terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos XV, XVI e XVII

Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III

Não Matem A Esperança - Capítulo XV
Dezoito horas.
Os soldados rodeiam a fogueira onde coze o arroz que, com sardinhas de conserva, será o jantar. As armas quedam-se silenciosas, mas bélicas, junto deles e de mim. Os rostos dos soldados brilham distintamente à luz viva das linguetas de fogo, desenhando-lhes os contornos. Há os que riem com as anedotas contadas para passar o tempo; há os que fitam, sem pestanejar e de lábios colados, a panela que se vai sujando de fumo.

A lua, medrosa, começa a sair do ovo imenso que é o céu com a cor da noite. No poente longínquo, os restos de sol, como nos últimos focos dum incêndio gigantesco, tocam a selva. Vai escurecendo dum modo saudoso que nos dá uma sensação de frustração. Relampejando de x em x instantes, umas faíscas nervosas mostram-nos formas mal definidas de nuvens escondidas, esbranquiçadas e gorduchas de água, antecedendo os trovões que, na solidão do mato, são como urros de monstro revoltado.

Na base do planalto em que estacionámos, desenha-se uma circunferência escura e compacta de mata. As copas e os ramos juntam-se, desprendem-se, abraçam-se, agridem-se, formando um todo que, visto de longe, se julga impossível penetrar. No seu seio, contudo, há uma vida animal e febril mais respeitadora que as dos homens. No lado norte, erguem-se as labaredas de uma queimada que conseguiram furar a cúpula selvática e expandirem-se livres e triunfantes.

Os homens encarregados da segurança vigiam o sector de observação que lhes foi confiado.

O cozinheiro de ocasião avisa que o «jantar» está pronto. Come-se para sossegar a barriga. Uns, engolem lentamente e em silêncio, deixando ver perfeitamente a saliência que, na garganta, o arroz forma rumo ao estômago; outros, aqueles a quem a vida ensinou a serem optimistas (questão de hábito?), separam cada colherada com comentários que têm qualquer coisa de forçado.

Depois, a maioria, conversa. Alguns, mais sensíveis a estas coisas, retiram-se assobiando, baixinho, modas das suas terras; outros, ainda, como pasmados perante coisa nunca vista, fixam a lua com lábios em movimento, num monólogo interior.

A noite está adiantada para aqueles que vivem na selva. A lua é rainha. A orquestra do mato toca a sinfonia da vigília nocturna.

Acomodo o meu saco de dormir na cabine da viatura e deito-me, encolhido, no assento. Na caixa, os mais atrasados em procurar posição, impacientam-se até que ficam. Encosto melhor a cabeça à camisola que faz de travesseiro e adormeço com a lua a trazer-me saudades de alguém. De ti Rosita.

No lusco-fusco, os derradeiros fios solares entranham-se no matagal como serpentinas prateadas em confuso folgar. O capim alto ou rasteiro, as mangueiras, cajueiros, maúmas, lusares, tudo isto e muito mais se espaceja ou complica, agarra aqui, solta acolá, e de súbito, se, se contar, aparece uma clareira para uma machamba, para uma palhota e, às vezes, até para uma «temba», onde em noites de luar sedoso se dança o batuque para espantar espíritos maus que trazem a doença irremediável. E, acordando, repentinamente, o silêncio sepultado no inexplicável da noite, o piar taciturno do milhafre anuncia a chegada da toutinegra, murrambé, marrié, namurire e de mais passarada nocturna que toma conta das horas mortas.

Enquanto os homens dormem no seu descanso merecido, eu sonho, velando, com uma terra onde o amor seja sincero. Onde o homem seja respeitado no corpo e na alma. Onde os ruídos de guerra sejam o esvoaçar de aves por entre palmeiras; sejam risos de crianças sem fome; sejam os toques dos sinos, entoando as avé-marias, ao entardecer, na minha aldeia. Uma terra onde os homens caminhem de mãos dadas; se sentem a uma mesa e falem e raciocinem e resolvam na paz, no amor, na justiça feita verdade, não percam tempo nem dinheiro nem brinquem com os povos; se lembrem que a RAZÃO é a única força da vida, que nela assenta a formação do mundo e do homem; que negá-la é negar a existência daquilo que somos e em que vivemos, é aprovar o sofisma. Podem-se fazer milhares de acordos selados pelo dobro das assinaturas, mas se não forem acordados e selados pela RAZÃO, todos eles serão negativos e ofensivos, apenas farão procriar ódios e vinganças, revoltas e perseguições, guerras e mortes, apressando o mundo para o seu fim mais injusto e cruel: a sua destruição.

- Então, pá, alguma novidade?
- Nada.

Porque será que os homens precisam de olhar pela sua segurança? No mundo que sonho não seria necessário: os homens dormiriam de portas abertas, falariam com os corações abertos, competiriam para a vitória de todos, trariam sempre nos olhos a imagem dum Cristo Histórico extenuado na cruz.

E no meu adormecer lento e tardio, o feixe prateado dum luar poético traz-me a esperança desse mundo, no seu manto límpido, optativo duma realização futura.

