quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Relendo Heróis do Tempo - José Pinto Rodrigues.

Recordar é sempre importante. Principalmente para que os mais novos saibam quanto suor e dedicação doaram figuras como a de José Pinto Rodrigues, de 81 anos, ao nosso Sport Clube da Régua e à própria Régua.

Reconhecer "heróis-do-tempo" como este deveria ser uma obrigação da comunidade vareira.

Encontrei-o por acaso, agora em Junho/06, solitário, de rosto um tanto enrugado, triste, sério, caminhando ao entardecer à beira-rio, bem junto do rio que o viu nascer...

Aproximei-me e não me reconheceu. Olhou... olhou e tive de dizer quem era.

- Há! Agora já sabia... Afinal o menino de quem a sua Maria cuidava lá por casa da Mãezinha na Rua das Vareiras, partira com os Pais para África em 1957 e havia crescido. Depois não o encontrou mais. Agora, pudera, estava mais velho e com cabelos brancos! Mas, no fundo, olhando bem é a cara do Jaiminho Pai... tem o mesmo olhar...

E, enquanto se animava ia divagando e contando-me sua vida e sua história no Sport Club da Régua. Ia escutando-o com certa emoção pela saudade que suas palavras despertavam e, pensava o quanto era cruel o destino por não eternizar a juventude em todos nós...

Caía em mim e lá estava ele, empolgado, dizendo-me o quanto era difícil ser extremo-esquerdo do Régua naqueles anos... abaixou-se, levantou a perna das calças e mostrou-me as canelas marcadas pelos adversários em desafios que não esquece... Começou no cais da Régua com bola de farrapos... faz muitos anos não lembra quantos... Um dia, o falecido João Bonifácio, diretor do SCR, levou-o com mais oito companheiros, do Atlético da Rua da Alegria para o SCR. Com ele foram também: -o falecido Ginho, filho do Miguel do Tribunal; -o falecido Aparício, guarda-redes; -o Arnaldo Carvalho Sá, interior esquerdo; -o Agostinho Fan-Fan, defesa, também falecido; -o Zeca Almeida, guarda-redes, que Deus também já levou... Foi uma época de glória, que dá saudade lembrar... Não havia salário nem luvas, uma ajudazita talvez! Mas valia a pena... tanto que, por volta de 1955 jogaram com o Fafe e, no prolongamento, ganharam de 2-1 subindo para a segunda divisão. Não entraram por excesso de clubes... coisas daquele tempo!

E foi contando, contando, entusiasmado, trechos de uma vida simples com encantos e desencantos que o transportaram ao hoje sem glória.

Despedi-me quando a tarde ia caindo.

Queria levar-me ainda até à sua Maria e mostrar-me fotografias que guardava com zelo.

Não tive coragem, pois meu coração já estava partido demais... 
- J. Luis Gabão, 06/07/2006
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Transcrito do portal "Portugal-Douro-Peso da Régua" e reproduzido também no "Jornal do Douro", Lamego, edição 351 de 02Jan2007.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Anos 30 - A Régua que ainda não se perdeu de vez...

Postal ilustrado que mostra a Avenida João Franco nos anos 30 desenhando uma Régua que ainda não se perdeu de vez e sabe encontrar-se com a beleza e a poesia do seu rio.

A importante Avenida João Franco é uma autentica varanda para o cais da Régua e para a bacia do rio Douro, sulcada em tempos pelos famosos "barcos rabelo" que ali vinham carregar  as pipas de vinho de Porto destinadas aos armazéns de Gaia.

A Avenida João Franco (de ontem e de hoje) é o lugar mais procurado para apanhar a frescura nas quentes noites do verão da Régua e, nos dias das festas em honra de Nossa Senhora do Socorro, para ver os arraiais com fogos de artificio.

Nesta avenida se situavam os armazéns da Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro, hoje transformados em moderno espaço cultural da região, da vinha e do seu famoso  vinho do Porto: o MUSEU DO DOURO!

Mas, a avenida João Franco dos ano 30 tem muita poesia. É mais calma e, quem sabe, tem  mais silêncios, personalidade e história que a de hoje.

