito menos a fogo de vistas. Mas amava os bombeiros no seu todo e gostava de se sentar no banco da tabacaria a conversar com meu pai.

Assim enraizado, é crível que fosse o Lourencinho quem convenceu meu pai a escrever uma qualquer peça de teatro, peça que, levada à cena, poderia render dinheiro bastante para dar seguimento às obras do quartel.

E, de facto, meu pai escreveu a letra e a música da opereta O Milagre do Cruzeiro que, logo na estreia, foi um sucesso, um acontecimento artístico a despertar por aí além muito entusiasmo e muitos aplausos.

Foi uma sugestão do Lourencinho? Talvez… talvez... isto nos animosos tempos que já lá vão e nos bons propósitos de um espaço que já não é.
- Manuel Braz de Magalhães
Clique  nas imagens para ampliar. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no semanário regional "O ARRAIS", edição de 7 de Novembro de 2012. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O Primeiro Presidente da Direcção

Na primeira vez que entrei na casa da família Magalhães, na Quinta D. Leonor, na encosta de Remostias, encontrarei uma fotografia antiga, pendurada numa parede de uma confortável sala que despertou a minha atenção. De repente, quando olhei o rosto daquele homem sério, de barbas, de olhar algo melancólico e distante no tempo, que pressagiei ser José Braz Fernandes, o primeiro Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua.

Há muito que esperava ver o rosto do homem que considerada uma figura destacada na história da Associação dos Bombeiros da Régua. Até aquela data, verão de 2011, não tinha encontrado nenhum seu retrato, por mais que o procurasse aquele retrato de José Braz Fernandes surgia-me inesperadamente. Eu tinha ido àquela casa para conversar um pouco sobre António Rafael de Magalhães e a sua opereta “O Milagre do Cruzeiro”, que fora representada, pela primeira vez, nos anos 50, com enorme sucesso, no Quartel dos Bombeiros da Régua, que serviu como se fosse um Teatro.

Se a era uma boa razão para estar muito satisfeito, confesso que, sem contar, ter perto de mim o retrato do meu primeiro antecessor me fez sentir um tanto deslumbrado e bastante honrado com a sua companhia, que um pedaço de fio da história nos aproximava e nos unia.

À minha frente, sabia que estava o retrato bisavô do meu amigo, uma preciosidade de antepassado da família, da vida do qual pouco sabiam. No meu indisfarçado encanto, estava diante do meu olhar o retrato do Primeiro Presidente da Direcção.

Nessa tarde de Julho, entre José Braz Fernandes e mim, separava-nos mais de um século, precisamente cento e trinta e um anos, e naquele momento, nada sabia da sua via. Ignorava tudo da sua biografia, apesar de ter procurado alguns rastos de seu percurso pessoal, familiar e profissional. No cemitério municipal, onde sabíamos que jazem as cinzas do seu corpo, procuramos no jazigo da família uma lápide com o seu nome e a data do seu falecimento, mas dali só veio um silêncio profundo. Quando menos esperamos, o Arquivo Distrital de Vila Real dava-nos conhecimento que tinha o assento do seu óbito. Quisemos ter uma fotocópia desse documento que foi preenchido pela mão do Abade Miguel António da Fonseca e Sousa que, assistindo espiritualmente à sua morte, nele registou estes dados: “Aos 30 dias do mês de Septembro do ano de mil oitocentos e noventa e quatro, à uma hora da manhã, nas casas da morada no lugar de Remostias, desta freguesia de São Faustino do Peso da Regoa, concelho do Peso da Regoa, diocese de Lamego, falleceu, tendo recebido o Sacramento da Extrema Unção, um individuo do sexo masculino, por nome de Jose Braz Fernandes, de idade de cinquenta e oito anos, viúvo de Dona Maria da Natividade Candida (…)”.