Não Matem A Esperança - Capítulo XVI
A noite estava a nascer da barriga do dia. Eram cinco horas de Land-Rover. O calor apertava ainda, criando riachos de suor no corpo. Dois furos, quase seguidos, arreliaram a nossa paciência e a do «monhé» que atrasou a sua viagem para nos ajudar. Os solavancos, provocados por buracos-surpresa na picada, faziam-nos dar saltos de marsupial. Devíamos chegar ao acampamento antes da lua. Lá, arranjaríamos um «pisteiro». Um javali, perdido, obrigou-nos a outra paragem. Saltei. Levei a arma à cara. Apontei. Olhou para mim. Emocionei-me... Deu meia volta e partiu à desfilada...

- Então não atiraste?!
- O tipo não estava quieto...

Partimos de novo aos saltos. Pus-me de pé. Ofereci-me à brisa do entardecer, deixando que ela me chicoteasse a face, revolvesse os cabelos, refrescasse o corpo. Acalmei. («Bolas, falhar um javali!...»). De quando em vez, um negro desmontava da sua «ginga» e cumprimentava cheio de salamaleques, uma saudação demasiado espectacular, não sincera, consequência duma tradição imposta, nem sempre pelos métodos mais próprios.

- Cautela! Agarrem-se!

Finquei-me bem de pés e mãos e o pontão foi passado não sem novidade: uma garrafa-termos, que levava cerveja, partiu-se.

- E agora?...
- Não se bebe...

Um bando de macacos atravessou a estrada, lançando à nossa passagem guinchos estridentes. Olhei para trás e vi alguns empoleirarem-se nos braços duma mangueira.

Chegámos ao acampamento.

Falámos e bebemos cerveja gelada com um caçador profissional: atarracado, mas entroncado de rijos músculos, tez morena, abundante calvície, falares e modos desembaraçados. Ama o mato. Enfiou-se nele novo. Construiu casa de alvenaria, casou com uma mulata, aprendeu a matar caça e a vendê-la, ninguém o chateia, vive para os filhos, os negros respeitam-no, nuca teve «milandos». Detesta as cidades. Adora a simplicidade do viver na selva. Emprestou-nos um pneu sobresselente, agradecemos o acolhimento e partimos. Sem «pisteiro» porém. Não apareceu nenhum.

A noite germinava. Como uma flor se abrindo. Como um ser humano sem maldade e sem estupidez. Com ela todo o seu fantástico festival de sinfonias dos bichos-habitantes dum mundo misterioso, dos uivos distantes da quizumba, de estrelas avulsas crivadas num céu de imensidão que impressionava e subjugava. Como era bela aquela noite no mato! Quem me dera ser poeta autêntico para transmitir a beleza, a ânsia, a alegria, a tristeza por mim sentidas nessa noite tão metafísica da minha recordação! Apetecia me ter asas e voar por aquela escuridão imensa. Rebolar-me no capim já cacimbado, reunir os bichos todos daquela noite e, juntos, entoarmos uma poesia-mensagem feita de paz e amor que ecoasse por todos os cantos da terra! («Lírico» - dirá o leitor. «Não!» - brado.).

O condutor bateu com a mão na porta.

- Que é?
- Leopardo!
- Onde?!
- Ali!

Dois olhos amarelos e brilhantes estavam hipnotizados pelos faróis. Tiraram-me a arma das mãos. Não me mexi. Um chorar cortante. De esfrangalhar os nervos. Um calafrio terrível, gelado, a, percorrer-me a espinha. Os pêlos, como agulhas, em pé. Senti-me mal disposto, sem forças. O tiro falhara e fiquei satisfeito que assim tivesse sucedido.

Virámos à esquerda, deixando a picada principal. A princípio, o capim era escravo de grossas mangueiras e cajueiros. O trilho largo, aberto pelo primeiro carro que lá entrara e consolidado pelos seguintes, seguia por entre mato denso que roçava o Land-Rover; alguns ramos, mais inclinados, obrigavam-nos a baixar a cabeça; os solavancos eram maiores. Algumas queimadas dispersas ardiam sonolentas, empestando o ar dum cheiro acre e abafado. A lua, com o seu D mentiroso, chamava as estrelas.

- E se parássemos para comer qualquer coisa?...
- Mais logo...

Ligou-se o farolim à bateria e os faróis apagaram-se.

- Agora nada de atirar ao calha!...

Procurei, assim como os outros, posição certa e começámos a seguir o jacto do holofote. O mato espesso, entrecortado por algumas clareiras queimadas, não dava grandes esperanças. Ansiávamos a planície. («Lá a caça é maningue!»). O bater cavo duma mão no tecto do tejadilho. A viatura parou. Cegos pela luz dois olhos reluzentes.

- Atira tu...

O tiro partiu, seco como uma chicotada e a lonjura trouxe-nos o eco. Grunhidos diferentes, aqueles grunhidos duma fera ferida, disseram que a bala acertara. Saltei e embrenhei-me na vegetação, guiado pelo foco. Perdi-me em procuras, seguindo os movimentos daquele. Regressei desolado...

- O «tipo» rastejou. Não pode ir longe.

Alguns milhanos apareceram e, como um comboio saindo de um túnel, entrámos na planície. Esmagadora! O céu formava um arco de horizonte a horizonte, ligando-os. A lua e as estrelas pareciam maiores. O capim rasteiro dava-nos liberdade de visão. Senti-me pequenino. Olhava para o alto, girava os olhos à volta, e tinha a sensação de ser submetido por algo que não via.

- Pára!

