sábado, 19 de maio de 2012

Recordações

António Guedes

No decorrer dos anos de 1910-1920, a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua debatia-se com a maior crise financeira de que havia memória, a ponto de haver alguém, pertencente ao Corpo Activo, que teve a infeliz lembrança de alvitrar que a Corporação fechasse as portas do seu quartel e entregasse à Câmara todo o material nele existente, para que esta tratasse de organizar, se assim o entendesse, um Corpo de Bombeiros Municipais.

Contra esta ideia todos nós, bombeiros, nos insurgimos, tendo o Chefe Camilo Guedes afirmado que esse assunto éramos nós que o havíamos de resolver se queríamos salvar a Corporação do fim inglório que a esperava.

No fim de cada mês havia de se pagar a renda de casa, a água, a luz, o ordenado do quarteleiro e as despesas de conservação do material. Com o produto das cotas dos sócios contribuintes não se podia contar, pois estes em pouco excediam o número de quarenta, motivo porque José Afonso de Oliveira Soares, Camilo Guedes, Joaquim de Sousa Pinto, Lourenço Medeiros, José Guedes Leite, Luís Maria da Cunha Ilharco, João da Silva Bonifácio, Joaquim Maria Leite, José Maria de Almeida e o autor destas linhas nos cotizávamos e, das nossas algibeiras, completávamos a importância necessária para liquidação das despesas mensais.

E o mais interessante é que, esse membro do Corpo Activo que sugeriu que se encerrassem as portas do nosso quartel, ao tempo situado no Largo dos Aviadores, nunca contribuiu com a mais insignificante quantia para o pagamento dessas despesas.

Foi convocado o Corpo Activo e Camilo Guedes escolheu, dentre os seus componentes, alguns deles, organizando um grupo cénico que ficou constituído por ele, por Lourenço Medeiros, José Guedes Leite, João da Silva Bonifácio e eu próprio, com a coadjuvação dos sócios contribuintes José Joaquim Pereira Santos, António da Silva Correia, Júlio Vilela, Luciano Tavares, Jaime Guedes, José Avelino e outros, cujos nomes não me ocorrem.

Luciano Tavares desempenharia as funções de contra-regra, José Afonso de Oliveira Soares e Jaime Guedes as de caracterizadores e José Avelino as de ponto.

Como colaboradora tínhamos a actriz Alda Verdial, do Porto, filha do actor Miguel Verdial, que desempenhou papel de relevo na revolta de 31 de Janeiro.

Começaram-se os ensaios por vezes interrompidos para se fazer uma “taininha”,  até que chegou o dia do primeiro espectáculo, com o drama “Jocelin, pescador de Baleias”. Casa à cunha e assistência selecta. No final da representação, que decorreu admiravelmente, foi um delírio de palmas e chamadas ao palco.

Em vista disso, ficou resolvido dar-se um espectáculo todos os meses, pois que os resultados obtidos com o primeiro superaram todas as nossas previsões. Assim, não seria necessário espartilhar-nos mensalmente, como há muito vinha sucedendo. Foram-se pagando antigas dívidas, e no nosso pobríssimo cofre, onde só existiam teias de aranha, começaram a juntar-se e a acumular-se os escudos, representados por reluzentes moedas em prata e lindas notas do Banco de Portugal.

O segundo espectáculo, com a peça “Condessa de Mercé”, constitui um novo sucesso, com a casa igualmente à cunha.

O terceiro espectáculo, então, com a peça “Coração e Dinheiro”, escrita e musicada pelo ilustre reguense José Joaquim Pereira Soares Santos, avô dos nossos prezados amigos José e Heitor Guichard, teve de ser repetido e rendeu-nos imenso dinheiro, com o qual se pagaram as restantes dívidas e de adquiriu uma outra bomba braçal, cuja falta se fazia sentir e à qual foi dado o nome “Pátria”.

Daí por diante, no dia da nossa festa – “28 de Novembro” – distribuíamos a cinquenta pobres do concelho um cobertor, uma boroa de milho e um quilo de arroz, de farinha e feijão.

Infelizmente, que a bomba adquirida, que estava já destinada afigurar num Museu a organizar bem como a bomba nº 1 da fundação da Corporação, foi ingloriamente passada a ferro de letra por dez reis de mel coado, por uma das últimas Direcções da Associação, e suponho sem o beneplácito da Assembleia Geral. Para figurar nesse museu tínhamos também a farda de gala, o chapéu emplumado e a espada do general Silveira, Conde de Amarante, que se distinguiu aquando das invasões francesas, a sineta que tocou a rebate quando das mesmas invasões e outros objectos mais.                                                                           
Ainda existirão?

