A apresentar mensagens correspondentes à consulta Sport Clube da Régua ordenadas por relevância. Ordenar por data Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta Sport Clube da Régua ordenadas por relevância. Ordenar por data Mostrar todas as mensagens

sábado, 20 de abril de 2013

UM ALUNO MEU

Nota - Esta deliciosa crónica - e ainda muito actual no seu tema - a apelar ao sentimento grandioso de humanismo dos bombeiros foi publicada no jornal "Vida por Vida", órgão oficial da A. H. dos Bombeiros da Régua, em 6 de Maio de 1968. O seu autor, um grande professor do ensino primário, um talentoso jogador de futebol do Sport Clube da Régua, um homem bom, que foi um grande e anónimo benemérito da nossa instituição, faleceu, com 80 ano de idade, no dia 14 de Abril de 2013. Ao Professor Eurico, como caridosamente o tratávamos, esteja onde agora estiver, os bombeiros da Régua reconhecem a sua maior gratidão pela ajuda que lhes prestou em toda a sua vida. Que na Eternidade, a sua Alma descanse em Paz.
- José Alfredo Almeida, Abril de 2013
…é que eu gostava muito de ser bombeiro
Professor Eurico A. Patrício

Ao som da sirene, na sua expressão infantil, mas já denotadora de personalidade forte, costumo notar-lhe uma mudança brusca, como que se todo o seu íntimo fosse abalado por frenesim que lhe transmite vida, ânimo, movimento.

A atenção desvia-se-lhe e o seu olhar fita-se para além da janela, abstracto, longínquo, como se aquele som, que nos fere os ouvidos, o chocasse irresistivelmente, o obrigasse a fugir da sua carteira de escola e o atraísse, qual poderoso íman, para o som estridente que se prolonga para além do rio, galga montes e leva a má nova ares além.

Fica inquieto, longe de mim e dos companheiros tão próximos. Noto, porém, que no palmito de cara não há manifesto de medo. Não lhe vislumbro no olhar o estigma do receio, antes lhe brilha na expressão algo corajoso que me diz existir no íntimo daquele meu aluno uma necessidade de ir algures, ajudar, salvar, acudir a quem precisa.

Que sei eu? Nestes momentos tenho a convicção, e que prazer indefinível sinto nisso, que aquele rapaz nervoso, irrequieto, mas bom, há-de um dia ser um homem.

Não o será apenas no corpo, que este é mera e fugaz passagem cá por baixo. Há-de sê-lo em espírito, sentimentos, coragem e humanismo, altruísmo.

Há-de renunciar muitas vezes ao prazer, à comodidade e até à segurança pessoal, para correr ágil, apressado, aflito até, à chamada do toque aflitivo que não o convida à alegria nem ao prazer, mas sim, e ele compreende-o bem, ao sacrifício, à abnegação e até, quantas vezes, à dádiva da própria vida.

Frequenta a 3ª classe o miúdo. Não é um aluno brilhante, excepcional, mas não é todavia um mau aluno.

É regular, um pouco acima da mediania. As suas qualidades impõem-no aos condiscípulos que o admiram e respeitam. É  pontual, metódico, ordenado e está sempre pronto a resolver  qualquer dificuldade ao seu alcance e que um colega menos dotado lhe apresente para solução. É altruísta.

Não se envaidece com a superioridade manifesta em relação a uns, nem se amofina que outros mais dotados o excedam. É modesto.

Sente-se bem nas suas possibilidades, mas procura aperfeiçoar-se e progredir lutando teimosa e persistentemente para alcançar os seus objectivos. Gosto muito dos meus alunos. Mas, perdoe-se-me a franqueza por me sentir um pouco mais inclinado para este a que me venho referindo. As suas qualidades granjearam-lhe do seu professor um lugar de primazia e uma admiração particular.

No quartel dos nossos bombeiros soou há dias, forte como sempre, e a chamar os nossos briosos Soldados da Paz à sua humanitária missão, a atroadora sirene.

Como que pressentindo que algo de anormal se iria passar com o pequeno, observei-o dissimuladamente. A reacção habitual manifestou-se, mas desta vez mais forte, mais excitante e mais intimativa.

Eu, que quase adivinhava o que se passava no íntimo do Joaquim, é este o seu nome, para me certificar de que não me enganava, perguntei-lhe se estava doente, se se sentia mal, se queria ir até lá fora. Que não, que estava bem, dizia-me ele. Dizia-o de boca, que a expressão e o corpo traíam-no sem ele o poder evitar.

Os outros miravam-no atentos e pairava no ar uma expectativa que os mantinha presos ao seu companheiro.

Propus-me aproveitar o momento, que tão oportuno se deparava, e interroguei novamente o Joaquim.

- Que tens rapaz, pareces tão aflito?

- Nada sr. Professor, mas…é que eu gostava muito de ser bombeiro.

Que grande lição de amor ao próximo nos deu nesse dia o pequenito!

E eu, cuja missão é guiar crianças para no futuro serem homens na verdadeira acepção da palavra, senti que a escola pode e deve, ao mesmo tempo, indicar-lhes o espinhoso, mas tão nobre caminho que os eleva acima de todos os egoísmos: 

O caminho que conduz às fileiras dos Bombeiros.
- Peso da Régua, 6 de Maio de 1968, professor Eurico A. Patrício (in memoriam)

Clique na imagem para ampliar. Texto e imagem cedidos por Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Abril de 2013. Também publicado no jornal semanário regional "O ARRAIS" edição de 17 de Abril de 2013. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

RECORDAÇÕES MARCANTES: Coisas dos nossos bombeiros

Abeilard Vilela

É-me sempre difícil dizer "não" a qualquer pedido que me  seja feito por bem. É o caso presente, quando, como agora, o Dr. José Alfredo Almeida, esclarecido presidente dos nossos Bombeiros Voluntários, me solicita que escreva mais duas palavras sobre estes, com factos que guarde na minha memória.