Mais uns olhos obliterados. («Não posso falhar!»). E não falhei. O chango dava às patas em aflitos estremeções. Os seus olhos tristes e nevoentos traziam-me um sinal de morte. Tentou erguer-se, numa manifestação última de vida, e tombou. O seu ventre, ainda a latejar, só deixou de parar quando o seu corpo retezou finalmente. Içaram-no para a caixa de carga. Acendemos uma fogueira que nos daria a direcção conveniente se nos perdêssemos naquela vastidão. Puxei dum cigarro. Uma travagem brusca e aí vou eu, de cabeça, direito às pernas do homem que ia a farolar. Quando me levantei já o tiro fora. Outro chango. Mais dois olhos de morte a acompanharem-me. O cacimbo gelava-me o corpo, penetrando-me os ossos. Vesti uma camisola grossa, mas, mesmo assim, não aqueci. Voltei a sentar-me e a contemplar aqueles olhos muito abertos, como se quisessem perguntar qualquer coisa, olhos que nenhum mau feitiço lançaram a quem os matou. Comecei a chatear-me daquilo. Pensei que fora um homem que matara sem razão, sem verdade, nem sequer com honra, nem igualdade de situações: farol para ali, olhos fixos e mata! Há alguma ombridade?! Entreguei a arma e preparei-me para adormecer, encostado aos corpos mortos de dois seres roubados à selva.

Não Matem A Esperança - Capítulo XVII
O avião chegara ao fim da tarde e trouxera o correio. Teve uma carta da mãe. Falava-lhe da sua casa, da sua terra, de saudade e tinha palavras de incitamento suave e maternal à paciência e esperança humanas. Uma frase, porém, lhe ficara e se agitava dentro de si: «Meu filho tenho esperanças em ti. Ainda és novo e hás-de ser alguém.». Aí estava. Sim, ele queria ser ALGUÉM válido que as gentes vissem que merecia a pena ser meditado. Desejava-o muito. Queimava-o um fogo quente e acariciador, provocando-lhe o nervosismo dos insatisfeitos. Um fogo que o enlouquecia de ânsia de concretização. Não era vaidade nem ambição exageradas. Era um desejo humano de se realizar, consciencializar, e mostrar aos cretinos algo que os tornasse mais imbecis e aos racionais oferecer uma ajuda para a sua luta contra os portadores de fantasmas.

Lá fora, o sossego era violentado pelo coaxar dos batráquios no atoleiro, pelo pipio das aves vadias da noite, pelos «uis» agoirentos, soando ao longe, das hienas manhosas, e que tinham qualquer coisa de sicário. As estrelas, na altura, estavam privadas de lua. De quando em vez, uma mudava de sítio numa correria maluca até se perder sem que mais a nossa vista a alcançasse. O gravador falava baixinho (o botão de som estava no 2) as músicas da sua preferência. A bobina rolava lenta. «Abriu» José Gomes Ferreira:

Há anos de raiva
Que te busco em vão
Melodia!

A sua melodia era a esperança. Esperança de encontrar nas horas do amanhã a efectivação de todos os seus ideais, repletos de mensagens gritantes de revolta e nojo pelos homens que se assassinam mútuamente; de mensagens triunfantes de amor e alegria para com os povos que vivendo na liberdade, lutando com as armas da inteligência, da razão, do suor e da vontade indómita de vencer pelo trabalho honrado, esgadanhando a terra desértica e escaldante com as suas próprias mãos, plantaram as árvores que deram os frutos das belas realidades sociais.

Mas quem te ouve, Melodia,
Para além do contorno do silêncio?

Não seria apenas no limite do silêncio que a sua voz se escutaria. Havia de gritar, mais alto que o trovão, a sua raiva contra os homens estultos, dominados pelas algemas da estupidez.

Pobre voz que trago em mim
E há-de morrer ignorada
Nas trevas dum sol profundo
Sem luas de superfície

A sua voz seria para os que a quisessem ouvir. Havia de nascer no fulgor duma aurora de liberdade, misturar-se com o chilrear das aves bem dispostas da manhã, penetrar nos corações das gentes, prolongando-se pelas noites de lua cheia ou lua nova ou quarto crescente ou quarto minguante (todas as noites de todas as luas). A sua voz não morreria ignorada pelas pessoas honestas.

O vento divulgava-se pela rede antimosquiteira da janela, como se viesse fazer coro com a música, com a poesia, com os seus pensamentos. O relógio duma Igreja tropical repetiu doze vezes o mesmo som. O seu colega de quarto entrou.

- Então pá?
- Então o quê?
- Nada de novo?
- Novo? Mas isto é sempre a mesma porcaria?

Ele sorriu significativamente. Puxou dum cigarro e leu mais uma vez: «(...) Ainda és muito novo e hás-de ser alguém.».

Fechou-se a luz e. olhando a ponta do cigarro, repetia só para si: «ALGUÉM... ALGUém... Alguém... Alguém... alguém...».
- Manuel Coutinho Nogueira Borges

sábado, 19 de dezembro de 2009

Feliz NATAL !


Cada um de nós faz parte desse Milagre, dessa Maravilha que é o nosso Planeta.
Cada um de nós tem um compromisso muito importante e significativo com a VIDA.
 FELIZ NATAL e UM ANO NOVO ABENÇOADO!

(Evite sobreposição de sons desligando o player da "Voz do Douro - Rádio Douro FM" localizado no menu lateral direito, um pouco abaixo deste post.)

