sábado, 17 de julho de 2010

Recortes: As Festas de Nossa Senhora do Socorro em... 1919

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Colaboração de José Alfredo Almeida - Peso da Régua,  para "Escritos do Douro".

Poema a PORTO AMÉLIA

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POEMA A PORTO AMÉLIA
(À Memória de Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, escrito em Junho/70)

Terra suada pelo fogo do sol e esquecida lá no norte,
onde tantos ganharam a coragem para refazer a vida
e teimam em ficar, unidos e em comunhão com os lá nascidos.
Terra que ouve tiros ecoando na selva
e sepulta corpos vestidos com sangue de guerra,
poetas gritando justiça e paz, mesmo que ninguém os ouça,
nem os que trincam a alma no amanho da machamba,
nem os que mastigam o tempo no amanho da esperança.
Terra vermelha com cemitério debruçado sobre o mar,
cruzes escurecendo no desfilar da memória,
epitáfios de números e de nomes esquecidos além.
Terra que sente os espaços limitados,
as angústias das palmeiras seculares,
abrigando a sombra de olhos fixos nos corais
e suspirando horizontes na quietude triste de um cais.
Terra que ajudou a criar o poeta, a fazer o poema
e a construir a filosofia do abraço e do sorriso.
Terra que também é minha porque nela chorei de solidão,
chorei amigos que foram mortos sem razão
e nela joguei sem deserções o xadrez da vida;
vi crianças de olhos esbugalhados pelo espanto
e homens hipnotizados pelo minuto seguinte.

Ó terra excitada pelos batuques das gentes negras,
sons perdidos na cumplicidade das tembas!
Eu te lembro deste continente que se chama Europa,
meto o poema numa carta e pergunto quantos selos leva,
sem selos a palavra escrita não salta mares,
deito-a num saco de correio azul – azul como o teu céu
e espero, meu AMIGO, que me respondas do outro lado.
Seria bom – ó terra dos ecos nocturnos! – voltar às tuas manhãs de luz,
aos teus entardeceres como quem fecha os olhos para sonhar,
perder-me nas picadas de fins ignorados e ouvir o eco do meu grito,
aliviar o meu alvoroço oprimido e poder dizer: «Viva a vida!».

M. Nogueira Borges* – Porto, Junho/1970
  • Outros post's neste blogue que falam de Jaime Ferraz Rodrigues Gabão, cidadão português nascido na cidade de Peso da Régua em 13 de Abril de 1924, falecido em 18 de Junho de 1992, dia do Corpo de Deus e sepultado no Cemitério do Peso.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 12.10.1943. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial mil.º e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google. Pode ler também os textos deste autor no blogue ForEver PEMBA. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!
POEMA A PORTO AMÉLIA
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quinta-feira, 15 de julho de 2010

O REFORMADO - Parte 2

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Iniciara-se ao balcão, a receber as propostas comerciais, ensinar o preenchimento de livranças ou letras, e acabara a decidi-las no suporte informativo do bom ou do mau nome. Voltara à nulidade sem préstimo ou importância. Agora só lhe pediam paciência, aqueles expedientes de velhos amanuenses que, sem nada para passar o tempo, agradecem um entretém. Sem feitio para dizer que não, passava horas nas filas de espera para cumprir as burocracias dos filhos, bufando e fumando. Sentia-se trapo, esfregona de limpar pingos, amortecedor de rebeldias juvenis. Como passara a vida... Onde mais lhe percebia a brevidade era quando levava o neto mais velho à Escola, igual àquela onde aprendera o a, e, i, o, u. Vinha-lhe tudo à lembrança: os Pais que uma vida inteira na lavoura não os tirou da precisão, sempre iludidos pelo fascínio das vinhas; a Professora, cuja morte na curva da estrada, apanhada por um carro de praça, lhe ficou como o estigma de uma vida roubada por um Deus indiferente; os cânticos da tabuada e os vivas a Salazar pendurado na parede ao lado de uma Cruz e do Carmona como imagens petrificadas do medo; as brincadeiras no recreio de terra batida com os velhos do Asilo ao lado, sentados nos bancos de pedra e olhos no chão. Recordava a alegria do fim das aulas com a Mãe à sua espera, sempre de avental, um sorriso de bondade e um afago de calos. Dava a mão ao neto e era, agora, com se fosse a Mãe a perguntar-lhe: «Trazes muitos deveres?»