Na realidade, aconteceu que a minha vivência na Régua, a minha terra, se registou apenas durante a  época em que fui um rapazote, já que, aos 24 anos de idade, zarpei para a Guiné, onde me mantive até meados de 1976.

Quer isto dizer que, realmente, não tenho muito conhecimento de factos ligados aos Bombeiros, ou melhor, vivi todo o prestígio que os bombeiros tinham naquele tempo, quando, então, mais me interessavam  os futebóis, com a fundação esforçada do Sport Clube, a construção do campo, as vitórias e as derrotas  (que doíam muito...).

Mas lembro-me de uma constante, que acontecia sempre, qual era o sobressalto de toda a população reguense, quando a sirene (antes, eram os sinos das igrejas...) atiravam para os ares uivantes apelos, clamando pela ajuda dos bombeiros e dos populares.

A cada reguense mais batia o coração, nessas alturas. E muita gente acorria aos locais dos acidentes, assim dando o seu apoio, nem sempre da forma mais recomendável, como terá acontecido numa certa noite de verão, quando um violento incêndio lavrou na margem esquerda do nosso rio, bem em frente da Estação da CP, num prédio de um abastado proprietário de Lamego. Muitos populares, atravessando a velha ponte de ferro sobre o rio, acorreram ao local, onde com toda a brevidade logo chegaram os nossos bombeiros.

Tenho bem presente na memória o esforço destes, que rapidamente estenderam centenas de metros de mangueiras, procurando fazer chegar a água do rio ao prédio que o incêndio devorava… O calor intenso que fazia naquela noite associou-se ao calor do fogo: os tonéis, que existiam nos baixos do prédio, carregados de  vinho fino com a dilatação dos gazes, estoiraram, e o vinho, em catadupa, passou a correr pela valeta da estrada, parecendo um riozinho.
As  gentes aí, perderam o tino: homens e mulheres (e até a miudagem!...) mergulharam as bocas no vinho que corria. Muitos populares passaram a ver o fogo como uma dádiva justa, mais do que uma infelicidade. E, lamentavelmente, alguns bombeiros juntaram-se aos populares, e,  talvez porque sendo jovens, não souberam resistir à pressão dos espectadores.

É certo, também, que entre  os presentes corriam versões que davam má nota aos méritos do proprietário, talvez as queixas habituais dos pobres contra os ricos...  Seja como for, destes anormais comportamentos resultou um oportuno inquérito, que, na altura teve o seu eco. Assim, mais uma vez se comprovando que  "sobre o melhor pano cai a nódoa"...

Outro acidente que recordo, foi o incêndio que destruiu as instalações da nossa Câmara Municipal e que teve dimensões espectaculares, apesar dos esforços denodados dos nossos bombeiros, que o combateram corajosamente.  Foi um incêndio que me emocionou profundamente e que muito me ajudou a dedicar a maior estima pelos nossos bombeiros.

De muitos, guardo ainda uma longínqua recordação, vendo vários em atitudes prestimosas de serviço, atitudes que eram para mim um exemplo cívico inestimável. Sendo eu, então, já menos menino, olhava  para os nossos bombeiros com todo o respeito, admirando-os, porquanto eles, sem esperanças em retribuições e vantagens, ajudavam, os outros, pelo simples amor ao próximo.

Lembro, ainda hoje, algumas figuras que todos estimavam: o Teófilo, o Claudino, o quarteleiro Zé Pinto, todos "paus para toda a colher", todos solidários nos esforços que faziam. E  lembro outras figuras prestigiosas e respeitáveis, vindas de todos os meios sociais.

Na altura, eu tinha outras preocupações, era muito novo, mas já me sentia uma reserva daqueles que estavam ao serviço dos seus semelhantes e a quem olhava com toda a atenção e estima. Tantos anos decorridos, mantenho viva a minha admiração. Mas as coisas correm na vida com a sequência que cada momento oferece. E põem-se com toda a naturalidade e inevitabilidade.

Afinal, a vida é assim mesmo, não é verdade?

Nota: O nosso bem haja a Abeilard Vilela! Agradeço-lhe comovidamente não só como Presidente da Direcção da Associação mas também como um reguense interessado pelas causas sociais. Nos seus 90 anos de vida, acredite que nos deixa o registo de memórias de momentos únicos e de mais três figuras inesquecíveis da Régua, como são os Clementes (o Teófilo e o Chefe Claudino) e o quarteleiro Zé Pinto, infelizmente já falecidos, do exemplo de cidadania activa e o muito que marcaram na história dos Bombeiros da Régua. – J. Alfredo Almeida, Peso da Régua, Julho de 2011. 
::  --  ::
RECORDAÇÕES MARCANTES: Coisas dos nossos bombeiros
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 21 de Julho de 2011
(Click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)

Colaboração do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Julho de 2011. Clique nas imagens acima para ampliar.

domingo, 24 de novembro de 2013

GERIR O NOSSO TEMPO…

As iniciativas designadas de “projetos que fazemos para a nossa vida” são abundantes, mas nem sempre realizáveis. No quadro lógico, o relacionamento assume maior relevo comparativamente aos elementos isolados e, se bem aplicado, reforça a amizade, e o trabalho produzido a bem de uma causa torna-se mais profícuo, reforçando a legitimidade daquilo para que somos eleitos.