História do Bairro dos Bombeiros - Do sonho à realidade


A AHBV do Peso da Régua é, desde 1986, proprietária de um bairro de habitação social – num total de 30 fogos - construído para as famílias dos seus bombeiros voluntários, que integram o quadro do corpo activo.

O bairro dos bombeiros da Régua, como um equipamento de cariz social, complementar aos fins da associação deve ser caso inédito país. Em certa medida, a sua construção é mais um bom exemplo da ambição dos projectos sustentáveis que, durante a sua centenária existência, a associação tem materializado, engrandecendo o seu historial.

A história da construção do bairro dos bombeiros esteve marcada por muitas contrariedades e vicissitudes. Com o esforço e a determinação de muitos e bons dirigentes ultrapassaram-se todas as barreiras e dificuldades. A sua edificação começou como um sonho. A persistência humana tornou-o numa realidade.

Contribuíram para a construção do bairro muitos protagonistas e, sem quaisquer dúvidas, uns exerceram um papel mais decisivo e influente. De uma maneira especial, todos foram audaciosos para realizarem esta magnifica obra, apesar dos inesperados contratempos, mas que serviu para elevar a condição dos bombeiros.

Como obra de grande dimensão, é normal que se tenha iniciado num mandato social e se tenha prologado pelos imediatos, já com novos dirigentes. Sem se desconsiderar o papel individual de certos directores, um empreendimento como este, quando tudo não corre de feição, como foi o caso, terá de ser considerado um feito colectivo, de muitas vontades e de pessoas que, num ou noutro momento da obra, deixam as suas marcas. Os seus testemunhos evidenciam que acreditaram na afirmação e vitalidade da associação, acrescentando-lhe um património importante e valioso.

A ideia da construção do bairro dos bombeiros surgiu no seio da Direcção do Dr. Júlio Vilela (1954-1963). Em confidência com o senhor Noel de Magalhães – que integrou essa direcção - ficamos a saber que as primeiras tentativas para se fazer o “nosso bairro” sucederam nos mandatos do saudoso advogado reguense.

Em 1960, o Dr. Júlio Vilela solicitou ao Ministro do Interior um pedido de comparticipação para a construção do bairro. A resposta veio negativa, dando conhecimento “ser impossível dar satisfação aos desejos dessa Direcção”. Apesar de tudo, a sua Direcção não desistiu e recorreu ao outro ministério governamental para ter apoio, lembrando que: “não querendo nós descurar o assunto, ousamos vir novamente á presença de V. Excia para solicitar que o nosso pedido vem há a ter viabilidade, pois só no Ministério das Corporações nós esperamos o amparo para a realização desse sonho que se há-de tornar realidade.”

Desta vez, foi conseguido o apoio do governo para financiar. Chegam a ser disponibilizadas pequenas verbas para comparticipar a obra. O terreno, onde deveriam ser erigidos os 32 fogos, estava escolhido. O projecto de construção das casas encontrava-se também em conclusão, sendo o seu desenho desvendado no jornal “Vida por Vida”. Apenas faltava negociar um empréstimo na Caixa Geral de Depósitos, o qual não deve ter sido deferido e, assim esta obra, não se chegou a iniciar-se com os seus primeiros sonhadores.

Se era forte e determinada a convicção desses directores ela não se perdia nos mandatos das direcções imediatas que elegem a construção do bairro o principal objectivo quer nos orçamentos quer nos planos de actividades.

Estabelecem-se, em 1970, negociações com a Casa do Douro e a Direcção que tem como seu presidente o Dr. José Lopes Vieira de Castro (1968-1971) formalizava a compra de uma parcela de terreno, com área de 5.000 m2, na rua Dr. António de Almeida, destinada à construção do bairro. Está dado um grande passo para o surgir da obra. O seu início aguarda melhor momento e directores mobilizados em reiniciarem todo este processo.

Em 1974, a Direcção liderada pelo Dr. Aires Querubim (1972-1980) toma a decisão de escrever ao Fundo de Fomento de Habitação - Delegação do Norte, a pedir-lhe apoio para a concretização da obra e, mostrando trabalho, envia-lhe um fundamentado estudo do levantamento do terreno. Esse organismo público conclui pela “viabilidade e utilidade da realização da obra”. De seguida, deslocavam-se à Régua os seus técnicos para procederem ao estudo da implantação e se encarregarem de elaborar o projecto para a “construção de 30 fogos da espécie T-3e T-4”.

Executado o projecto, a direcção do Dr. Aires Querubim promove um concurso para a “construção do conjunto habitacional dos Bombeiros da Régua”. Na sessão de abertura das propostas, realizada no dia 23 de Setembro de 1978, no Salão Nobre da Câmara Municipal da Régua, fica-se a saber que concorrem ao concurso duas empresas com sede na Régua. São elas a “Construtora do Douro, Lda.” e a firma “José Ermida Lopes & Irmão, Lda.”, que apresentam, respectivamente, o valor de 29.876.355$40 e de 28.875.053$50. Decidida uma reclamaçã, a direcção da associação adjudicava à construção da obra, em razão do valor mais baixo, à firma “José Ermida Lopes & Irmão, Lda.”.

Após contactos a nível político, a direcção consegue um financiamento para a obra no Fundo de Fomento de Habitação. A autorização pertenceu ao Secretario de Estado da Habitação e Urbanismo, Casimiro António Pires, que a faz publicar num Aviso – Diário da República, II Série, de 22 de Março de 1980 - a “conceder aos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua uma comparticipação de 30.0000$00 destinada à obra de construção de trinta fogos.”

