António Guedes
No
decorrer dos anos de 1910-1920, a Associação Humanitária dos Bombeiros
Voluntários do Peso da Régua debatia-se com a maior crise financeira de que
havia memória, a ponto de haver alguém, pertencente ao Corpo Activo, que teve a
infeliz lembrança de alvitrar que a Corporação fechasse as portas do seu
quartel e entregasse à Câmara todo o material nele existente, para que esta
tratasse de organizar, se assim o entendesse, um Corpo de Bombeiros Municipais.
Contra
esta ideia todos nós, bombeiros, nos insurgimos, tendo o Chefe Camilo Guedes
afirmado que esse assunto éramos nós que o havíamos de resolver se queríamos
salvar a Corporação do fim inglório que a esperava.
No
fim de cada mês havia de se pagar a renda de casa, a água, a luz, o ordenado do
quarteleiro e as despesas de conservação do material. Com o produto das cotas
dos sócios contribuintes não se podia contar, pois estes em pouco excediam o
número de quarenta, motivo porque José Afonso de Oliveira Soares, Camilo
Guedes, Joaquim de Sousa Pinto, Lourenço Medeiros, José Guedes Leite, Luís
Maria da Cunha Ilharco, João da Silva Bonifácio, Joaquim Maria Leite, José
Maria de Almeida e o autor destas linhas nos cotizávamos e, das nossas
algibeiras, completávamos a importância necessária para liquidação das despesas
mensais.
E
o mais interessante é que, esse membro do Corpo Activo que sugeriu que se
encerrassem as portas do nosso quartel, ao tempo situado no Largo dos
Aviadores, nunca contribuiu com a mais insignificante quantia para o pagamento
dessas despesas.
Foi
convocado o Corpo Activo e Camilo Guedes escolheu, dentre os seus componentes,
alguns deles, organizando um grupo cénico que ficou constituído por ele, por
Lourenço Medeiros, José Guedes Leite, João da Silva Bonifácio e eu próprio, com
a coadjuvação dos sócios contribuintes José Joaquim Pereira Santos, António da
Silva Correia, Júlio Vilela, Luciano Tavares, Jaime Guedes, José Avelino e outros,
cujos nomes não me ocorrem.
Luciano
Tavares desempenharia as funções de contra-regra, José Afonso de Oliveira
Soares e Jaime Guedes as de caracterizadores e José Avelino as de ponto.
Como
colaboradora tínhamos a actriz Alda Verdial, do Porto, filha do actor Miguel
Verdial, que desempenhou papel de relevo na revolta de 31 de Janeiro.
Começaram-se
os ensaios por vezes interrompidos para se fazer uma “taininha”, até que chegou o dia do primeiro espectáculo,
com o drama “Jocelin, pescador de Baleias”. Casa à cunha e assistência selecta.
No final da representação, que decorreu admiravelmente, foi um delírio de
palmas e chamadas ao palco.
Em
vista disso, ficou resolvido dar-se um espectáculo todos os meses, pois que os
resultados obtidos com o primeiro superaram todas as nossas previsões. Assim,
não seria necessário espartilhar-nos mensalmente, como há muito vinha
sucedendo. Foram-se pagando antigas dívidas, e no nosso pobríssimo cofre, onde
só existiam teias de aranha, começaram a juntar-se e a acumular-se os escudos,
representados por reluzentes moedas em prata e lindas notas do Banco de
Portugal.
O
segundo espectáculo, com a peça “Condessa de Mercé”, constitui um novo sucesso,
com a casa igualmente à cunha.
O
terceiro espectáculo, então, com a peça “Coração e Dinheiro”, escrita e
musicada pelo ilustre reguense José Joaquim Pereira Soares Santos, avô dos
nossos prezados amigos José e Heitor Guichard, teve de ser repetido e
rendeu-nos imenso dinheiro, com o qual se pagaram as restantes dívidas e de
adquiriu uma outra bomba braçal, cuja falta se fazia sentir e à qual foi dado o
nome “Pátria”.
Daí
por diante, no dia da nossa festa – “28 de Novembro” – distribuíamos a
cinquenta pobres do concelho um cobertor, uma boroa de milho e um quilo de
arroz, de farinha e feijão.
Infelizmente,
que a bomba adquirida, que estava já destinada afigurar num Museu a organizar
bem como a bomba nº 1 da fundação da Corporação, foi ingloriamente passada a
ferro de letra por dez reis de mel coado, por uma das últimas Direcções da
Associação, e suponho sem o beneplácito da Assembleia Geral. Para figurar nesse
museu tínhamos também a farda de gala, o chapéu emplumado e a espada do general
Silveira, Conde de Amarante, que se distinguiu aquando das invasões francesas,
a sineta que tocou a rebate quando das mesmas invasões e outros objectos mais.
Ainda existirão?
Lá
ficaram, e bem acautelados quando, depois de cerca de meio século de serviço
activo, ingressei no quadro honorário - facto que o actual Comando talvez
ignore…
O
grupo cénico a que me refiro trabalhou durante vários anos e, devido a ele, - a
esses saudosos companheiros que o constituíam e do qual só eu resto com vida, -
é que a nossa velha e tão querida Corporação, orgulho da Régua, pôde singrar e
prosperar.
Mais
tarde, quando da pneumónica, montamos um improvisado hospital na casa onde hoje
está o Asilo Vasques Osório, o qual ficou sob a direcção do médico da nossa
Corporação, Sr. Dr. Luís António de Sousa.
Ainda
não existiam ambulâncias na Corporação, e éramos nós, bombeiro, quem, com macas
portáteis, íamos buscar os doentes nas suas casas, e os transportávamos para o
hospital.
Há
que frisar o facto de nenhum de nós se ter contagiado com aquela terrível
doença, certamente devido à desinfecção a que éramos sujeitos sempre que
chegávamos com qualquer doente. E recordo-me muito bem que, dessa desinfecção
contava um «medicamento», um «antibiótico» muito agradável, que era o vinho do
Porto. O primeiro gole seria para bochechar e deitar fora e o restante conteúdo
do cálice (bem grande, por sinal), era para ingerir.
E
de todos estes homens da velha guarda restou eu apenas, ralado de saudades pela
falta daqueles bons companheiros os quais, com o meu pequeno contributo,
conseguiram conquistar a auréola, a fama de eficiência e valentia que ainda
hoje enaltecem os Voluntários da Régua.
Nota: Esta crónica (de recordações)
de António Guedes, um dos bombeiros da velha guarda que se destacou como chefe
e segundo comandante, foi publicada no jornal “O Arrais”, na edição de 20/06/1978.
Nessa qualidade, o autor enaltece de uma forma carinhosa e apaixonada a
instituição que serviu durante muitos anos, os antigos voluntários da Régua,
que “conseguiram conquistar a auréola e a fama de eficiência e valentia.”. Ao
mesmo tempo faz registo precioso de uma época história, os longínquos
princípios do século XX, em que os bombeiros da Régua foram capazes de resistir
a uma crise grave e a diversas adversidades vividas pela instituição. Estas
palavras ajudam a conhecer melhor o passado da associação, a compreender o seu presente e a perspectivar com esperança o futuro dos bombeiros da Régua.
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