Clique na imagem para ampliar e ver melhor a avenida João Franco dos anos 30.
- Texto e imagens sugeridos por J. A. Almeida - Régua,  em Fevereiro de 2010.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

No regresso de Porto Amélia

“A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente” - Albert Camus.

Contava com humor fino, numa das suas deliciosas crónicas que publicava no jornal “O Arrais”, que é certo que neste mundo é que elas se pagam…que Deus, na sua finita ironia, o tinha acabado por fazer bombeiro, tendo vindo a ser Presidente da Direcção da AHBV do Peso da Régua (1964-1965) por entusiasmo e crédito de um punhado de amigos.

Estamos a evocar, para quem não teve a sorte de o conhecer de perto, o Dr. Camilo de Araújo Correia. Quem foi ou é leitor das suas fantásticas crónicas, sabe que tinha por hábito historiar episódios passados ou observados ao longo da sua vida.

Pela sua passagem nos bombeiros da Régua deixou-nos interessantes e antológicas memórias que permitem perceber a sua paixão pelos soldados da paz remonta ao tempo da infância ou, como ele diz, à idade dos seus primeiros raciocínios. Desde então, passou a admirar-lhe as suas fardas, o seu esforçado trabalho e, de nas suas histórias, contar casos de pitorescos bombeiros, o que permite reconstituir os seus passos até chegar aos destinos da presidência da prestigiada e secular associação.

A sua primeira entrada no quartel dos bombeiros deveu-se ao Dr. Júlio Vilela e a Alfredo Baptista que o convidaram dirigir a redacção de um pequeno jornal, o “Vida por Vida”. Aceite o desafio, o seu nome apareceu no cabeçalho do título e, no dia 1 Agosto de 1956, começava a regular publicação deste órgão oficial da associação.

Cumpriu religiosamente até meados de 1961 a árdua tarefa de pôr, mensalmente, o jornalzinho dos bombeiros na rua, ao encontro dos associados e dos leitores que soube conquistar. Com colaboradores como o escritor João de Araújo Correia, seu pai, conseguiu conquistar a simpatia e o agrado. O jornal ganhou raízes, reconhecimentos e justas condecorações. Alcançou em pouco tempo um sucesso editorial inédito. Mas, uma mobilização para cumprir serviço militar no Hospital Militar 338, de Porto Amélia, em Moçambique, obrigava-o a deixar a direcção do jornal por algum tempo.

Na hora da partida, o “Vida por Vida” fazia a notícia “com mágoa e júbilo”. Dava conhecimento que eram os “altos deveres que cada cidadão tem com a sua pátria.”. Lamentava que “não são só os bombeiros a sentir a sua falta” mas era a própria terá que lhe servia de berço “que ficava a sentir uma vaga que dificilmente preenche”. Concluía o seu autor, à boa maneira transmontana, com um voto de “boa sorte, Dr. Camilo e até breve. Nós não o esquecemos e todos os meses lhe batemos à porta com o Vida por Vida.”

Assim aconteceu, nos dois anos e meio seguintes, o tempo em que esteve destacado, o jornal “Vida por Vida” passou a ser enviado para a sua residência militar, em Porto Amélia, quase como uma garantia que os laços à terra e aos bombeiros nunca se perderiam.

Os laços afectivos não se perderam como até se fortificaram. Ele fazia questão em manter as suas amizades que deixará nos bombeiros. Lembrava os velhos amigos e não deixava de se corresponder por cara com os mais chegados. Estes quando tinham motivos, por mais pessoais que fossem, faziam questão em noticiá-los nas páginas do jornal. Convencidos da sua importância, não deixaram de publicar em forma notícia, os elogios de um louvor atribuído pelo General Comandante da Região Militar, a distinguir-lhe as suas funções como médico e o seu carácter humano.
Alguns tempos antes de acabar a mobilização militar, os amigos tudo fizeram para que aceitasse presidir à direcção da associação dos bombeiros. A prematura morte do Dr. Júlio Vilela (1964) deixara um enorme vazio, como o seu estatuto social e dinamismo, não se encontrava no meio alguém que o pudesse substituir. Fizeram-lhe o pedido e convenceram-no a dar o seu consentimento. O resto que havia a fazer, concluíram à sua maneira e de acordo com os estatutos, convocando a realização das eleições para os órgãos sociais. Como não se apresentaram candidaturas concorrentes, os resultados não tiveram influência. Apenas, tiveram de contar os dias para o seu desejado regresso à Régua.