Em 3 de Setembro de 1980 será outorgado o contrato de empreitada. Assinava-o em nome da associação o secretário Manuel Pinto Dias Montezinho, um director zeloso, competente e atarefado a substituir Aires Querubim, empossado Governador Civil do Distrito de Vila Real, em 14 de Fevereiro de 1980. Nesse contrato, ficava estabelecido na cláusula sexta que o prazo para conclusão da obra era de 24 meses, contados da assinatura do auto de consignação. Lavrado e assinado o auto de consignação em 1 de Outubro de 1980, iniciam-se os trabalhos de empreitada. Ainda com pouco obra executada – foram apenas pagos cinco auto de medição - os trabalhos paravam no dia 2 de Novembro de 1981, retirando a empresa construtora os seus operários, materiais e as máquinas.

No dia 18 de Novembro de 1981, o fiscal da obra, o Eng. José Manuel Correia Rodrigues dava aos directores da associação uma má noticia, ao informar que “prevê-se que os trabalhos não sejam reiniciados dado que parece estar iminente um processo de falência do empreiteiro”. A sua previsão viria a verificar-se. A nova direcção, presidida pelo senhor António Bernardo Pereira (1982-1983) ficava com um problema grave nas mãos para resolver na justiça. Com as obras paradas, em Janeiro de 1982, a sua direcção apresenta no Tribunal Judicial da Régua uma “Notificação Judicial Avulsa” contra a empresa construtora, a participar-lhe “que rescinde o aludido contrato de empreitada por culpa unicamente imputável à requerida”.

A notificação judicial não teve oposição. Para efeitos da posse administrativa, no dia 13 de Janeiro desse ano, era feita a medição da obra executada e a relação do material existente. Esteve presente pelo Fundo Fomento de Habitação, o Eng. Defensor de Castro e pela associação, o presidente de direcção, António Bernardo Pereira, o secretário Júlio Alfredo Mota e o fiscal da obra, não se fazendo representar da construtora. Como se esperava, a empresa de construção entra em processo de falência. O Dr. Martins de Freitas, em 22 de Abril de 1982, informava a direcção dessa situação. Sendo este advogado nomeado administrador da falência, pedia que o informassem se os créditos que aquela dizia ter a receber da associação pela obra adjudicada correspondiam à verdade. A direcção respondia negativamente, ao fazer constar que "como as entregas que esta associação fez à referenciada totalizam 4.440.320$00, resultam daí um crédito a nosso favor de 2.320.454$00, cujo pagamento desde já reclamamos."

Estando a ser resolvidos problemas jurídicos com a seguradora Aliança Seguradora para reaver a caução, o que o advogado Dr. Araújo Correia consegue receber, a direcção de António Bernardo Pereira não deixa a obra parada. Com o apoio do Fundo de Fomento de Habitação prepara o programa para um “concurso ilimitado para a arrematação da empreitada de conclusão da construção”. Aberto por anúncio em 13 de Janeiro de 1983, o prazo para a apresentação das propostas decorreu até ao dia 2 de Fevereiro desse ano. Concorre a empresa de construção “Eusébios & Filhos, Lda.”, apresentando um valor de 45.000.000$00. Assinado o auto de adjudicação em 11 de Março desse ano, recomeçam as obras de conclusão do bairro.

Eleita uma nova direcção, dirigida pelo Dr. José Luís Andrade (1984-1987) que acaba por receber uma mão cheia de problemas. Apesar de terminada a empreitada, constatava-se que faltavam fazer obras de acabamentos e facturas da empreitada para pagar, tornando-se necessário recorrer a um empréstimo. Concluídas as obras, no dia 22 de Janeiro de 1986, este director entregava na Repartição de Finanças a declaração, por ele assinada, para a inscrição na matriz do bairro. Deveria começar o processo de entrega das casas que faziam falta às famílias de bombeiros a viverem em situações desconfortáveis. Mas, tal não aconteceu neste mandato. Mantém-se trinta casas desabitadas durante três anos.

Uma nova direcção sai das eleições, tendo à frente o professor Fernando de Almeida (1987-1990). Sem mais demoras, encarrega-se de finalmente entregar as casas aos bombeiros mais necessitados. A ele se fica a dever o trabalho de organizar os pedidos de inscrição, celebrar os contratos de arrendamento, estabelecer o valor das rendas - no regime apoiado e com uma bonificação para os bombeiros - e seleccionar as primeiras famílias.

Estava concretizado mais um sonho dos bombeiros da Régua. Demorou mais algum tempo a tornar-se visível, sobretudo aos olhos dos que nunca acreditaram. Não sei o que eles disseram - nem interessa - mas nas páginas da história da associação ficava escrito o esforço de muitos directores – aqui recordados - que tinham conseguido erigir no “coração da cidade”, cinco prédios de habitação social, para morada das famílias dos bombeiros.
- Peso da Régua, Dezembro de 2009, J. A. Almeida.
(Clique nas imagens acima para ampliar e visualizar melhor)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos XI, XII, XIII e XIV


Não Matem A Esperança - Capítulo XI
Tarde de ambiente saturante, com berros deste e daquele, sonolência de espíritos, hábitos das coisas repetidas até à saturação.
 
