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sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O Jardim dos primeiros amores

Imagem Foto Baía / "Pátria Pequena"

Cada um de nós tinha um segredo guardado atrás de um qualquer banco daquele Jardim. Todos nós atravessávamos a rua, discretos, contornávamos a frente do jardim, aquela que se abria ampla para o Paço do Munícipo e, subindo a rua, procurávamos a pequena vereda que descia em direcção à parte de trás do coreto. Em tempos, nos idos anos de meados do século passado, por esse mesmo caminho desciam, todos os Domingos, os músicos da banda que animava a saída da missa e enchia de som e alegria as manhãs quentes e ensolaradas. Quando nós começamos a procurar a paz, a sombra e a magia do Jardim há muito que este tinha perdido a música dominical. O coreto envelhecia tristemente, as tábuas do palco, ora húmidas, ora ressequidas, não eram mais pisadas pelo aprumo dos músicos, apodreciam esquecidas da beleza do som. A cobertura já não o protegia das chuvas e o coreto acumulava a tristeza do abandono.

O Jardim não tinha sido a nossa primeira escolha. Tínhamos tentado os bancos de cimento no passeio junto ao Douro mas o rio, apesar de belo e mágico, era, também, quente e demasiado imponente para ser confortável.  Depois seguimos para outros locais, o Adro da Capela, a Alameda, mas o Jardim tinha outro encanto e o coreto atirava a nossa imaginação para o passado. Ninguém decidiu, não se discutiu qual o seria o nosso ponto de encontro apenas deixamos que o Jadim tomasse conta de nós e guardasse o segredo da nossa amizade naquele que seria o último verão da nossa adolescência.

As tardes quentes eram passadas entre a descoberta dos poemas que os nossos corações plenos de emoção nos ofereciam e os risos fáceis das nossas vidas triviais. Cada um tinha os seus sonhos, eu queria viajar e conquistar o mundo, mas a Joana só queria conquistar o coração do Mário. O Mário jogava xadrez e lia banda desenhada. Eu estava apaixonada pelo Paulo, mas o Paulo estava mais interessado na sua viola. O João confessava o seu amor pela prima do  Alfredo que vivia na Figueira da Foz e passara connosco as duas primeiras semanas de férias. Nenhum de nós estava feliz com a sua própria existência, partilhávamos as nossas angústias e ensaiávamos as dores dos adultos. Numa noite desse verão o Paulo levou a sua viola para o Jardim e juntou o seu som às nossas vozes. Em breve todos partiríamos, o tempo das vindimas estava a chegar ... Um novo começo para muitos, o fim da inocência para nós, os amigos do Jardim.
- Cristina Paula Baptista  in o JARDIM - Blogue NADA TEMER.
Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Janeiro de 2014. Permitida a copia, reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a devida citação da origem/autores.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

EMOÇÕES TECIDAS NESTE LUGAR

O meu amigo José Alfredo Almeida pediu-me que escrevesse sobre os Bombeiros Voluntários da Régua, de imediato aceitei o seu convite. Reconheço agora que a minha atitude foi impulsiva e motivada por razões afetivas, pela minha paixão pela terra que me viu crescer e por esta imperiosa necessidade de invocar as raízes numa altura da vida em que já espalhamos ramos e perdemos folhas em tantos locais diferentes. Se tivesse sido mais ponderada teria, diplomaticamente, agradecido a distinção e declinado o convite. Perdi a oportunidade, nada mais me resta do que invocar as minhas memórias esparsas e cheias de fadas e duendes míticos para testemunhar o que os bombeiros foram para mim.

Em casa dos meus avós ouvíamos a sirene dos bombeiros, era um grito desesperado de socorro, atormentava o meu coração de criança e conduzia a minha imaginação para cenários terríveis de fogo e calor. Lá em casa todos se agitavam, “onde é o fogo? onde é o fogo?” A Maria descia a correr as escadas que nos ligavam à Régua, ia embrulhando o avental numa rodilha com que secava o suor que lhe escorria do rosto e regressava, alguns minutos depois, com a notícia, “o fogo é em Loureiro”. Nessa altura já a minha avó tinha telefonado para a irmã que vivia em Loureiro, assegurava-se de que estava tudo bem, que a família e os bens estavam a salvo do fatídico fogo. No entremeio das considerações da vida, lá vinha a invocação a São Marçal, que o seu cajado ajudasse os bombeiros a combater o fogo, mas também de Sta. Barbara que tinha influência sobre trovoadas e raios. Naquele tempo havia santos e auxílio divino para tudo, pelo menos em casa dos meus avós.