Em 4 de Julho de 1963, escrevia uma carta ao seu amigo Alfredo Baptista, reguense apaixonado e influente director dos bombeiros, a dar resposta às amostras do muito apreço que lhe faziam manifestar. Estando para breve o seu regresso, os amigos elaboravam planos para o receber num ambiente de honras militares. Esta proposta era compreensível na largueza da amizade, mas era pouco recomendável para agradar a sua maneira de ser. Sem nenhuma hesitação, de imediato, e ainda à distância, recusou-as com palavras elegantes e de fina ironia.

Há muito perdida nos arquivos, entre os bolorentos relatórios de contas e orçamentos de contas apertadas às necessidades de cada ocasião, encontrava-se uma sua carta, manuscrita numa caligrafia inconfundível, que pelo assunto versado é digna de ser desvenda. Essas suas palavras vão fazer sorrir e pactuar com a sua atitude.
Convenceu e desmobilizou os amigos com uma grande simplicidade. Assim mesmo:

“Meu Caro Baptista: Muito me sensibiliza a vossa ideia de me receberem com honras militares…mas não poso aceitá-las. Imediatamente a seguir ao pousar da mobília em Lisboa me transformo no pobre médico da Régua… que sou! As melhores honras que me podem prestar serão as manifestações de alegria pessoal de cada um ao encontrarem-me como um homem da rua…De mim terão todos a continuação de uma grande estima. Vim aqui conhecer todos os ambientes de bairrismo… Sou pela Régua como muito tipos são pelo Salgueiros! As grandes distâncias dão destas doenças…

Um grande abraço do seu velho e certo amigo Camilo.

PS - Mais lhe agradeço que faça uma distribuição de abraços a todos os amigos.”

Dito e feito, os amigos desistiram de lhe fazer as honras militares. A sua opinião não mereceu desrespeito. Ficaram então de organizar uma excursão com os carros dos bombeiros, para o irem esperar a Coimbra. De maneira arrebatada e comovida conseguiram mostrar-lhe uma especial dedicação e amizade, reforçada pelo tempo da sua ausência.

As marcas do reencontro não mais se lhe apagaram das suas memórias. Estas não se fixavam em glórias ou brilhos pessoais. A sua primazia era para os elementos pitorescos, humorísticos e humanos que se sucediam no seu dia a dia. Sem nunca o dizer, ele era naquele momento o presidente de direcção dos bombeiros da Régua. Faltava-lhe apenas tomar posse no cargo, o que aconteceria no dia 12 de Agosto de 1964.

A cerimónia da posse, reconhecendo-a como importante, não a valorizou em demasiada. Assumiu o cargo como um exercício natural de cidadania e com uma preocupação de não ter tempo que a medicina lhe absorvia. Adivinhava-se que na cerimónia da posse, a posse como presidente da direcção dos bombeiros, não fosse um dos momento da sua vida escolhido para ser evocado na cerimónia de uma homenagem promovida, em Julho de 2007, pela Câmara Municipal da Régua.

No majestoso Salão Nobre da Casa do Douro, depois de recordar as muitas voltas e reviravoltas do seu labor de médico e escritor nas horas vagas, foi buscar ao museu das sua memórias, com ternura e indisfarçado humor, o episódio da recepção amistosa dos bombeiros, a meio da sua longa viagem de regresso à Régua.

Do seu belo discurso de agradecimento, mais tarde publicado no jornal “O Arrais”, com o metafórico título “De flor ao peito”, destacamos essa inesquecível passagem:

“Já depois de escrever estas linhas me saltou na memória um episódio que não resisto a contar, nesta hora de fraternidade entre os reguenses.

Faz este Maio 43 anos que regressei de Moçambique, depois de cumprir dois alargados anos de mobilização. Foram de grande reconforto os abraços, beijos e as mil perguntas dos familiares que me foram esperar ao barco que me trouxe.