Aborrecia-se por tudo e por nada com a Mulher que, num troco dobrado, também ajudava. Deixou de rir e falar só quando não podia ficar calado. Por vezes, até os netos o insuportavam. Passados uns meses, por plágio do que escutava a outros, foi a um Psiquiatra que lhe receitou meio lexotan de manhã e outro meio à noite e exercício físico. «Caminhe, sempre a plano, e convença-se de que está num novo e belo ciclo de vida!», aconselhou paternalista. Durante algum tempo assim fez, chegou a pedir-lhe uma segunda receita, mas, a sua tristeza não tinha fim. «Alegra-te! Até parece que tens uma doença! Falta-te alguma coisa?! Porra pró homem!», sacudia-o a Celeste.

Abandonou os almoços semanais com os antigos colegas e isolou-se progressivamente. Mal se sentava no sofá, adormecia diante da televisão. Sempre fumara muito, mas, agora, fumava muito mais. Os cigarros iludiam-lhe as horas e consumiam-se num ápice. No Verão ainda passava mais ao menos. Ia à praia com a miudagem a encher-lhe o carro e as preocupações; passeava, com o sol a alegrá-lo, pelas redondezas do quarteirão, apreendendo os hábitos da vizinhança, onde descobriu um estudante de Arquitectura que fazia os trabalhos práticos diante da Igreja a tentar desenhar o seu Românico; surpreendeu-se com um reformado dos Transportes Colectivos pela educação requintada e vasta cultura, passando horas, no Café, debruçados no jornal de Artes e Letras, discutindo as novidades publicadas. Deprimia-se com a chegada do Outono, e o Inverno, então, gelado e húmido, de chuva perpétua a escorrer nas vidraças, até o disfarce lhe tirava. Sentia-se desalentado, sem apetite. Mais cansado e desolado do que quando trabalhava.

Dormia mal, aos solavancos, e começou a acordar, repetidamente, com uma necessidade irresistível de urinar, facto que, pela anormalidade, lhe lembrou aqueles anúncios patéticos de jornais com elixires para a próstata. O Urologista consultado meteu-lhe no cu um dedo enluvado com gel e, sorridente, sentenciou: «Não se preocupe. Está tudo bem. Vou só pedir-lhe umas análises de rotina, incluindo o psa, e receitar-lhe umas cápsulas destas – escrevendo a receita – para tomar uma todos os dias, depois do pequeno almoço, só por uma questão de controlo.» Nunca precisara de tomar nada e, agora, eram só caixas de medicamentos. Não lhe bastavam os calmantes, acrescentavam-lhe, agora, cápsulas de libertação prolongada para a hiperplasia benigna da próstata, sem falar nos comprimidos para o colesterol que, posteriormente, o laboratório sentenciara alto...

Uma tosse irritante, seca e rouca, com arrancos espasmódicos que não o deixavam dormir, a ponto de ter que se sentar na cama para serenar um pouco, levou-o ao Dr. Pias, seu médico de sempre. Como de costume, perderam-se um bom bocado a falar de política, descascando no (des)governo - fosse qual fosse, estavam sempre contra –, até, finalmente, começar a consulta. Depois de repetidas auscultações, o médico pousou, atonamente, o estetoscópio no tampo da secretária e disse: «Amigo Silveira, ou deixamos de fumar ou estamos mal!» Tremeu e perguntou: «Tem que ser mesmo não é?...» O experiente esculápio foi bruxo, mas atrasado. Quando, mais tarde, viu o pneumotórax solicitado, o Dr. Pias dissimulou como pôde o sobressalto que a chapa lhe causou. “Raio! Parece uma bola de ping-pong...”, dizia para si, observando no contra luz uma mancha branca no pulmão esquerdo.

Os médicos amigos do Dr. Pias, a quem o recomendara, dividiram-se: uns, inclinavam-se pela operação, outros, que nem valia a pena. Aqui, Silveira viu-se a desaparecer numa onda escura, tomado de um pânico de afogado. Passou os dias a rebobinar o filme da sua vida; de noite, a Celeste ouvia-lhe a tosse, mas, não via as suas lágrimas a salgarem-lhe as faces. A morte, então, era isso: a perda da capacidade de se aborrecer ou divertir-se consoante a disposição do momento; deixar o chão e o céu, as caras dos filhos, dos netos, o corpo da Celeste, a liberdade dos passos, a comodidade das vontades. Percebeu tudo distante, como se nada pudesse repetir-se. Havia nos seus olhos uma penumbra de fim, na sua alma um choro irregressível. O alento do seu querido Dr. Pias, que o esperançava e defendia a operação – «Não tem nada a perder, Silveira. Vai ver que tudo corre bem. Não deixe de lutar, homem!» -, deu-lhe alguma coragem. Reuniu a Mulher e os filhos e concordaram que iria à faca. Apossara-se dele, estranhamente, uma raiva semelhante a quando nos acusam sem razão. Não fez quaisquer preparativos domésticos, não deu conselhos de despedida, nem sequer se preocupou com transferências de dinheiros. Assinou o termo de responsabilidade e «seja o que Deus quizer!».