Os projetos são intervenções que devem ser capazes de atestar coerência. Tal é conseguido se não se afastarem daquele que é, ou se assume que deva ser, o fundamento da sua existência, a concretização de um sonho que alimentamos desde criança.Tal situação estimula a seletividade dos nossos pensamentos e torna a avaliação das nossas iniciativas como um fator importante para o desenvolvimento das nossas capacidades.

Numa perspetiva prática para desenvolver um trabalho, não importa ter muitas ideias. Importa ter ideias e capacidade de concretização. Não chega saber-se aquilo que se quer. É fundamental transmitir isso aos outros.

Tive a felicidade de servir em várias causas. Eleito para a Direção do Sport Clube da Régua, desempenhei vários cargos durante anos. Fiz parte de algumas Comissões de Festas de N. S.ª do Socorro. Durante quatro anos exerci o cargo de vereador do Município da nossa terra, tendo, nessa altura, proposto que fosse dado o nome a uma rua do malogrado Bombeiro que morreu tragicamente no incêndio da Casa Viúva Lopes, João Figueiredo, mais conhecido por João dos Óculos, proposta que foi aprovada por unanimidade, estando essa rua localizada no Bairro de N. S.ª do Socorro. Atualmente faço parte da Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia. Por fim, quero falar daquilo que não foi a última causa que servi, mas aquela que me marcou mais – fazer parte da Direção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua durante cerca de quinze anos, sempre como primeiro secretário. E digo isto porque, no momento em que o Senhor Doutor Aires Querubim teve que deixar o cargo de Presidente da Direção por ter assumido o de Governador Civil, foi-me proposto pelos meus colegas que o substituísse, o que não aceitei por entender que as minhas aptidões estavam mais viradas para aquilo que desempenhava.

Participei e trabalhei na concretização de vários projetos, sendo que os de maior relevância foram o alargamento do Quartel e a construção do Bairro. Empenhei-me, não só eu, mas também todos os meus colegas de Direção, para que um sonho antigo que já vinha de alguns anos atrás – o bairro – se tornasse numa realidade. Não posso esquecer o momento em que, tendo o Senhor Doutor Aires Querubim sido nomeado para o cargo que exerceu brilhantemente como Governador Civil, lhe pedi para interceder junto do Fundo do Fomento da Habitação para o desbloqueamento do projeto, o que fez com todo o entusiasmo e competência e, assim, tornou realizável aquilo que já se vinha arrastando há longo tempo, anterior mesmo às Direções de que fiz parte. Foi com muita emoção que assinei o contrato para a sua construção.

Também um momento alto na minha passagem pela Direção dos nossos Bombeiros foi aquele em que, com muito entusiasmo e crença, consegui, juntamente com o saudoso Comandante Senhor Cardoso, como eu o tratava, trazer para a nossa terra a realização de um Congresso no ano do centenário da nossa Associação.

Foi um momento alto que vivi aquando da votação para a realização de tão importante e apetecido evento, já que havia outras Corporações interessadas, entre as quais a do Porto, mas foi escolhida a do Peso da Régua. Houve, na altura, quem duvidasse da nossa capacidade, pois era entendimento de alguns que a nossa terra não possuía estruturas capazes de albergar mais de um milhar de participantes, entre Bombeiros com farda e sem farda. É certo que na altura não possuíamos hotéis ou residenciais, tanto aqui como nas redondezas, capazes de albergar tamanho número de participantes.

Mas, como “querer é poder”, conseguimos, com a ajuda de muitos reguenses, que receberam em suas casas alguns elementos diretivos das corporações de quase todo o país, dos Seminários de Godim e de Poiares e de um salão da Real Companhia Velha, onde foram colocados colchões insufláveis que nos foram cedidos pelo Regimento Militar de Lamego, alojar centenas de Bombeiros que vieram no dia anterior ao do encerramento. Tivemos, ainda, a cedência do pavilhão, que na altura ainda estava em final de construção, da Escola João de Araújo Correia, onde foi servido um jantar a todos quantos nos honraram com a sua vinda e foram mais de um milhar.

A abertura do Congresso, que teve lugar no Cine-Teatro Avenida, foi presidida pelo então Ministro da Administração Interna, Eng.º  Eurico de Melo, e ao seu encerramento assistiu o Senhor Presidente da República, General Ramalho Eanes, com um almoço no salão Nobre da Casa do Douro.

Foram momentos que jamais esquecerei, aqueles que vivi naquele dia ao ver desfilar na minha terra centenas de Bombeiros e dezenas de viaturas!

Foi com muito orgulho que, em ambos os momentos, assumi as honras da Casa, por ausência inesperada do então Presidente da Direção, Senhor António Bernardo Pereira. Jamais esquecerei o que, em dada altura, me perguntou o então Presidenta da Liga dos Bombeiros Portugueses, Padre Vítor Melícias, se eu ainda sabia onde ficava o Norte e o Sul do País.

Estive presente em vários Congressos, deslocando-me sempre em representação da Direção e na companhia do nosso tão querido e saudoso Comandante, Carlos Cardoso dos Santos, tais como em Aveiro, Estoril, Guarda, Viana do Castelo e Viseu, mas, como é natural, aquele de que guardo as melhores recordações, é do nosso, feito com muito trabalho e sacrifício de toda a Direção, mas também de vários reguenses e de elementos de outras corporações do distrito que connosco tiveram a amabilidade de colaborar, excetuando-se a de Mesão Frio, que não concordou com a nossa eleição.

