quinta-feira, 9 de junho de 2011

Elogio da Palmatória

Camilo de Araújo Correia

A minha escola primária era na Rua das Vareiras, num prédio que veio a ser quartel da Guarda Republicana e hoje se encontra em franca degradação.

As salas tinham pouca luz, os corredores e as escadas eram escuras de meter medo aos menos afoitos. O recreio era na rua até à Meia Laranja sobranceira ao rio. Ainda hoje a algazarra que fazíamos, quando nos soltavam do velho casarão. Se o intervalo era maior, descíamos a rampa até ao cais, onde a faina do rio nos enchia de curiosidade. Chegavam carros de bois e camionetas com as pipas de vinho fino que os rabelos haviam de levar até ao Porto. Havia barqueiros a cozinhar e barqueiros a correr como levandiscas, no embarque e arrumo das pipas. Na veemência das ordens, cruzavam-se no ar tremendos palavrões. Aprendi-os antes da tabuada.

Guardo memória de quatro professores, arrumados dois a dois. De um lado, a D. Silvina, franzina, bonitinha e bondosa e o senhor Viseu, alto, magro e distraidíssimo. Também por ele não vinha mal ao mundo. Do outro, faziam parte o senhor Maduro Roxo e o Senhor Morais, pouco dado ao sorriso e muito ligeiro no uso da palmatória.

Fui aluno algum tempo da D. Silvina. Mudei depois para o senhor Morais. Foi uma mudança do céu para o inferno… D. Silvina raramente usava a palmatória e, quando lhe pegava, parecia sofrer mais que o aluno. Santa senhora!

Já o senhor Morais pegava na vara e na palmatória por dá cá aquela palha. Pois sim, mas saímos das suas mãos, prolongadas na vara e na palmatória, a saber tudo o que, naquele tempo, se exigia no exame da 4ª classe. Caligrafia, ortografia, aritmética, gramática, redacção, história, geografia, tudo na ponta da língua. Não que… a cada erro ou ignorância, correspondia uma palmatoada que tanto podia ser dada pelo professor como pelo companheiro que nos tivesse emendado.

Apesar de tão férrea disciplina nenhum aluno andava aterrorizado. Todos gostávamos muito do senhor Morais. Ele era tão bom professor que os castigos se aceitavam como naturais. Muitas vezes o íamos esperar pelo caminho da beira do rio, até à sua casinha onde morava no Olival Basto. A casinha lá está a lembrá-lo como se não tivesse passado tempo algum. Às vezes a lição começava no caminho. A lição e os cascudos…

Hoje, a palmatória, a vara e os cascudos estão proibidos por lei. Ai do professor que dê o mais leve tabefe no aluno mais indisciplinado e cabulão. Os pais aparecem logo na escola a protestar e a participar. Não há nada que salve o professor que apenas quis educar e ensinar por um método que vem do princípio do mundo a dar resultado.

Nota: Esta crónica foi publicada inicialmente no boletim “Alto Douro Cultural” e mais tarde no  jornal “O Arrais”. O prédio citado "em degradação" pelo saudoso Dr. Camilo, está atualmente recuperado, como se nota na fotografia recente e acima de Miguel Guedes.

- Colaboração de texto e imagem do Dr. José Alfredo Almeida, Miguel Guedes e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro". Clique na imagem acima para ampliar.

Recortes - RÉGUA, antes... RÉGUA, depois...

(Clique na imagem para ampliar)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Uma velha Estante


João de Araújo Correia

Quando o quartel dos bombeiros funcionou modestamente numa casa situada no actual Largo dos Aviadores, frequentei-lhe as salas recreativas com o meu pai - era eu rapazinho.

Na sala dos jogos, inofensivos jogos de cartas, dominó e quino, lembro-me de ver, encostada a uma parede, uma alta e larga estante de madeira rica, toda envidraçada e repleta de livros.

Creio que ninguém lhes tocava. Quem se entretinha com a sueca, o dominó e o quino talvez nem reparasse na volumosa estante, abarrotada de livros.

Reparava eu... E o meu regalo seria abrir aquela estante e colher de lá um livro para o folhear e ler antes de me deitar. Assim eu o percebesse. Era ainda tão novo… Teria onze, doze anos.

Os meus encantos, naquele clube, eram aquela estante. Mas, sempre fechada e muda. Até que uma noite, e em noites seguidas, a vi abrir. Um senhor, que usava óculos, ia retirando e colocando de novo, no seu lugar, rimas de volumes. Arrecadava-os depois de lhes escriturar os títulos num grande livro de papel almaço.

Procedia, a seu modo à catalogação dos livros da magnífica estante. Se fosse hoje, catalogaria em verbetes, mais fáceis de consultar que um bacamarte de papel pautado. Mas, em suma, aquele senhor de óculos, talvez inocente em bibliografia ou biblioteconomia, sempre tentou, o melhor possível o inventário dos livros.

Livros que nunca mais esqueci. Quando, depois de instalados os bombeiros no quartel novo, alguém me disse que todos esses volumes estavam à matroca, empilhados num monte, sem o mínimo vislumbre de arrumação, caiu-me a alma aos pés. E assim, esteve, de rastos uma porção de anos.

Até que ontem, dia que marquei com uma pedra, vim a saber que os livros já estão arrumadinhos na estante – bela estante de mogno.

Falta-me saber se já começaram a ser catalogados. Livros sem catálogo, para quem os quiser consultar, são inúteis ou pouco menos.
Qualquer biblioteca exige três catálogos: o onomástico, o didascálico, e o ideográfico.

O mais importante de todos, em minha opinião, é o onomástico. Poderá esperar, ate melhores dias, pelos outros dois.

A velha estante dos nossos bombeiros poderá prestar serviços a estudiosos se for catalogada. Mãos à obra? Agora, que os Bombeiros festejam o centenário, saúdo-os com este alvitre.

Nota: Esta crónica – de muito interesse para a história da AHBV do Peso da Régua - foi publicada no jornal O Arrais, de 4 de Dezembro de 1980.

- Colaboração de texto e imagem do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro". Clique na imagem acima para ampliar.