Quando, ainda na sala de recobro, abriu os olhos e se sentiu vivo, sorriu tanto que a Celeste o agarrou até gritar de dor com o aperto das costas. Regressou a casa com um saco de medicamentos e uma descrição escrita dos tratamentos futuros.

Contudo, escassos meses demoraram aqueles. Cansava-se cada vez mais e custava-lhe a respirar. Sempre que vinha do IPO, sentia-se um frangalho, vomitava uma baba azeda, bebia leite e deitava-se. Apalpava as coxas e via-as desaparecer, o cabelo sumia-se em fiapos de algodão, só o rosto, diante do espelho, lhe surgia, singularmente, inchado. Estava disforme, Silveira não tinha gosto em si. Aos que o confortavam com esperas de melhoras, respondia com um sorriso triste que era mais um trejeito de legenda do que uma concordância correspondida. Ele sabia que o tempo se lhe escoava porque já vira o mesmo em outros. Lembrava-se sempre do Alberto que em meio ano se apagara. Já nem podia esconder os sinais do corpo que lhe recusava o esforço do gesto mais banal. Encolhia o sofrimento porque pertencia ao grupo daqueles que nasceram para o consenso e não para, por tudo e por nada, se reflectirem nas preocupações alheias. Talvez por isso, furtava-se, cada vez mais, aos encontros, não queria mostrar a sua decadência. A Celeste – já avisada pelos médicos – fingia-se desentendida, praticando uma esforçada normalidade diária, encolhendo a amargura, soltando as lágrimas só quando ele conseguia dormir, mentindo-lhe que o Operador lhe dissera que estava limpo. Quando, raramente, sempre com os netos pelas mãos, se ausentava, pedindo à irmã que a viesse substituir, distraía-se por Santa Catarina a comprar «umas roupinhas para os que me irão adoçar a solidão».

No dia em que convenceu a Mulher que, a partir daí, cada um dormiria em quartos separados para que, ao menos ela, pudesse dormir umas horas, chorou toda a noite (ignorando que a Celeste fazia o mesmo), misturando as lágrimas com as dores.

Não era só o corpo dela que se afastava, era a sua morte que se aproximava.

Nos últimos dias que passou no Hospital, com uma máscara para respirar e tubos de soro para se alimentar, repetia, enquanto as forças lho permitiram, a quem o visitava: «O meu mal foi reformar-me. Despertou o bicho que estava amansado.»

Agramonte recebeu-o com muitos e muitos colegas e amigos espantados com a brevidade daquela reforma. A Celeste, já sem lágrimas para chorar, tinha um alívio de dever cumprido; os filhos, com os nós das gravatas pretas descaídas - como aquilo que se usa apenas para cumprir um preceito -, falavam com os conhecidos; só os netos já crescidotes, escolares primários, tinham olhos de despedida - era a inocência que chorava.
- Texto de M. Nogueira Borges* extraído da publicação "Lagar da Memória".
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog ForEver PEMBA. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

terça-feira, 13 de julho de 2010

Benemérita dos Bombeiros da Régua - D. Branca Martinho

Por: Padre Avelino Branco

Nesta revista, que se publica apenas uma vez por ano, queremos arquivar e apreciar os acontecimentos dignos de registo, ocorridos na nossa terra, durante esse lapso de tempo.

Um deles, dos maiores, não de gáudio mas de luto foi a morte da Senhora D. Branca Martinho, em 31 de Janeiro de 1964. Neste caso, mais que registar um facto, um óbito, “Princesa do Douro” quer prestar homenagem a uma nobre figura de mulher, que deixou atrás de si um rasto brilhante de virtudes e benemerências, inequívoco exemplo de esposa, dona de casa, mãe...cristianismo vivido em sua pureza integral.