Não poderei esquecer, ainda, a colaboração que tivemos do nosso Município, presidido pelo saudoso Professor Renato Aguiar, do qual obtivemos grandes ajudas, inclusive a de fazer coincidir com o Congresso a realização da Feira do Douro, que tanto o abrilhantou.

Sempre me empenhei, com a colaboração de todos os meus colegas de Direção, entre os quais destaco o incansável trabalho desempenhado pelo nosso Tesoureiro, Senhor Heitor Gama, por fazer o melhor que sabia e podia para o engrandecimento e bem-estar dos nossos Bombeiros e da nossa Associação, citando a criação da Fanfarra e a realização das Festas de Natal. Para fazer face às despesas com tais realizações e ainda quando era necessário adquirir uma viatura, lá íamos percorrer todas as freguesias do nosso concelho, levando a cabo peditórios para a recolha de fundos. Sempre fomos recebidos com o maior carinho e boa-vontade, acompanhados pelo Corpo Ativo, que, juntamente com a Direção e o Comando, sempre quis colaborar.

Fui responsável pela saída dos últimos números do jornal Vida por Vida, interrompida pelos seus custos, que se tornaram difíceis de suportar pela Associação.

Por fim, recordo duas situações que vivi, nas quais desempenhei o trabalho de um bombeiro com farda. A primeira foi quando fomos chamados para a extinção de um fogo na Quinta do Castelo, em Medrões. Na falta do Comandante e de Bombeiros que se encontravam em serviço em Moura Morta, tive que conduzir uma viatura transportando para o local, com autorização do Comandante, material e alguns homens que foram desempenhando funções, aos quais se juntaram depois os seus colegas vindos do local onde se encontravam.

O outro foi quando trabalhava na secretaria desempenhando funções que me estavam adstritas. Atendi um telefonema em que era pedida uma ambulância para transportar um acidentado em estado grave em Vilarinho dos Freires. Havia viatura, mas faltava quem a conduzisse. Imediatamente interrompi o que estava a fazer para ir socorrer quem dos Bombeiros necessitava.

E foi assim que passei dos melhores momentos da minha vida, servindo com amor, carinho e abnegação as causas que abracei desinteressadamente.
- Manuel Montezinho. Actualizado em Novembro de 2013

Clique na imagem para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Agosto de 2013. Actualizado em Novembro de 2013. Texto e imagem cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

O SENHOR CARDIANO

Texto inédito escrito por Abeilard Vilela em Abril deste ano, oferecido pelo autor ao seu Amigo Dr. José Alfredo Almeida para publicação neste blogue. É lembrança de um homem que recordava a Régua e personalidades do seu tempo. Abeilard Vilela faleceu em 11 de Julho de 2013 em Coimbra.

O SENHOR CARDIANO

Meu Amigo:
Eu sabia que falhas como a que lhe vou passar a referir teriam que acontecer, quando me abalancei as escrevinhar duas coisas sobre o que vivi no meu tempo. Na verdade, eu deveria ter sido menos apressado em satisfazer-lhe o pedido que me fez, devendo, antes, ter acumulado metodicamente as que me iam saltando da memória, até que eu próprio viesse a chegar à conclusão que todo o historial já se esgotara. Assim como fiz, várias questões foram inevitavelmente omitidas.

Nesta oportunidade, penso que teria ficado bem incluir, no grupo das pessoas típicas do meu tempo, uma, que, realmente, nunca mais esqueci e que ainda retenho bem na minha mente. É a do senhor Cardiano, homem que me impressionava pela maneira como dificilmente andava, apoiado num grosseiro bengalão, a caminho da sua casa, próximo do asilo. Ele teria, por volta do ano de 1935 – ainda eu era rapazinho – talvez já mais de 60 anos, ao que me parecia. Era um homem baixote, pesado, arredondado de formas. Desfilava na rua, vestindo roupas de cotim, botas grossas, chapéu bem largo, que dava para ser utilizado nas vinhas, se preciso fosse. Do bolso das calças, do lado direito, dependurado e bem saído, salientava-se, vistosamente, um grande lenço tabaqueiro, de cor vermelha e muito em voga, dos que mais usavam os trabalhadores das vinhas.

Daquilo que eu julgava saber dele, tinha-o como um extraordinário e respeitável tanoeiro, que os proprietários do Douro procuravam afincadamente para o preparo do vasilhame. Julgo que se tornou, com o andar dos tempos, também um excelente provador, ouvido quando conveniente. De tanoeiro, passando a provador, breve passou a proprietário, juntando fortuna. De letras, julgo que pouco saberia, mas tinha revelado dotes suficientes que o tornariam respeitável.

No Colégio de Lamego, conheci e fui amigo de dois netos seus, que, creio-o, seguiram carreiras mais ilustres, para os lados do Porto. Nunca mais os vi. Mas, agora, que me lembro do seu avô, acho oportuno relembrá-lo, com o respeito devido a um homem de trabalho, talvez um homem merecedor de algum estudo, que poderia vir a descobrir que este senhor Cardiano foi um daqueles que ajudou, dentro da modéstia da sua figura, a engrandecer o nosso Douro, com a arte das suas mãos e com os dotes papilares da sua língua.