Lá ficaram, e bem acautelados quando, depois de cerca de meio século de serviço activo, ingressei no quadro honorário - facto que o actual Comando talvez ignore…

O grupo cénico a que me refiro trabalhou durante vários anos e, devido a ele, - a esses saudosos companheiros que o constituíam e do qual só eu resto com vida, - é que a nossa velha e tão querida Corporação, orgulho da Régua, pôde singrar e prosperar.

Mais tarde, quando da pneumónica, montamos um improvisado hospital na casa onde hoje está o Asilo Vasques Osório, o qual ficou sob a direcção do médico da nossa Corporação, Sr. Dr. Luís António de Sousa.

Ainda não existiam ambulâncias na Corporação, e éramos nós, bombeiro, quem, com macas portáteis, íamos buscar os doentes nas suas casas, e os transportávamos para o hospital.

Há que frisar o facto de nenhum de nós se ter contagiado com aquela terrível doença, certamente devido à desinfecção a que éramos sujeitos sempre que chegávamos com qualquer doente. E recordo-me muito bem que, dessa desinfecção contava um «medicamento», um «antibiótico» muito agradável, que era o vinho do Porto. O primeiro gole seria para bochechar e deitar fora e o restante conteúdo do cálice (bem grande, por sinal), era para ingerir.

E de todos estes homens da velha guarda restou eu apenas, ralado de saudades pela falta daqueles bons companheiros os quais, com o meu pequeno contributo, conseguiram conquistar a auréola, a fama de eficiência e valentia que ainda hoje enaltecem os Voluntários da Régua.

Nota: Esta crónica (de recordações) de António Guedes, um dos bombeiros da velha guarda que se destacou como chefe e segundo comandante, foi publicada no jornal “O Arrais”, na edição de 20/06/1978. Nessa qualidade, o autor enaltece de uma forma carinhosa e apaixonada a instituição que serviu durante muitos anos, os antigos voluntários da Régua, que “conseguiram conquistar a auréola e a fama de eficiência e valentia.”. Ao mesmo tempo faz registo precioso de uma época história, os longínquos princípios do século XX, em que os bombeiros da Régua foram capazes de resistir a uma crise grave e a diversas adversidades vividas pela instituição. Estas palavras ajudam  a  conhecer melhor o  passado da associação, a  compreender o seu  presente e a perspectivar  com esperança o futuro dos bombeiros da Régua.

Clique nas imagens acima para ampliar. Sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Maio de 2012. Texto também publicado na edição do semanário regional "O Arrais" de 17 de Maio de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

EMOÇÕES TECIDAS NESTE LUGAR

O meu amigo José Alfredo Almeida pediu-me que escrevesse sobre os Bombeiros Voluntários da Régua, de imediato aceitei o seu convite. Reconheço agora que a minha atitude foi impulsiva e motivada por razões afetivas, pela minha paixão pela terra que me viu crescer e por esta imperiosa necessidade de invocar as raízes numa altura da vida em que já espalhamos ramos e perdemos folhas em tantos locais diferentes. Se tivesse sido mais ponderada teria, diplomaticamente, agradecido a distinção e declinado o convite. Perdi a oportunidade, nada mais me resta do que invocar as minhas memórias esparsas e cheias de fadas e duendes míticos para testemunhar o que os bombeiros foram para mim.

Em casa dos meus avós ouvíamos a sirene dos bombeiros, era um grito desesperado de socorro, atormentava o meu coração de criança e conduzia a minha imaginação para cenários terríveis de fogo e calor. Lá em casa todos se agitavam, “onde é o fogo? onde é o fogo?” A Maria descia a correr as escadas que nos ligavam à Régua, ia embrulhando o avental numa rodilha com que secava o suor que lhe escorria do rosto e regressava, alguns minutos depois, com a notícia, “o fogo é em Loureiro”. Nessa altura já a minha avó tinha telefonado para a irmã que vivia em Loureiro, assegurava-se de que estava tudo bem, que a família e os bens estavam a salvo do fatídico fogo. No entremeio das considerações da vida, lá vinha a invocação a São Marçal, que o seu cajado ajudasse os bombeiros a combater o fogo, mas também de Sta. Barbara que tinha influência sobre trovoadas e raios. Naquele tempo havia santos e auxílio divino para tudo, pelo menos em casa dos meus avós.