Não quer a modesta revista que tens nas mãos, caro leitor, incorrer na falta, que o “Transmontano”, antigo jornal da Régua, em artigo publicado a 2 de Julho de 1922, precisamente com o mesmo título deste. Verberava nos seguintes termos: - “...Porque é reparável (sic) e profundamente triste que os jornais que tamanho ruído fazem em volta de casos sem importância e pessoas de méritos suspeitos, se quedem petrificados, num silêncio irreverente, perante uma alma esplêndida, que passa serenamente deixando através da vida um rasto luminoso de actos de caridade e altruísmo”.

E neste ano de graça de 1964, para chorar o desaparecimento da Senhora D. Branca Martinho, vestir-se-ia de lutuosos crepes; para realçar suas virtudes, cantar seus feitos memoráveis, veste-se de gala, só lhe doendo sua modéstia de estilo e forma, esta pobreza que mais lhe não permite que lançar pequenino grão de incenso no turíbulo de hosanas, aceso no coração de todos os reguenses.

De todos os reguenses, sim, porque, na homenagem póstuma do seu funeral. Não houve rico nem pobre, velho ou criança que não estivesse presente, de olhos humedecidos e coração a sangrar. Foi um penhor de saudade e gratidão, pelo agradável que era conviver-se com Senhora tão simpática e pelos benefícios espirituais e materiais profusamente repartidos por suas generosos mãos.

Nasceu a 2 de Janeiro de 1891. Ali na casa da R. dos Camilos, num lar profundamente cristão.

É ela própria que faz do seu Pai a seguinte apreciação: “Homem modesto e honesto, perfeito modelo de cristão”.

A casa dos pais é a escola dos filhos, é a primeira universidade, a que na marca o rumo, que pela vida fora, havemos de seguir; só em jardim bem cultivado podia desabrochar tão mimosa e colorida flor.

Da sua infância evoco apenas o seguinte episódio, contado por ela própria, numa das páginas do seu diário: “Na escola, todos os anos vestíamos criancinhas pobres. Condiscípulas nossas, o que me dava já muito prazer. Era um dia de grande alegria naquela casa. Quase sempre no dia um de Maio. Às contempladas dava-se um lanche que nós cozinhávamos sob a direcção duma professora” .

Enfim, o que o berço dá a tumba o tira. Vinha-lhe do berço este geito de repartir, de sentar à mesa da alegria os menos protegidos da sorte.

Deus tinha-a predestinado para o exercício da caridade em grande estilo.

E visto que falei na escola, acrescento: no capitulo de instrução, apesar de se ter revelado inteligente, viva e atenta, o que se podia chamar uma boa estudante segundo o testemunho da sua competente mestra, não fez estudos médios ou superiores, como hoje se diz, porque não estava em moda naqueles tempos. Apenas teve cursos de aperfeiçoamento em português e piano.

Todavia, os que com ela privaram pela vida fora, puderam apreciar a sua vasta cultura, e sobretudo a lucidez, precisão e profundeza dos seus conhecimentos religiosos. Era senhora dum humanismo cristão do mais fino quilate.

Uma grossa e bem seleccionada literatura serviu de pábulo à sua inteligência invulgar.

Aí colheu uma estrutura de pensamento, uma justeza de critérios, que lhe permitiam pesar com exactidão escritos de literatos, os mais ilustres, acontecimentos e factos ocorrentes na vida, os mais intrincados.

Casou aos 20 anos de idade, em 6 de Agosto de 1913, com o Senhor Artur Gonçalves Martinho.

O que mais tarde escrevia sobre a festa do seu casamento, é uma de tantas provas da sinceridade, franqueza, humildade, que exornavam sua nobilíssima alma. Tinha o dom de ver claro e ler em si própria como em livro aberto, o que, por vezes, é tão difícil.

Quem há que não admire este passo das suas memórias? - “Não foi com os olhos em Vós, Senhor, que contraí casamento, mas porque me diziam - é um bom partido, e um bom rapaz. Na véspera fui com uma irmã receber Nosso Senhor e confessar-me. Se fosse hoje!... como não iria lavada toda e purificada em Vós, Senhor! Compreendia pouco o que ia fazer e as responsabilidades que cairiam sobre os meus ombros”.

Mas a verdade é que deu sobejas provas de compreender bem o que fez e das responsabilidades que assumiu.

Se tinha sido modelo de rapariga solteira, não o foi menos de esposa, mãe e dona de casa.

Pelo que aos nossos ouvidos chegou. Sabemos que a sua juventude foi marcada pelo recolhimento, modéstia, piedade. Era duma alegria transbordante e duma inocência sem mácula.