Creio que ficará bem, no relatos que fiz, o enquadramento deste raro trabalhador - de que já não existirá hoje qualquer referência. Guardo dele respeitosa memória. Nunca lhe dirigi uma palavra, mas, quando o via passar, eu bem o olhava com toda a minha curiosidade, até porque o “senhor Cardiano” era um homem diferente de todos os outros da nossa comunidade.
- Abeilard Vilela, Coimbra, 30 de Abril de 2013.
Clique na imagem para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Julho de 2013. 

terça-feira, 9 de julho de 2013

Recortes... Domingo de manhã !

Estádio Municipal Artur Vasques Osório, Peso da Régua, ‎domingo, ‎7‎ de ‎julho‎ de ‎2013:
Ensine o seu filho a gostar de Desporto, em vez de o ensinar a gostar apenas de ganhar.
(Anónimo)
No desporto, quem mais perde é quem não o pratica.
(Prof°. Haroldo Falcão)
Competir?... Sim. Mas, acima de tudo, a amizade.
(Inscrição encontrada nos ginásios da China)
Sobre o Sport Clube da Régua neste blogue.

Clique nas imagens para ampliar. Imagens de autoria de J. L. Gabão e editadas para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Julho de 2013. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O QUARTO ALUGADO


Entre a aparência exterior – aparência porque existe mais o que não se vê do que o que se vê – e a revisitação da memória, havia um mundo de ilusões mortas. Sabia que o regresso físico aos espaços e aos tempos antigos já não seria possível. Era um homem cheio de incertezas e, talvez, por isso, tímido. Vivia o contencioso da vida - essa consumição incoerente em que se julga já não perspectivar retornos -, uma desencantada impossibilidade de emendar os passos. Ficava-lhe o sorriso da anuência; perdida a hora da anulabilidade, restava-lhe permanecer no testemunho. Aprendera na leitura e nos exemplos esparsos que a suportação – o estado em que nos calamos na esterilidade dos conflitos de saldo - vai, cada vez mais, sustentando-nos, como se só depois da morte se alcançasse a rectidão e em vida a parcialidade. Em muitos dos seus dias sentia uma vertigem imensurável. Não era a trascâmara dum pessimismo representado, escondendo, desde a génese, uma metamorfose, antes a procura de uma resposta - solução que substituísse os tiques da sobrevivência. Onde esse ponto na terra em que a paz seja branca? Um sítio sem olhares de desforço e sem a aniquilação dos sentimentos? Um pequeno lugar em que nos sentemos e o fim seja sempre fim, quietude total, o silêncio seja o silêncio de si próprio, a vida e a morte uma mesma coisa na compreensão de um absoluto em que não há nada a definir? Um sítio sem ser e sem ter porque simplesmente não existe, apenas uma imanência que se (a)larga às solicitações? Desejava não afunilar os dias, a sumarização dos modos e dos pensamentos que, se não contrariada, despega os laços quotidianos. Lembrava-se dos sonhos da infância - esses vigores inocentes de contornos amarelecidos - como se viáveis na idade adulta. Não se esquecia, contudo, que as vidas nunca são cheias. Se, como alguém disse, «uma

vida plena é um sonho de adolescente realizado na idade madura», não ignorava que as impossibilidades também se definem porque são elas, afinal, que melhor sossegam as necessidades... O ansiado desusa-se quando saltam os anos, pois entre uma vontade e a sua concretização tem de haver uma coincidência temporal fora da qual nada se fundamenta, e a consciência move-se e modifica-se nos trilhos da matéria e da alma humanas. Como a lembrança.

Conheceu-o no Porto, num colégio de filhos da burguesia citadina que se estendia das Antas até à Foz, de missas solenes, aulas rigorosas e padres mal encarados que julgavam, assim, disciplinar o sangue novo. Atraíram-nos as sombras dos olhares e a timidez dos gestos. Descobriram-se com os mesmos gostos e as mesmas rebeldias. Não aceitavam o País sombrio como uma prisão, nem os seus mandantes como carcereiros. O sol parecia-lhes emprestado e eles queriam-no quite. Sabiam que a guerra os esperava e não estavam dispostos a faze-la pela teimosia de velhos ditadores com pêlos no coração. Juntaram carteiras e repartiram a repugnância. Nos tempos mortos, sem aulas, desciam Santa Catarina, até ao Tribunal de Polícia, para verem o juiz aplicar as leis que condenavam miseráveis que roubavam para enganar a fome. Sonhavam ser advogados duma justiça gratuita ou revolucionários duma sociedade igualitária. Detestavam tanto os dedos repletos de anéis  quanto os rostos desnutridos das crianças das ilhas, juravam acabar com as vaidades dos faustosos e com os velhos carregados de papelão. O combate era o mesmo: contra a ostentação e a pobreza que ambas desfaziam o equilíbrio. Naquele meio, enquanto os colegas discutiam Jaguares e Lotus, festas particulares e engates na Avenida Brasil, casas no Moledo e palácios em Gondarém, fumavam Marlboro comprado no contrabando de Leixões, vestiam as roupas das boutiques e propalavam as prosperidades paternas que iam de consultórios afamados de Sá da Bandeira a fábricas prestigiadas de Riba D’Ave, eles encolhiam a ruralidade como se transportassem uma rareza provocatória. Não se sentiam rejeitados, mas, anotados numa diferença de casta. Eram os parolos que falavam axim, tinham a visão da verdura primaveril ou da palidez outonal e não o cinzento disfarçado pelo comodato da aparência; comiam batatas e sabiam como se plantavam, tratavam e colhiam, não as esmagavam em puré de menor esforço.