O quartel dos bombeiros era perto da minha escola, um pouco mais acima, logo a seguir à Alameda. Nas tardes de verão, quando paravam as chuvas e os dias começavam a crescer, ir à biblioteca dos bombeiros era uma boa desculpa para sair de casa. Recordo bem a entrada pela porta da enorme garagem onde se alinhavam os maravilhosos carros vermelhos e logo à direita uma porta menor para uma escada de madeira escura que conduzia à biblioteca. A escada era o corredor mágico para um mundo muito mais interessante do que aquele em que eu vivia, o mundo fantástico dos livros. Uma das melhores recordações da minha infância é o cheiro da biblioteca, daquele soalho de madeira corrida, das paredes cobertas de estantes fechadas por portas de janela que protegiam os livros, da mesa escura onde repousava uma caixa metálica cheia de pequenas fichas manuscritas com letra miúda. Daqueles objetos desprendia-se um odor de cera, de limpeza, de madeira e de tempo. Tenho procurado esse mesmo odor em outros locais onde descansam os livros, nunca mais voltei a encontra-lo. Devo ter lido todos os livros juvenis da biblioteca, depois passei para os clássicos da literatura portuguesa. Comecei por Júlio Diniz, mas muito rapidamente cheguei a Eça. Não foi na biblioteca dos bombeiros que formei o meu gosto literário, a coleção era conservadora e não contemplava autores que são hoje a minha principal referência cultural, mas foi lá que encontrei a inspiração para muitos sonhos, foi ali que começaram muitas viagens que só muito mais tarde eu viria a fazer.
Os bombeiros eram uma referência da vida pública, o comandante dos bombeiros uma figura prestigiada e respeitada. Com o dealbar da democracia o debate político local passava pelos bombeiros, pelos jogos de poder em torno das escolhas para a direção e dos equilíbrios que era necessário gerar entre o poder político, essencialmente autárquico e a sociedade, basicamente resumida à associação dos bombeiros e à misericórdia. Eu estava a entrar na adolescência e a minha consciência social estava em formação, queria um mundo melhor e mais justo, com mais oportunidades para todos, com mais oportunidades para mim, nascida mulher numa família de classe média, numa pequena cidade do interior e com uma curiosidade imensa e mal compreendida.

Foi por esses anos que mais uma catástrofe se abateu sobre a nossa cidade, as cheias foram devastadoras e muitas famílias ficaram desalojadas. Numa noite fria e chuvosa eu estava na rua a ajudar quem precisava, guardo comigo os olhos desesperados de uma mulher com uma criança ao colo que via ir com o rio todos os seus bens. Os bombeiros estavam lá, garantiam o sucesso das operações de salvamento, eram jovens de rostos fechados, galochas de borracha e uma força sobre-humana que se impunha à água e ao desespero dos homens.

Quando perdi um amigo e pela primeira vez o luto cobriu o meu coração foi atrás do carro dos bombeiros que, a caminhar, homenageei a sua curta vida e acalmei a minha dor.

Com o calor também a festa chegou à cidade. Estalou o fogo-de-artifício sobre o rio, fez-se a feira franca e as ruas apinharam-se de gente para ver a Senhora passar. Engalanaram-se as janelas e as varandas e, a abrir a procissão, vinha a fanfarra dos bombeiros. O meu olhar ficava preso nas botas brancas das raparigas e o meu coração batia ao ritmo do som das caixas dos rapazes. A fanfarra dos bombeiros fazia despertar em mim o mistério do divino que, andor a andor, a procissão ia revelando até ao momento crucial em que perante Nossa Senhora do Socorro me ajoelhava e orava.
Há 30 anos que não vivo na Régua, tenho sobre a cidade e as suas gentes o olhar de quem “está fora”, raramente partilho os seus dramas e alegrias, mas o que levo comigo onde quer que eu vá são as emoções tecidas neste lugar, onde guardo as minhas raízes.
- Cristina Paula Baptista

Clique nas imagens acima para ampliar. Sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Maio de 2012. Texto também publicado na edição do semanário regional "O Arrais" de 10 de Maio de 2012 e no blogue "Nada Temer". Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

terça-feira, 15 de maio de 2012

O DOURO E A RÉGUA EM ABRIL/MAIO DE 2012

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Imagens de autoria de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Abril/Maio de 2012. Este post pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.  

Recortes: Régua, antes... Régua, depois...

Clique na imagem para ampliar. Imagem original também publicada no jornal semanário "O Arrais". Sugestão de JASA (José Alfredo Almeida) para este blogue. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Abril de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. Só permitida a cópia, reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.
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