Aos seus ouvidos soou um dia esta frase: “A Senhora nunca foi tocada pela maldade”. Não reagiu, apesar da sua modéstia, porque a consciência de facto a não acusava. Mas reagia e impacientava-se quando lhe faziam elogios.

O seu retrato de esposa, fê-lo ela própria no seu diário íntimo, na folha de 5 de Julho de 1929, nestas memoráveis palavras: “Muitas vezes me aflige a ideia de que não faço bem a vontade do meu marido; e como eu desejaria adivinhar-lha... Mas a minha pobre cabeça não o compreende muito bem”.

Aqui está delineado o programa duma boa esposa: fazer feliz o seu marido, na ordem temporal e eterna.
Apesar de que esta preocupação de fazer os outros felizes era um dom todo seu, que lhe conhecemos de sobejo. Dom de simpatia, hábil em descobrir motivos de satisfação para os outros, sempre pronta a louvar, a felicitar, a servir, a dar. Este era o maior prazer da sua vida, e bem o exprimiu nestas linhas das suas memórias: “Quando penso em tantos benefícios que me dais, tanta fartura, tanto com que me cobrir, tantas e tantas consolações...que não mereço... Permiti que nunca me aborreça de dar e sempre tenha com que minorar o sofrimento de quantos se me dirijam, e o faça generosamente”.

Era admirável nesta alma o sentido dos outros.

Se recebia um favor, uma atenção, uma delicadeza, ficava confundida. Nada recebia em vão, com indiferença, ou deixava sem agradecimento. O seu agradecimento, porém, não era mera cortesia. Era deste teor: “Meu Deus abençoai todos aqueles que são bondosos e delicados para convosco”. Assim reza uma das páginas do seu diário.

Também preferia chamar a si todas as amarguras e sofrimentos dos outros. Muitas vezes o pudemos apreciar, e bem se revela este timbre da sua alma na seguinte passagem escrita só para si: “São 11 horas da noite. Que fim de tarde eu passei tão tristonho! Uma angústia enorme me oprimia, sem saber a razão, pois só tenho motivos para estar satisfeita e agradecer. Pedi há dias ao Senhor, quando vi minha mãe aflita e a chorar, que me desse a mim toda a saudade, e a ela a deixasse mais serena”.

Era deste sentido dos outros, desta vivência em corpo místico de Cristo, que arrancava a sua extraordinária acção de caridade, quer individual, quer através da Conferência de S. Vicente de Paulo, à frente da qual esteve mais de 30 anos.

Era verdadeira caridade cristã, e não mero altruísmo naturalista.

Vejamos nesta passagem do seu diário como o seu serviço a lavor dos pobres era repassado de espírito sobrenatural: “Quando passava hoje pela avenida do rio abordaram-me duas mulherzinhas para que metêssemos uma velhota (a Monge, lhe chamam) no Asilo, ou lhe valêssemos, visto que estava na maior miséria.

Na volta entrei lá. Realmente a velhinha está na maior miséria. Não vê. Só tem trapos na cama. Não tem ninguém que a possa sustentar, pois a família também é pobre. Quanta miséria há pelo mundo, Senhor!... Meu Deus permiti que possamos metê-la no Asilo. Em tempos falámos-lhe em ir para essa casa de caridade. Não quis. Respondeu que antes queria morrer. Agora já vai, pois chegou à maior miséria, que é estar doente, sem meios, sem ter um carinho, sem poder arrastar-se a mendigar, como costumava. Aceitá-la-ão agora? Virgem Santíssima permita que sim”.

Era assim.

Pois nem por isso, ou talvez por isso, deixou de saborear o travo amargo, que por vezes têm as obras de Deus. Por tanto bem fazer, não lhe faltaram ingratidões, injustiças, calúnias e até insultos.

Mas tudo isso considerava sempre pouco para oferecer ao Senhor. A meditação frequente dos tormentos da Paixão de Cristo, faziam-lhe ver o nada dos seus próprios sofrimentos.

De facto tudo referia a Deus, e tudo interpretava à luz meridiana do Evangelho.

Por exemplo, quando se preparava para deixar a casa de seus pais, a fim de ir viver com o marido em casa própria, alguém lhe observava: “Deixa o seu Pai sozinho? Não está cá a sua Mãe... Ao que ela respondeu: “Realmente assim é e custa-me muito fazê-lo. Mas, reconheço também que meu marido está ansioso por mudar para a casa de baixo, e então, Senhor, puz em prática a tua santa doutrina - Deixarás teu Pai e tua Mãe, e seguirás o teu marido - Assim farei, embora o coração sofra e os outros me julguem mal”.