Ao longe, as ondas da baía dobram-se e desdobram-se na languidez do cansaço. A selva parece crescer vertiginosamente, beijada pelas águas. Na praia, há corpos tostados que arrastam a monotonia do tempo e a sensaboria de nada fazer; nas rochas, lá adiante, corpos negros apanham as conchas do seu sustento.
 
A noite aproxima-se. O seu silêncio em breve nos trará a calma ou a revolta dos corações submetidos (corações e almas e corpos e tudo). As estrelas e a lua darão a ânsia e os desejos de libertação; as esperanças da fraternidade; a fúria que as pessoas conhecem; a imaginação esfomeada, traduzida nos exauridos sentimentos e dos sonhos amarfanhados por não se poderem dizer, pois o mundo está a abarrotar de cobardes e medrosos ou sejam, portanto, os tipos bem colocados na vida (sim, nem todos, claro). O cansaço não é apenas físico é, também o amolecimento resultante da desmoralização momentânea que não permanente. E é nestas alturas que se lembra:
 
Era uma noite de lua esclerótica e estrelas de mármore. As pessoas vinham para as varandas ou para as soleiras das casas. Crianças rebolavam-se nos atalhos enquanto as mães ralhavam. Era Verão. A terra estava quente e havia pessoas que dormiam sobre ela. Os pastores deixavam a serra e vinham, de cajado na mão e fome nos olhos, descendo para a aldeola.
 
Um aglomerado rural que conhecia a indiferença dos homens que mandavam e as negaças do progresso que não lho davam a saber, que trabalhava de sol a sol nas cumeadas agrestes. Mas, pouco a pouco, a sua vontade transformou o negativismo na produtividade sem retrocessos.
 
Ele, só, no cimo do monte, contemplava essa aldeia, berço do seu nascer, em que forjara o seu ente, conhecera o amor e o ódio dos homens (dos homens com poder de odiar). Dera-se com alma e coração, sem pedir nunca prémios, a essa gente simples (mesmo na inteligência) onde, porém, ainda se degladiavam a maldade, as invejas, etc., etc. Apetecia-lhe dizer muito alto uma poesia criada e amadurecida no seu pensar constante e que iniciava assim: «Ó povo!, onde estás tu?». E parecia-lhe ouvir ressoar pelas ladeirasdos montes aquele seu grito que se ia encolhendo na indiferença e as pessoas fugiam para não responderem à sua pergunta.

«És um POETA!» - disseram-lhe um dia, cheios de cinismo. Riu, riu muito, com nojo e com raiva, vomitou tudo que tinha lá dentro, escarrou na direcção dos que assim falaram, mas depois arrependeu-se e chorou, chorou com pena e com amor porque os poetas quando choram é com e por amor universal. E então descia às ruas cheias de buracos e ouvia cantar a poesia nas bocas das moçoilas alegres e nos gemidos das crianças que pediam pão às mães que saíam da padaria. Recordava-se daquelas noites em que as nuvens atiravam lágrimas de chuva e as via escorrer, prateadas, pelas vidraças da sua casa, construída pelo esforço dos seus antepassados que repousavam numa campa fria e negra, consumindo-se aos poucos para que outros ocupassem o seu lugar. Passavam-lhe na memória aqueles entardeceres tristes com as avémarias ressoando no campanário antiquado da Igreja a ruir e que nunca mais era composta (o padre até já fizera um peditório); com os trabalhadores de enxadas aos ombros arrastando-se, cabisbaixos, sob os quintais do cansaço e a lua nascendo também cansada de tanto repetir o seu nascer. E depois vinham as estrelas dizer que já eram horas de deitar; e depois os bêbados, berrando e espancando-se, diziam às gentes da aldeia que também havia estúpidos, gastando o dinheiro na embriaguez, enquanto, em suas casas, os filhos não dormiam com fome; e depois, então, o silêncio esmagador, com corujas e mochos lastimando remorsos que arrepiavam e faziam doer. Ah! Noites da sua juventude em que os namorados escondiam os beijos na dobra duma esquina; em que os malfeitores, embuçados na capa das esperas, faziam vinganças à moda púnica. Noites de revolta, de rosto marcado pelo estilete da angústia; noites de fados de estudante, furando o sonambulismo da natureza, nos acordes da guitarra que gritavam poemas e a voz cantava: «O meu menino é de oiro (...)». E continuava, sempre, noite fora, até o sol nascer.

Mas que fizeram ao menino de oiro? Mataram-no? Não. Não o mataram. Os homens já não matam meninos. O menino de oiro continua vivo. É que ele só morrerá quando a esperança dos poetas morrer.

Não Matem A Esperança - Capítulo XII
O futebol, com as suas habituais consequências, terminara. A música do portátil do Zulmiro Taberneiro era dominada pelo vozear, quase perpétuo, de bocas tresandando a ebriedade.

- Tu é que jogaste mal Trunfasses!
- Homessa!... Onde tinha eu os trunfos?!
- Puxavas paus! Neles havia segurança cá no gajo!
- Eu é que ia adivinhar?
- Dei-te o sinal! Bati ou não bati o pau? Tu é que és um burro a jogar!
- Ai eu é que sou Burro?!
- Não, sou eu... Baralha lá isso... Vamos a outro risco... Agora temosde dar bandeira...