Para a sua família, José Braz Fernandes era um antepassado longínquo, com quem não tinham havido nenhumas relações de intimidades. Lembravam-no apenas pelo que ouviram contar aos seus descendentes mais próximos. Tinham conhecimento que fora proprietário, dono de uma área extensa vinhas, algumas das quais fazem parte da Quinta D. Leonor. E que sempre viveu aí viveu e educou oito filhos que teve do seu casamento, a Leonor, a Felicidade, a Elisa, a Cândida – também ela uma ilustre benemérita dos Bombeiros da Régua -, o Augusto, o Joaquim, o Romão e o José.

Na única história da Régua, da autoria Afonso Soares, o seu nome está recordado como um cidadão empenhado activamente nas causas sociais, aparecendo ligado à primeira administração do Hospital da Régua e aos órgãos sociais da prestigiada Associação Comercial.

Mas, como o primeiro Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua, ninguém o tinha evocado, para o distinguir num cargo de relevo social. Uma falha que, até hoje me parecia, ser injusta para um cidadão que tinha dedicado, uma pequena parte da sua vida, a servir uma causa cívica e humanitária que, apesar de muitas vicissitudes, ser afirmara no seu tempo.

Ao lado do primeiro Comandante Manuel Maria de Magalhães, seu amigo pessoal, José Braz Fernandes, teve como espinhosa missão, a organização um corpo de bombeiros voluntários, com formação e material adequado. Sem quer fazer uma conjectura do seu trabalho nos quatro anos em que esteve à frente da Direcção, sabemos que concretizou muitos projectos, aqueles que na época eram o objectivo essencial e recebeu das mãos do Rei D. Luís I, uma honrosa distinção para Associação.
Nas entrelinhas das actas da sua Direcção, que chegaram intactas até nós, não ficaram assinalados os resultados do seu trabalho. Quem tiver atenção, ficou bem explícito o traço do seu carácter, a verticalidade e a sua determinação. O exemplo cívico de um homem que viveu uma espantosa experiência humana, a genuína causa do voluntariado.

Desde a fundação, os Bombeiros da Régua mudaram muito. Apoiados numa Associação modelar, que evoluiu e se transformou num sector em mudança permanente, é actualmente uma organização social e de socorro moderna. Para aqui chegar, ser uma instituição sólida e grande, precisou que ele erguesse os primeiros pilares. Quando tudo começou, no dia em tomou posse, o património da Associação era pouco mais que as duas bombas de incêndios pela autarquia. Os sócios contribuintes e os beneméritos, como a famosa viticultora Ferreirinha, contribuíram para comprar as fardas e pagar as rendas da casa que, no Lago da Chafarica, serviu de instalar a sede, a biblioteca e, como se chamava ao quartel, a Estação das Bombas.

Como actual Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua, com cinco mandatos feitos, tenho o dever, mesmo a obrigação, de preservar a memória colectiva da Associação e de todos os cidadãos, bombeiros, directores, associados e beneméritos – que a ela e à sociedade reguense deram muito das suas vidas.

Conhecer o que foi o passado de José Braz Fernandes estimula-me a persistir no engrandecimento da Associação e do Corpo de Bombeiros. Orgulho-me do que foi legado, um empreendimento social, benemérito, generoso e abnegado que continua a existir para proteger as pessoas e bens, assente no associativismo, cidadania e voluntariado.

Em 28 de Novembro de 1880, os Bombeiros da Régua foram pioneiros no distrito de Vila Real. A sua Associação foi a primeira a ser fundada. E, a única, a quem foi atribuído o título honorífico de Real Associação.

Por isso, fiquei contente quando o olhar mesmo distante de José Braz Fernandes, naquele retrato, se cruzou com o meu, quase de um presidente para outro presidente, voltou a pairar – eu penso que com admiração e orgulho - pelo presente da nossa Associação e do Corpo de Bombeiros que, há mais de um século, persistem em ser uma referência ética, cívica e cultural da sociedade reguense.
- José Alfredo Almeida*, 
Peso da Régua, Outubro de 2012



PS - A partir de agora, por gentileza da família Magalhães, uma cópia daquele retrato de José Braz Fernandes está exposto numa galeria do Quartel Delfim Ferreira.
*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também cronicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2012. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 18 de Outubro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.