Não menos reconfortante foi a surpresa que um grupo dos nossos bombeiros me fez, indo me esperar a Coimbra. Foram tão calosos os nossos abraços, que nunca me pareceram tão reluzentes os metais e tão vermelho o carro que os levou. Era, tão efusivos os seus cumprimentos de boas-vindas que cheguei a recear que tocasse a sirene.

Os carros da família e dos bombeiros logo organizaram uma pequena caravana que veio por aí acima, a contar as curvas e as contracurvas de uma estrada do princípio de Portugal.

Entre Moimenta e Lamego, novo e simpático encontro me surpreendeu num dos trechos mais ermos da estrada, esperavam-me um grupo de funcionários do nosso Hospital, onde sobressaíam duas freiras de hábitos a esvoaçar. Por momentos, senti que estava a Régua toda.

Afinal, o ermo em que se deu este encontro, não era assim tão ermo. Quando nos dispúnhamos a partir, demos conta de um homem a gatinhar pelo talude da estrada. Mal Chegou acima, tirou o chapéu, limpou a testa e perguntou espavorido:

-O que foi?!!...O que foi?!!...

Partimos, depois de o sossegarmos com uma breve explicação. O homem lá ficou na beira da estrada, a rodar o chapéu encardido nas mãos que nunca perdem o jeito da enxada.

Apesar de conhecer bem as razões das honrosas presenças neste sempre acolhedor Salão Nobre da Casa do Douro, não resisto a imitar o cavador da estrada de Moimenta:

-O que foi?!!...O que foi?!!...”

Como o seu sentido de humor sempre presente, fez para os presentes, na grande maioria seus velhos amigos, um pequeno esboço do seu auto-retrato. As honras e as homenagens eram o menos importante, não cabiam na dimensão da sua generosidade e no seu feitio humilde, de todo igual à simplicidade do pobre cavador, que o fez sentir-se um homem realizado e feliz até ao fim da vida.

A tempo, a Régua soube agradecer-lhe pelo que fez como médico que tratou e salvou vidas, como escritor de magistrais crónicas, contos e memórias de grandes momentos do Douro, a região demarcada, o rio antes e depois de ser navegável, os seus queridos barcos rabelos em viagens reais e imaginadas com o velho arrais Passarada ao leme, e como um cidadão que serviu voluntariamente a mais nobre das causas humanitárias.

Os bombeiros da Régua, podem dizer com orgulho, que foi um deles, mesmo sem apagar fogos…! Esteja onde estiver, junto Deus, só pode estar acompanhado dos seus velhos amigos bombeiros e dos heróicos e ilustres comandantes, consagrados pelos ideais do altruísmo, caminhando entre o infinito azul e a luz da Eternidade.

No caso de voltarem a precisar da sua ajuda, os bombeiros sabem que responderá imediatamente: -Presente!
- Peso da Régua, Janeiro de 2010, J. A. Almeida.
(Clique nas imagens acima para ampliar)

sábado, 23 de janeiro de 2010

O jornal “Vida por Vida”

Começava a 1 de Agosto de 1956: “Aqui tem o primeiro número do boletim dos Bombeiros da Régua. A ideia de o realizar vem sendo amadurecida há longos meses para que, uma vez saído do prelo não viéssemos a arrepender do seu carácter. Ao princípio era nosso intento fazer dele apenas um mensageiro das actividades da corporação junto dos sócios. Mas, pensando melhor, concluímos que a escassez do assunto viria fatalmente transformá-lo em publicação monótona. (…) Tomando neste aspecto, o Boletim apenas dará vulto aos acontecimentos que dele necessitem para beneficio da Régua, reflectindo-os sem os desvirtuar. Desta maneira, não haverá espaço para tribunas alheias ao aspecto que vimos focando. (…) incluiremos sempre que seja, possível uma página de sabor literário. Um conto, uma crónica ou uma biografia, jamais estragaram um serão…”

Eram estas as primeiras palavras do editorial, intitulado “Certidão de Nascimento”, do número um do jornal “Vida por Vida”, que nesse ano passava a ser publicado como o órgão oficial da AHBV do Peso da Régua, com o objectivo de servir de elo de ligação dos bombeiros aos seus associados e benfeitores.

