O meu amigo José Alfredo Almeida pediu-me que
escrevesse sobre os Bombeiros Voluntários da Régua, de imediato aceitei o seu
convite. Reconheço agora que a minha atitude foi impulsiva e motivada por
razões afetivas, pela minha paixão pela terra que me viu crescer e por esta
imperiosa necessidade de invocar as raízes numa altura da vida em que já
espalhamos ramos e perdemos folhas em tantos locais diferentes. Se tivesse sido
mais ponderada teria, diplomaticamente, agradecido a distinção e declinado o
convite. Perdi a oportunidade, nada mais me resta do que invocar as minhas
memórias esparsas e cheias de fadas e duendes míticos para testemunhar o que os
bombeiros foram para mim.
Em casa dos meus avós ouvíamos a sirene dos bombeiros,
era um grito desesperado de socorro, atormentava o meu coração de criança e
conduzia a minha imaginação para cenários terríveis de fogo e calor. Lá em casa
todos se agitavam, “onde é o fogo? onde é o fogo?” A Maria descia a correr as
escadas que nos ligavam à Régua, ia embrulhando o avental numa rodilha com que
secava o suor que lhe escorria do rosto e regressava, alguns minutos depois,
com a notícia, “o fogo é em Loureiro”. Nessa altura já a minha avó tinha
telefonado para a irmã que vivia em Loureiro, assegurava-se de que estava tudo
bem, que a família e os bens estavam a salvo do fatídico fogo. No entremeio das
considerações da vida, lá vinha a invocação a São Marçal, que o seu cajado
ajudasse os bombeiros a combater o fogo, mas também de Sta. Barbara que tinha
influência sobre trovoadas e raios. Naquele tempo havia santos e auxílio divino
para tudo, pelo menos em casa dos meus avós.
O quartel dos bombeiros era perto da minha escola, um
pouco mais acima, logo a seguir à Alameda. Nas tardes de verão, quando paravam
as chuvas e os dias começavam a crescer, ir à biblioteca dos bombeiros era uma
boa desculpa para sair de casa. Recordo bem a entrada pela porta da enorme
garagem onde se alinhavam os maravilhosos carros vermelhos e logo à direita uma
porta menor para uma escada de madeira escura que conduzia à biblioteca. A
escada era o corredor mágico para um mundo muito mais interessante do que
aquele em que eu vivia, o mundo fantástico dos livros. Uma das melhores
recordações da minha infância é o cheiro da biblioteca, daquele soalho de
madeira corrida, das paredes cobertas de estantes fechadas por portas de janela
que protegiam os livros, da mesa escura onde repousava uma caixa metálica cheia
de pequenas fichas manuscritas com letra miúda. Daqueles objetos desprendia-se
um odor de cera, de limpeza, de madeira e de tempo. Tenho procurado esse mesmo
odor em outros locais onde descansam os livros, nunca mais voltei a encontra-lo.
Devo ter lido todos os livros juvenis da biblioteca, depois passei para os
clássicos da literatura portuguesa. Comecei por Júlio Diniz, mas muito
rapidamente cheguei a Eça. Não foi na biblioteca dos bombeiros que formei o meu
gosto literário, a coleção era conservadora e não contemplava autores que são
hoje a minha principal referência cultural, mas foi lá que encontrei a
inspiração para muitos sonhos, foi ali que começaram muitas viagens que só
muito mais tarde eu viria a fazer.
Os bombeiros eram uma referência da vida pública, o
comandante dos bombeiros uma figura prestigiada e respeitada. Com o dealbar da
democracia o debate político local passava pelos bombeiros, pelos jogos de
poder em torno das escolhas para a direção e dos equilíbrios que era necessário
gerar entre o poder político, essencialmente autárquico e a sociedade,
basicamente resumida à associação dos bombeiros e à misericórdia. Eu estava a
entrar na adolescência e a minha consciência social estava em formação, queria
um mundo melhor e mais justo, com mais oportunidades para todos, com mais
oportunidades para mim, nascida mulher numa família de classe média, numa
pequena cidade do interior e com uma curiosidade imensa e mal compreendida.
Foi por esses anos que mais uma catástrofe se abateu
sobre a nossa cidade, as cheias foram devastadoras e muitas famílias ficaram
desalojadas. Numa noite fria e chuvosa eu estava na rua a ajudar quem
precisava, guardo comigo os olhos desesperados de uma mulher com uma criança ao
colo que via ir com o rio todos os seus bens. Os bombeiros estavam lá, garantiam
o sucesso das operações de salvamento, eram jovens de rostos fechados, galochas
de borracha e uma força sobre-humana que se impunha à água e ao desespero dos
homens.
Quando perdi um amigo e pela primeira vez o luto
cobriu o meu coração foi atrás do carro dos bombeiros que, a caminhar,
homenageei a sua curta vida e acalmei a minha dor.
Com o calor também a festa chegou à cidade. Estalou o
fogo-de-artifício sobre o rio, fez-se a feira franca e as ruas apinharam-se de
gente para ver a Senhora passar. Engalanaram-se as janelas e as varandas e, a
abrir a procissão, vinha a fanfarra dos bombeiros. O meu olhar ficava preso nas
botas brancas das raparigas e o meu coração batia ao ritmo do som das caixas dos
rapazes. A fanfarra dos bombeiros fazia despertar em mim o mistério do divino
que, andor a andor, a procissão ia revelando até ao momento crucial em que
perante Nossa Senhora do Socorro me ajoelhava e orava.
Há 30 anos que não vivo na Régua, tenho sobre a cidade
e as suas gentes o olhar de quem “está fora”, raramente partilho os seus dramas
e alegrias, mas o que levo comigo onde quer que eu vá são as emoções tecidas
neste lugar, onde guardo as minhas raízes.
- Cristina Paula Baptista
- Cristina Paula Baptista
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