A sua vida foi na verdade uma cartilha de existencialismo cristão.

Profundamente humana, enraizada no real, mas sabendo colocar todas as pedras, toda a imensa gama dos acontecimentos do dia a dia, no tabuleiro construído por uma razão potente e uma fé esclarecida.

Não desperdiçava nunca boa ocasião que se lhe de parasse, nem lhe escapava o mais insignificante pormenor.

Se toda a mulher, por especialidade da sua psicologia feminina, tem o segredo do pormenor, a Senhora D. Branca, que era mulher de boa madeira, tinha esta qualidade sublimada.

Descrevendo, por exemplo, uma peregrinação a Lourdes, quando a vemos embrenhada na contemplação do ambiente grandioso de religiosidade, na observação dum milagre que tanto a comoveu, na mistura de vozes de várias línguas a rezar, na beleza da paisagem e dos monumentos, salta-lhe da caneta esta frase: “Terminei hoje aqui as 9 primeiras sextas”.

E aquela graça que punha no arranjo dum altar, da sua casa, da sua própria pessoa, que era senão a ciência do pormenor, aliada a um temperamento artístico, como se viu nos seus teatros, nas suas festas infantis e de sociedade, nas suas músicas, nos seus escritos?

Tinha ainda o segredo de fazer com simplicidade as coisas difíceis, e de estar sempre ocupada em coisas de alto merecimento.

Já quase no fim da sua vida, enquanto num hospital convalescia de gravíssima operação, escrevia cartas e falava pessoalmente às numerosas amigas que a visitavam das obras de restauro da querida igreja da sua terra, tendo assim conseguido uma soma, que ultrapassou a centena de milhar de escudos, para as obras.

E sendo verdadeiramente grande, também era, como não podia deixar de ser, profundamente humilde.

Não foi para mais ninguém, mas só para si e para Deus que escreveu um dia estas palavras: “Adoro-Vos, Senhor... sentindo-me imensamente feliz, quando vejo os outros subirem mais alto”.

Outra expressão que gostava de dizer quando via alguém com ânsias de brilhar era esta: “Foge Branca para a valeta!”

Mas ela tinha também a miragem das alturas, dos vastos horizontes espirituais, do céu sem nuvens, mas sem o saber, ou julgando- se sempre a inútil, “no primeiro degrau da escada”

Era, porém, nessa ânsia de subir, que buscava e tinha a convivência dos santos, das almas de Deus, dos Príncipes da Igreja, de todos quantos pudessem transmitir-lhe mais ciência divina e mais virtude. Dialogar com os bons sobre assuntos de espiritualidade era o seu mais delicioso entretimento, e no seu escrínio de correspondência há verdadeiros monumentos de Teologia Ascética e Mística em literatura epistolar.

O seu apreço pela hierarquia era insuperável. Bem o deixou vincado nesta passagem das suas memórias: “Hoje, quando pensava ou meditava durante o tempo do meu repouso, tive pena de não ter um filho sacerdote”.

Enfim, tenho de pôr termo a esta pequena história duma grande alma, história escrita por ela mesma, como no caso de Santa Teresinha.

Efectivamente já deves ter reparado, estimado leitor, que a espinha dorsal deste breve escrito é formada por palavras escritas pela própria biografada.
(Clique nesta e nas imagens acima para ampliar)

Como dissemos inicialmente, estes apontamentos biográficos pretendiam ser homenagem sincera e justa à Senhora D. Branca, que vive e viverá sempre na nossa memória e no nosso coração. Mas agora que chegamos ao fim, verificamos que isto são sobretudo pontos de meditação para todos, particularmente para a mulher, seja ela solteira ou casada, mãe ou simples dona de casa.

Que tão altos exemplos frutifiquem são os nossos ardentes votos.

Notas:
1 - O antetítulo do texto é da responsabilidade do autor deste arquivo.
2 - Este texto foi publicado na revista “Princesa do Douro”, em 1964, edição de J. Alcino Cordeiro - Régua.
3 - A fotografia da D. Branca Martinho encontra-se exposta no Museu dos Bombeiros da Régua, tendo sido “inaugurada” em sua homenagem, em 1923, durante as comemorações do 43º aniversário da Associação.

- Colaboração de J. A. Almeida para "Escritos do Douro" em Julho de 2010.