Vivia num quarto alugado, numa esquina das ruas de Santa Catarina e Firmeza, onde almoçava e jantava na companhia dum casal descompensado: ela, alta, rosto cheio de ruge, busto disforme em relação às ancas sumidas como duas canas; ele, curvado, velho prematuro, faces de delta, lábios secos a chuparem sempre um português suave sem filtro, olhos suplicantes pelo fim do mês. Chamava-se Alzira, a matrona, e, até, o nome - sempre lhe pareceu isso - condizia com a sua vanglória. Ele, Francisco - que, como sabemos, é título de santo arrependido de doideiras antigas -, gemia-lhe (ou ruminava-lhe?), num despropósito manso, juras de amor sempre que ela abria a porta, pelo tarde, quase noite, e entrava, apressada, com cara de desplante, para servir uma omolete de fiambre com arroz aquecido, sobrado do almoço. João detestava-a toda: o corpo em funil, o rosto de mercearia, o desprezo com que tratava o marido. Tinha um ar marcial, impróprio de homem quanto mais de mulher, e via-se que fazia da casa um uso forçado. Só a pena que sentia pelo homem, queimando a reforma dos STCP em cigarros, o impedia de se mudar. Acrescia que o quarto tinha uma vista larga, estendida até à Batalha, de onde apreciava, nos declinares dos dias, aquela agitação de feira com os eléctricos a tilintarem para o Marquês. Também era rápida a derrotina até à Baixa, para, depois de, no Sport, matar a fome com um prego e um fino, se espraiar, Diário de Lisboa debaixo do braço, no jornal luminoso onde passavam as notícias que o ditador do Vimieiro autorizava.

A companhia do Artur – assim se chamava o colega e amigo - não era só o alheamento da rotina, mas, acima de tudo, a comunhão da utopia. Iam à Unicepe ou à Leitura folhear os livros que não podiam comprar, às sessões do Cine Clube, no Batalha, aos domingos de manhã, e reuniam-se na casa dele, em Latino Coelho, entusiasmando-se na leitura de Rosa Luxemburgo, a última edição da Seara Nova ou os Ensaios de António Sérgio. Ele vivia ali com a Mãe, vendo, algumas vezes, por lá, um sujeito alto, com ar de desocupado. Tinha maneiras de aproveitador, enquanto ela cara de berço limpo e afabilidade condizente. O Pai fora um confortado lavrador, na vizinhança de Alijó, até o coração parar na subida de um socalco. A Mãe, professora primária, cansada do luto e de aturar os filhos dos outros, ainda no viço da idade, comprou um andar no Porto depois de vender as vinhas, a casa e os lagares a um irmão que sempre as invejou. O tempo ia passando na contemplação do filho e no remoer de uma viuvez precoce. Senhora de modos colegiais e conhecimentos na escala dominante, não lhe foi difícil beneficiar de um lugar na Escola do Magistério, no cimo da Rampa da Escola Normal, a imperar nos serviços administrativos. A idade, curando feridas, habitua a vida, o que a levou a não se furtar aos ludíbrios da sedução como quem tolera um passatempo sem mais nada para fazer. O Senhor José – assim se chamava o intruso - era essa permissão não realizada, ficando sempre de mãos livres para rectificar um engano. D. Dulce – a Mãe de Artur - avançara na época e colhera da sua experiência no mundo a reserva afectiva e uma serpentária postura social. Os seus olhos tinham uma coloração esbatida de quem espera pouco dos outros. Dizia-lhe algumas vezes: «Sabes, João, estou cansada de dizer ao Artur para viver sem desesperos. Nunca sabemos quanto duramos nem como acabamos. Sois novos, eu também já fui, mas essa é a minha vantagem: poder falar do já conhecido.» Artur, que aliava a sensibilidade nascida à revolta adquirida, não suportava aquela deslealdade materna. Lembrava-se, ainda menino de bibe, do funeral do Pai, das lágrimas, dos soluços e das janelas da casa fechadas durante dias. Alguma coisa não batia certo no seu entendimento: tinha sido tudo fingido ou agora é que era verdade? Dedicava à Mãe aquele respeito que não admite discussões. Não lhe fugindo no desvelo, parecia-lhe, por vezes, que ela usava isso como recompensa chantagista para lhe travar os impulsos. As particularidades das vidas, todas as intimidades, conhecem-se pela confiança que a amizade conquista, como se, sem aquelas, esta não fosse mais do que um frivolidade. Longe de existências muito convividas, de faustos e simulados exageros que são, afinal, rápidos naufrágios em que poucos se prestam ao socorro, João e Artur nada ocultavam, tinham enterrado o egoísmo e alcançado o cimo da relação. Mais do que irmãos, em que tantas vezes se disfarçam invejas de posse ou ciúmes de ascendência, eram almas germinadas por semelhanças de carácter, sem despojos para contender. Todos os dias burilavam a confidência. Sabiam os nomes e as maneiras, os venífluos e as hematoses, as máculas e as santimónias de ambas as sagas familiares, discutiam-nas como se lhes fossem pertença e mútuos os ditames. Artur mastigava a inabilidade de não impedir a presença «daquele gajo»; ter que comer com ele, mesmo esporadicamente; sentir-lhe o cheiro e a peganhosice assassinava-lhe os dias. Libertava-se, ganhando uma euforia de reconquista materna, quando ele batia a porta e dizia «até amanhã!» com um modo de chupim repelente. Não trocavam, ele e a Mãe, uma palavra sobre José. Comportavam-se como se aquilo fosse uma ferida que acabaria por desaparecer. Era uma relação septicémica que um dia tinha que ser, forçosamente, sangrada. Ambos esperavam qual deles seria o primeiro a iniciá-la.