O quartel dos bombeiros era perto da minha escola, um pouco mais acima, logo a seguir à Alameda. Nas tardes de verão, quando paravam as chuvas e os dias começavam a crescer, ir à biblioteca dos bombeiros era uma boa desculpa para sair de casa. Recordo bem a entrada pela porta da enorme garagem onde se alinhavam os maravilhosos carros vermelhos e logo à direita uma porta menor para uma escada de madeira escura que conduzia à biblioteca. A escada era o corredor mágico para um mundo muito mais interessante do que aquele em que eu vivia, o mundo fantástico dos livros. Uma das melhores recordações da minha infância é o cheiro da biblioteca, daquele soalho de madeira corrida, das paredes cobertas de estantes fechadas por portas de janela que protegiam os livros, da mesa escura onde repousava uma caixa metálica cheia de pequenas fichas manuscritas com letra miúda. Daqueles objetos desprendia-se um odor de cera, de limpeza, de madeira e de tempo. Tenho procurado esse mesmo odor em outros locais onde descansam os livros, nunca mais voltei a encontra-lo. Devo ter lido todos os livros juvenis da biblioteca, depois passei para os clássicos da literatura portuguesa. Comecei por Júlio Diniz, mas muito rapidamente cheguei a Eça. Não foi na biblioteca dos bombeiros que formei o meu gosto literário, a coleção era conservadora e não contemplava autores que são hoje a minha principal referência cultural, mas foi lá que encontrei a inspiração para muitos sonhos, foi ali que começaram muitas viagens que só muito mais tarde eu viria a fazer.
Os bombeiros eram uma referência da vida pública, o comandante dos bombeiros uma figura prestigiada e respeitada. Com o dealbar da democracia o debate político local passava pelos bombeiros, pelos jogos de poder em torno das escolhas para a direção e dos equilíbrios que era necessário gerar entre o poder político, essencialmente autárquico e a sociedade, basicamente resumida à associação dos bombeiros e à misericórdia. Eu estava a entrar na adolescência e a minha consciência social estava em formação, queria um mundo melhor e mais justo, com mais oportunidades para todos, com mais oportunidades para mim, nascida mulher numa família de classe média, numa pequena cidade do interior e com uma curiosidade imensa e mal compreendida.

Foi por esses anos que mais uma catástrofe se abateu sobre a nossa cidade, as cheias foram devastadoras e muitas famílias ficaram desalojadas. Numa noite fria e chuvosa eu estava na rua a ajudar quem precisava, guardo comigo os olhos desesperados de uma mulher com uma criança ao colo que via ir com o rio todos os seus bens. Os bombeiros estavam lá, garantiam o sucesso das operações de salvamento, eram jovens de rostos fechados, galochas de borracha e uma força sobre-humana que se impunha à água e ao desespero dos homens.

Quando perdi um amigo e pela primeira vez o luto cobriu o meu coração foi atrás do carro dos bombeiros que, a caminhar, homenageei a sua curta vida e acalmei a minha dor.

Com o calor também a festa chegou à cidade. Estalou o fogo-de-artifício sobre o rio, fez-se a feira franca e as ruas apinharam-se de gente para ver a Senhora passar. Engalanaram-se as janelas e as varandas e, a abrir a procissão, vinha a fanfarra dos bombeiros. O meu olhar ficava preso nas botas brancas das raparigas e o meu coração batia ao ritmo do som das caixas dos rapazes. A fanfarra dos bombeiros fazia despertar em mim o mistério do divino que, andor a andor, a procissão ia revelando até ao momento crucial em que perante Nossa Senhora do Socorro me ajoelhava e orava.
Há 30 anos que não vivo na Régua, tenho sobre a cidade e as suas gentes o olhar de quem “está fora”, raramente partilho os seus dramas e alegrias, mas o que levo comigo onde quer que eu vá são as emoções tecidas neste lugar, onde guardo as minhas raízes.
- Cristina Paula Baptista

Clique nas imagens acima para ampliar. Sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Maio de 2012. Texto também publicado na edição do semanário regional "O Arrais" de 10 de Maio de 2012 e no blogue "Nada Temer". Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.