Teve como primeiro director o Dr. Camilo de Araújo Correia. Depois dele, por se ter retirado pelos seus afazeres de médico, seguiram-lhe nessa função o Dr. Júlio Vilela, Alfredo Baptista, Dr. Vieira de Castro e o Dr. Aires Querubim Meneses.

O seu aparecimento deve-se a uma ideia de Alfredo Baptista, dinâmico e empenhado director, que exerceu vários cargos na Direcção liderada pelo Dr. Júlio Vilela. A ele se deve a ideia e, sobretudo, o muito trabalho para que o jornal vingasse nos seus primeiros anos de vida. Publicou-se entre 1956 e 1974. Tinha distribuição gratuita entre os associados, amigos e benfeitores e todas as associações humanitárias de bombeiros a nível nacional.

Ao longo de 18 anos, o “Vida por Vida” saía uma vez por mês e, em momentos especiais, fez suplementos de assuntos importantes. Era composto e impresso nas oficinas gráficas da Imprensa do Douro.

Teve uma longevidade ainda razoável parta as dificuldades que atravessou. Apenas as circunstâncias históricas impediram-no de atingir a maturidade. Mas, em vida criou fortes raízes na massa associativa, benfeitores e admiradores. Sendo os seus responsáveis amadores, foi graças ao seu esforço e sacrifício que, conhecendo a realidade, conseguiram ter uma vitória sobre o tempo. Se em cada ano saíam doze números do “Vida por Vida” em cada número venciam as dificuldades sem número. Além de que, os textos publicados tinham de ser visados previamente pela censura.

No terceiro aniversário do jornal, o director resumia o seu bom estado, ao dizer de forma humorada que “nascido de um sonho, tem sido este jornalzinho uma espécie de filho enfermiço de quantos o amparam. Da sua educação se encarregam desinteressadamente os colaboradores, com as suas roupas de menino pobre, mas limpinho, sem tem preocupado o brio dos tipógrafos; comerciantes e beneméritos têm conseguido todos os meses dar-lhe força para sair à rua”. Com este espírito de missão e colaboração a saída do jornal era bem sucedida.

Não admira que o “Vida por Vida” tenha sido um dos boletins que prestava melhor informação sobre a actividade dos bombeiros e da causa do voluntariado. Nas suas quatro páginas, tratavam-se de assuntos de interesse nacional, destacam-se as orientações dos congressos, as festas dos aniversários, as obras no quartel, a aquisição de novos equipamentos, a ocorrências dos sinistros mais graves e as cheias no rio Douro, e de assuntos de carácter técnico. Havia ainda lugar para os assuntos citadinos e para as crónicas e histórias literárias. Tinha vários e prestigiados colaboradores, como Dr. Manuel Braz Magalhães, os jornalistas Rogério Reis e Manuel António, os escritores João Bigotte Chorão e Cruz Malpique, o poeta Adolfo Leitão, o Comandante Carlos Cardoso, Manuel Montezinho, António Rodrigues Coutinho, Alberto Valente, Manuel Blanco Pires, Prof. Eurico Patrício e muitos mais.

Entre essa plêiade de nomes, salientava-se o médico e grande escritor reguense João de Araújo Correia. A secção literária era quase da sua responsabilidade. Escrevia a “Enfermaria do Idioma” para ensinar o uso correcto da língua portuguesa, que assinava com o pseudónimo de Constâncio de Carvalho e as deliciosas crónicas, sobre diversos temas da vida e da história local, mais tarde editadas no livro”Pátria Pequena”.

O escritor duriense na introdução ao seu livro, publicado pela Imprensa do Douro, em 1977, não esqueceu a importância do “Vida por Vida”, ao lembrar a tristeza que sentiu com o seu desaparecimento:

“As notas que constituem este livro foram publicadas quase todas sem o meu nome no boletim Vida por Vida.


Mas que é lá isso do boletim Vida por Vida? Responderei a esta pergunta, que o menos curioso das letras me faça, dizendo que o boletim Vida por Vida foi órgão da quase secular Associação Humanitária dos Bombeiros do Peso da Régua.