- Quando fores a ver, ponho-me a andar. Deixo a minha Mãe à vontade. Vou lavar pratos para Paris e fico pronto para todos os exames de Francês - disse-lhe, Artur, no feriado de uma aula, no Café Saban.

- Não deves abandonar o que te pertence - retorquiu João, para quem a França era uma miragem literária.

- A minha Mãe já não me pertence desde que o tipo entrou na minha casa. Não devia ter feito aquilo - acentuou, olhando-o bem de frente.

- Não te esqueças do que já te contei: a minha Mãe também ficou viúva aos vinte anos, nasci sem conhecer o meu Pai. Ás vezes, penso muito nisso, como reagiria se ela se voltasse a casar, mas, também, acho que não tenho o direito de a impedir.

- Mas a minha nem se casou... Não se atira ao lixo a memória dos que nos deram o ser – fazendo um gesto largo com os braços.

- Vamos dar uma volta, não falemos mais nesta merda.

- Mas falemos, Artur, os orfãos devem expulsar os seus lutos. Entre a vida que nos deram e a morte que os enterrou há uma recordação incurável.

- Tu não conheceste o teu Pai, é mais fácil a tua posição, nunca o viste.

- Parece-te. Tenho a saudade da sua imagem. Pelas fotografias vê-se que era um homem com olhos tristes como se já adivinhasse a sorte. Há pessoas assim, que nascem para o inevitável.

Lá fora, sob uma chuva miudinha feita choro de uma velhice, os carros subiam e desciam Sá da Bandeira. O Porto, no Inverno, é uma arca frigorífica desconsertada. As pessoas - carregadoras de heróicas paciências - arrastam-se na obrigação de prover o sustento, olhar de zelo e caminhar de funeral. Dentro do Saban, o cheiro a torradas e a café, o fumo dos cigarros, a voz avinhada - «Graiiixa!» - do abrilhanta sapatos, o olhar pasmado de velhos sorumbáticos, as larachas dos que não tinham aulas e, na cave, os ecos das carambolas do bilhar.

- Vais – te habituar à situação – retomou João, dando-lhe uma palmada no braço. - Ele trata-te bem?

- Mostra-se agradável. É um manhoso. No outro dia, à mesa, quando estávamos a jantar, disse que eu precisava de um relógio novo, que este não valia nada. Meteu-me nojo, aquilo soube-me a azeite rançoso, e respondi que o dele é que era uma cebola. A minha Mãe fez aquele sorriso do costume e tocou-me na perna. É o sinal para me calar. Ela pressente o conflito e desespera-se em adiá-lo, entendes? Como não quero feri-la, calo-me.

- Está na hora do Latim – lembrou João.

- E se não fôssemos? – insinuou Artur.

- Vamos, vamos, o Careca dá umas aulas porreiras. Além do mais, temos que treinar as declinações e pedir-lhe ajuda para a tradução daquele poema do Virgílio. Anima-te Artur! – rematou um João sorridente, bufando nas mãos e esfregando-as.

Eram, no entanto, as aulas de Literatura do Braga que mais os estimulava. Riam-se quando descrevia as tragédias ou as catilinárias Camilianas, e sonhavam ser poetas quando discutiam Cesário Verde. O Braga dava aulas no Particular porque se recusara a assinar o papel de renúncia às suas ideias, condição indispensável para

todos os que concorressem ao Ensino Público. Não escondia o seu rancor e, à tarde, depois do almoço, as faces avermelhadas, atirava inflamado: «Lembrem-se que aqueles figurantes do Alexandre Herculano têm um prazer sádico de esticar os que lhe aparecem sem serem do Liceu! Têm que estudar o dobro! Ouviram bem?! Não se riam que, depois, choram!» Fazia uns apontamentos, em fascículos, que todos compravam e lhes serviam para arredondar o ordenado. Modestamente vestido, sempre com o mesmo casaco puído nos cotovelos, o Braga era o ídolo.

Terminadas as aulas, com a noite a nascer, desciam Santa Catarina, mirando as raparigas, iam ao Rialto tomar um café, recapitulavam as lições, sentados nas poltronas, enquanto espreitavam as coxas das miúdas e a hora do jantar não chegava. Contornavam, depois, a Brasileira («Olha o António Pedro!»), subiam a 31 de Janeiro, passavam na Vadeca e ouviam uns discos (aparentando que iam comprar) do Clif Richard e dos Beatles. Nos Correios da Batalha pedia uma chamada para a Mãe, algumas vezes desistindo tal a espera, miravam as empregadas da Janota, espreitavam a montra da Latina, e repetiam Santa Catarina, agora subindo-a, para se