Naquele ambiente pesado, tão pesado como dizem ser a mão dum ditador, confundiam-se os vapores do álcool, ingerido em abundância para gáudio do Zulmiro, e as nuvens de fumo provenientes dos mata-ratos e dos três-vintes. No chão térreo, pregavam-se as botas enlameadas; os escarros avermelhados pelo tinto e as poças de resíduos daquele, pendidos dos copos que mais se agitavam como que a impôr as suas razões, assemelhavam-se a borrões dispersos em painel de ensaio. A um canto, sentado na saca de arroz, o Pelotas observava, com um sorriso de desdém, aquelas faces congestionadas pelo vinho e pela exaltação, alguns de olhos já vidrados e tontos. Virando-se para o Zé da Aninhas que, de ponta apagada colada nos lábios, encostado ao bidão de petróleo, parecia alheado de tudo, perguntou:

- Em que pensas Zé?
- O quê? Em que hei-de pensar? No raio da vida! Não consigo pagar os calotes! O meu Zé todos os meses me pede dinheiro, diz que tem passado muitos sacrifícios quando vai p'ra selva e ainda por cima tenho a patroa doente, como tu sabes.
- Que é que o médico disse?
- Que tem de ser operada. E onde tenho eu o dinheiro para pagar? A algum lado o hei-de buscar...
- Olha que sempre há cada uma! Tu és pobre! Quem não pode pagar não paga! Ou a saúde duma pessoa já tem preço?! Homessa!... Atão, agora, só os ricos é que tinham direito a estar doentes, não?! Raios de mundo este! Até dá vontade um home esfrangalhar tudo, carago!
- Se dá...
- Mas se precisas de algum diz lá... Tenho pouco, mas inda...
- Obrigado Pelotas...
- Aqui não há obrigados nem meio obrigados! Nós andamos no mundo não é para passarmos o tempo com agradecimentos! Pagas quando quiseres. Depois da vindima ou quando calhar. Cá comigo é pão-pão-queijo-queijo! Amanhã vai a minha casa.
- E se a «tua» sabe que me emprestaste dinheiro?
- Homessa!... Tem alguma coisa com isso? Quem é que o ganha? Quem manda na minha casa? Quem é? Diz-me caramba! Quem é que sua que nem um macho e anda ali com a enxada nas unhas? Sou eu ou é ela? Diz lá, anda! Homessa!...
- Tá bem, não te zangues...
- E deixa lá, Zé! A vida cá se arranja, mas isto inda há-de dar muita volta! Ai há-de! Inda havemos de ser ricos!
- Deus te ouvisse...
- Há-de ouvir, que Deus é justo e sabe ver onde está a verdade e a mentira! O sol quando nasce é p'ra todos, ouviste?
- Já o senhor comendador diz a mesma coisa, mas...
- Deixa lá os outros. Os outros são os outros!

Vozes gritadas continuavam a misturar-se com a música, com as lamentações, com o vinho que se ia entornando, com os escarros que a poucoe pouco assoalhavam o chão térreo, com o fumo dos cigarros, com as arrelias da sueca.

O Zulmiro Taberneiro, de sorriso aberto até às orelhas, continuava a encher copos com mãos de gatunice já velha.

Não Matem A Esperança - Capítulo XIII
Foi dos primeiros a subir. Constantemente perguntava-se: «Voltarei?». A dúvida, uma dúvida angustiante atormentava-o. Os últimos momentos, antes vividos, confundiam-lhe as ideias. Os militares continuavam a desfilar aos sons marciais da fanfarra, misturando-se-lhes gritos desequilibrados, lenços agitados por mãos já cansadas de tanto se despedirem, corações fracos pela emoção, olhos que já nem lágrimas tinham.

O barco apitou, cumprindo um hábito. Sem saber porquê chorou. À medida que aquele se afastava mais perturbado se sentia, um vazio enorme que lhe furtava as palavras à relva da língua.

Inesperadamente, irromperam os acordes do Hino. Perfilou-se num «sentido» hesitante, pouco militar. Mãos no ar, adeus sem fim, acenos de imponderabilidade; uma criança chorando como se lhe tivessem batido, pois que via sua mãe chorar e ela não sabia por que chorava sua mãe. (Oxalá amanhã não chegasse a vez dela chorar também). Dominou-o uma fortíssima comoção. A seu lado, os soldados deixavam cair lágrimas, como gotas de chuva a escorrer pelas vidraças em noites de Inverno.

O cais ia sendo cada vez mais pequeno. Aquela multidão ondulando os lenços, parecia que movia um lençol gigante. Os rostos perderam-se na distância. À sua frente, um soldado dirigia gestos ineptos, sublinhando-os com gargalhadas iguais àquelas que costumam ser dadas nos filmes de terror. Estava perdidamente bêbado. Mantinha, na mão, a garrafa de aguardente que metia à boca de vez em quando. «Haja alegria! Adeus! Adeus!». E ria, ria, estremecendo todo. Deixou pender a mão numa posição impossível.

O barco ia-se afastando, afastando.

Os alto-falantes anunciaram o começo do almoço. Na sala de jantar, os comentários eram duros e diversos no encarar das pessoas.

Começou a sentir-se tonto. Os soldados andavam de pratos nas mãos sem saberem para onde ir.

Num recanto do «deck», dois tentavam animar o companheiro ébrio que, encolhido no chão, chorava como uma criança acabada de nascer.