Publicou-se entre 1956 e 1974 Depois, deu-lhe o tranglomanglo. Morreu em flor. Não chegou a dar fruto.


Chama-se o tranglomanglo ao mau-olhado das bruxas e duendes, seja o que for de maligno, que não deixe ir vante, nos meios pequeninos, qualquer iniciativa útil ao comum. Nesta vila do Peso da Régua, tem assento e quartel esse mau privilégio. Sopra a qualquer lamparina acesa de oratório intelectual.


Compare-se com uma luzinha o boletim Vida por Vida. Veio o tranglomanglo, com boca de raia e pernas de rã, abafou-lhe! Deu-lhe o ar – como se diz, entre comadres, quando se fala de sopro ruim, inimigo do bem e da claridade.

As notas que lancei no Vida por Vida foram variações de temas gratos à minha índole. As menos doces foram setas de papel disparadas pelo meu arco sempre insofrido, contra fealdades e vícios de cunho provinciano. Pouco adiantei com os disparos, porque as setas foram de papel. Mas, sosseguei o arco e a mim me sosseguei no fim de cada arremesso.

Impôs-me a obrigação de publicar este livro uma senhora que aprecia quanto escrevo.

(…)

Não é nebuloso o título do livro, A minha Pátria Pequena é a vila e o concelho do Peso da Régua. Aqui nasci, aqui vivo e aqui morrerei sem espírito provinciano. Sinto-me livre de semelhante espírito, que até nas cidades é empecilho do homem.”



O “Vida por Vida” também não passou despercebido no seio dos bombeiros. Com a devida atenção foi lido de norte a sul do país e mesmo nas ex-colónias portuguesas. Chegou a ter um número elevado de fiéis de leitores, que faziam chegar os seus comentários elogiosos. Através dele, os bombeiros da Régua serviam-se para mostrar a sua imagem de modernidade e de afirmação como um dos melhores e mais e mais eficientes corpos de bombeiros do norte, preparado e instruído pelo Comandante Carlos Cardoso.

O jornal “Vida por Vida” atingiu rapidamente prestígio e notoriedade. O Comandante Manuel Augusto Rodrigues de Amorim, dos Bombeiros Voluntários de Arrifana, apresentou no Congresso dos Bombeiros Portugueses, realizado em Matosinhos (1966), uma proposta para a atribuição de uma Medalha de Ouro, da Liga dos Bombeiros Portugueses, para o jornal. De forma inédita, e pela primeira vez, a magna assembleia aprovava-a por unanimidade e, assim, manifestava o reconhecimento e a importância dos órgãos de comunicação oficiais dos bombeiros portugueses.

Em 1969, o colaborador Rogério Reis expressou num dos seus brilhantes artigos a ideia de que “está por fazer a antologia dos melhores trechos aqui publicados mas não se pode ter-se uma visão exacta do Alto Douro e dos seus problemas sem se atender aos depoimentos neles arquivados”. Na verdade, temos que concordar que “pelas singelas colunas desfilaram mestres da cultura e do bairrismo, como das missões humanitárias que estão na essência dos bombeiros” e ficaram registados diversos “depoimentos aliás sinceríssimos de quem viveu e sofreu o drama das aspirações das criaturas, da economia e de tudo o que interessa a uma causa afinal comum.”

Nos nossos dias, o “Vida por Vida” revela-se um documento histórico com interesse para queira conhecer um pouco melhor a sociedade reguense nas últimas décadas do passado século. A moderna história da Régua não pode dispensar a consulta deste periódico dos bombeiros da Régua. O investigador atento vai descobrir que o fluir da vida da associação se cruzou com alguns dos principais acontecimentos que mudaram os horizontes da cidade e do concelho nos seus aspectos sociais, culturais e humanitários, onde se revelaram cidadãos exemplares com uma especial atitude abnegada e de cidadania, que procuraram valorizar a sua sociedade do tempo, na construção de futuro melhor para todos.
- Peso da Régua, Janeiro de 2010, J. A. Almeida.
(Clique nas imagens acima para ampliar e visualizar melhor)