separarem no cruzamento da Rua Firmeza onde o Artur saltava para o eléctrico do Marquês. João voltava para o quarto, revendo a matéria dada até o mastodonte da Alzira o chamar para os restos do almoço. Em algumas tardes de sábado, bafejadas por amenidades (as de domingo repeliam-nas pela balbúrdia formigueira), iam até à Foz. Desciam à Praça e olhavam os títulos da Figueirinhas enquanto o eléctrico que, ao longo da Marginal, desenhava o mais belo trajecto do Porto, não vinha. Apeavam-se em frente da Doce Mar, atravessavam para o outro lado e espreguiçavam-se pela Avenida Brasil. A maresia despertava-os para as lembranças das férias. Subiam ao terraço do Homem do Leme, ladeavam o aquário Vasco da Gama, insinuavam-se pelos trilhos ajardinados, paralelos à avenida Montevideu, mirando os palacetes da burguesia bem sucedida, passavam o Castelo do Queijo, até se quedarem no parapeito em pedaços da praia Internacional. Repetiam o passeio ao contrário e, numa das esplanadas da beira-mar, pediam uma torrada e duas meias de leite. Deixavam-se estar a gozar a soalheira, de olhos fitos na modorra envolvente. Não havia dúvidas: a Foz era a diferença do Porto, a alta roda das mansões e apartamentos insonorizados como num condomínio asséptico. Os adultos confabulavam traições domésticas ou adornavam venturas profissionais, enquanto os filhos fumigavam em bailes de garagens. Os de fora demandavam o Orfeão nas imediações do Passeio Alegre ou a Aurora da Liberdade para os lados de Matosinhos, onde apalpavam criadas de servir ou peixeiras de ancas roliças. Muitos dos moradores distinguiam-se da casta restante, tinham os tiques elitistas da posição, vestiam, falsamente négligés, as melhores marcas das lojas de estilo e passeavam os caniches como objectos de luxo ou eram arrastados pelos podengos de guarda.

João e Artur gostavam de estar ali, pernas esticadas, a contemplar aquele bocejo pastoso, com a brisa, resvés à areia, a distende-los. A hora tinha sido adiantada, anoitecia mais tarde, o sol acariciava, já se viam alguns vendedores de picolés, língua da sogra e batatinha à inglesa. Apetecia aquele ambiente diferente, com raparigas de mini-saias atrevidas, os acompanhantes desejosos de conquistas para anunciar nas segundas-feiras de aulas. João apreciava o jogo da sedução, aquela troca de olhares como um flébil motim interior que distrai corações inconstantes. Elas sentiam-se cobiçadas, relevavam a sensualidade, tricotavam risinhos nervosos e, de través, observavam os efeitos.

- João, posso ir passar a Páscoa contigo? – perguntou Artur, assim sem mais nem menos, acordando-o da modorra.

Não lhe respondeu, num desvelo contemplativo da mesa em frente. Estava agarrado a uns olhos azuis, se não eram azuis assim os ambicionava... No meio da algazarra do grupo, ela parecia absorta, sem acompanhar as risadas, de olhar arrependido por estar ali; o seu rosto era um nórdico postal ilustrado; até o cabelo, deslizando pelos ombros, tinha a cor do caramelo.

- Joããão! – berrou Artur, fixando-o de lado. – Porra!, não podes ver uns joelhos!!!... – chacoteou.

Mas ele escutara a pergunta, ou melhor, pareceu entende-la no fundo do entorpecimento como um despropósito sem ligação com o momento.

- Que disseste?...

- Perguntei se não te importavas que eu fosse passar as férias da Páscoa contigo, lá em cima – fitando, distraído, um barco que, ao largo, aguardava vez em Leixões.

João fixou-o surpreso, não pela ideia, mas pelo significado: “Este tipo deve-se sentir mesmo mal! “.

- Mas qual é o problema? Só tenho é que avisar a minha Mãe. – E calou-se como se achasse tal pedido naturalíssimo.

Quando começou a esfriar, subiram as escadas para o passeio largo da avenida e esperaram o eléctrico. João resolveu recuperar a conversa.

- Queres, então, ir nas férias comigo, é?...

- A minha Mãe deu-me a entender que gostaria de passar uns dias em Lisboa. Temos lá uns primos, eu mal os conheço, moram para os lados da Parede, Oeiras ou coisa parecida, e o gajo vai com ela. Pediu-me para ir com eles, mas não me estás a imaginar nessa viagem, pois não?

- Não sei porquê. Atenção: não estou a insinuar que não quero que vás comigo, vê se entendes, mas a tua Mãe com certeza que gostaria que fosses.

- João... – balbuciou Artur, mirando-o de soslaio, envolto num sorriso de troça.

Meteram-se no eléctrico e, como não havia um único lugar vago, encostaram-se à vedação da plataforma.

- Não há meio de ultrapassares a situação, não é verdade meu cara de caraças? – folgou João. – Não consegues aceitar, pois não?

- Não. Às vezes, bem tento, esforço-me por me iludir, arranjo motivos para dar o caso como adquirido, mas é demasiado. Não te aborreço com estas merdas, pois não?

- Claro que não...

Pouco mais falaram durante o trajecto. Comeram um prego em prato no Estrela, subiram 31 de Janeiro e foram ver o Cowboy Insolente ao Águia Douro.

Estava um sol maravilhoso naquele começo de tarde dum sábado de Abril, quando tomaram o comboio de Barca de Alva. São Bento era uma câmara de eco das pressas feitas de correrias e despedidas. Os migradores do interior, que saíam de casa nas madrugadas de segunda-feira, voltavam para aliviarem os corpos de uma semana
a acartarem argamassa, arrumavam os embrulhos e os garrafões como posses suadas, fotografando os mais próximos, esquadrinhando-lhes as feições; os caixeiros dos concelhos confinantes que, na cidade grande, sonhavam com quinhões de comerciantes sem descendência, gastavam a brevidade do trajecto a lerem o Comércio; as vendedeiras de Contumil, roucas por uma manhã, às portas do Bolhão, a apregoarem as hortaliças e os frangos pica-na-areia, barafustavam por um espaço para as cestas com verdura e penas coladas.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.