Lisboa é um conjunto de pequeninas silhuetas, tapadas por uma névoa de seda. A lancha dos pilotos junta-se ao navio. O piloto desce. Aquele apita bem, há votos de boa viagem. A fragata, que estava ao largo, acompanhava-os durante algum tempo em manobra de circunstância, Gaivotas voam funânbulas, elevando-se, para depois se lançarem lá do alto em êxtases picados que terminam rasantes.

O ambiente asperiza-se. Topa aqui e ali, soldados debruçados nas amarras, olhando para o além tapado. Bocas abertas e deformadas lançamfora o que almoçaram. Outros, porém, resistem bem e até tocam gaita de beiços. No seu andar perdido para passar tempo e esquecer coisas encontra camaradas chorando ou, então, completamente absortos, de olhos arregalados, sem verem nada; o capelão que, há pouco tempo lhe chamara piegas por as lágrimas lhe pingarem, chora por baixo de uns escuros óculos de sol e geme: «Minha mãe!». Olha o mar, as ondas agredindo-se em conflitos constantes. É triste partir para longe, um longe onde a guerra existe e as guerras são todas más porque matam gente, gente que dispara para se salvar, que morre e mata sem tempo para uma interjeição – mas quem fez as guerras? Custa imenso deixar a terra em que nos fizeram nascer; abandonar os frutos incompletos, ainda verdes de todas as esperanças; os amigos com quem se convivera, arriscando profecias, sonhando sonhos de verdade; a família que abafa os gritos medonhos da revolta reprimida.

Navegava-se moderadamente. O barco, rasgando as águas, lança para os lados babas de espuma, Chegam os primeiros radiogramas. Os que os recebem não têm grande vontade de os abrir. Já sabem o que dizem: «Todos estão contigo. Felicidades e um regresso rápido.». Palavras invisas que atiçam labaredas íntimas; palavras obrigatórias nas escalas de preços, compradas ao metro das ideias; palavras textuais, sacramentais como num negócio jurídico e que não podem ser mudadas na sua fórmula sob pena de nulidade. Procura-se alguém para conversar. Cedo acabam os diálogos; é que para se dialogar tem que haver ambiência de liberdade e alegria. Pensa-se muito mais do que se fala e, quando assim é, algo vai mal. Os relógios são atrasados uma hora.

Foi para o camarote e adormeceu com o embalar do barco.

Não Matem A Esperança - Capítulo XIV
Uma e meia da manhã. Iniciou a sua ronda de serviço. Foi à ponte. A lumieira, avivada de quando em vez, do cigarro do vigia, dizia-lhe que alguém velava pelo bom rumo do navio. Da chaminé, preta e bojuda, espessas fumaradas rápidamente desfeitas e levadas para a popa pelo vento gelado; o som equitativo do matraquear dos motores saído da casa das máquinas, pelas clara-bóias levantadas, falava do máximo de velocidade que o paquete levava. Algumas bocas roxas e abertas, roçagadas pela brisa forte da madrugada, dos soldados dormindo nos «decks», davam-lhe pena e sono. Dos porões, vinham, até cá cima, vozes deturpadas pela surdina e pela profundidade daqueles e barulhos de arrastar caixotes. Nas cobertas mais abrigadas, os soldados persistentes ressonavam no meio de tábuas, malas, botas, fardas e um cheiro acentuado de suor. Nos canis, os cães mexiam-se inquietos e um mais corajoso furava a noite com uivos tristes (saudades da terra...). Lá ao longe, uma luz nascia na curva do horizonte. O navio marchava convicto das milhas que percorria, noite dentro, como um gigante dominador. A ondulação era sossegada. Os camaradas das noitadas do presunto («Eh! Pá, são os restos!»), chouriço («Olha que não foi deito de carne de burro!»), cerveja, do jogo e das saudades, riam um riso frio como o vento que ele sentia no seu corpo. Foi atéà proa. Sentir-se só como os gemidos do vento, com o marulhar das águas, com o abaixo-acima daquela e com a imensidão que o rodeava. Contemplar o mar, a noite, o horizonte que nunca se alcança; o mar-mundo, a noite-saudade, o horizonte-ânsia, Inclinou-se para baixo. A quilha rasgando as águas, com um permanente acento circunflexo de espuma doirada pelo luar, lembrava-lhe os arados da sua aldeia, abrindo a terra, negra e húmida no Inverno, ressequida e amarelecida pelo Estio. E recordou a sua aldeia, a sua aldeia de ruas cheias de lama, caminhos que nunca mais se arranjavam, vivendo de promessas, promessas que vinham lá dos grandes, mas que, afinal, nada tinham de grandeza. Seu mundo onde nascera, vivera sua vida realidade ou irrealidade, criara e desmembrara os seus sonhos, formara e destruíra os seus amores de carne ou de espírito, tragara ou mastigara a sinceridade ou a cobardia dos seus pensamentos, onde, em noites sem fim, malucara, alagado em suores de insónia e de ideais, as raízes das suas origens. Olhou o céu: limpo, sem pecado. A luz metálica lançando poesia e saudade sobre as ondas, sobre o barco, sobre ele, umas avulsas estrelas de vidro, de ambiente de cabaret, numa noite que não era sua. Lá bem longe, descansou os olhos, das vertigens do infinito, nos pequenos novelos de espuma que eram luz na escuridão da noite.

O navio navegava sempre, sem hesitações, comendo milhas para cumprir horários, levando sonhos de adormecidos ou de acordados e sobressaltando as águas do seu sono.
- Continua.