segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulo III



Não Matem A Esperança - Cápítulo III

Quando estava chatiado (o que, parecia-lhe, só não sucedia a quem não pensava), vinha até ao outro extremo da cidade em que fingia viver e sentava-se numa pedra gasta pelas águas e olhava o mar.

Na praia, sem barracas, havia os que puxavam a cana de pesca para matar a fome lá em casa ou faziam desporto para dar pontapés no tempo; os que amavam e faziam promessas sob o rugido manso do oceano que abafava o som das palavras; crianças pobres, criadas no abstinente do fácil, brincando o jogo do esquecimento, rebolando-se na areia, engalfinhando-se mútuamente; senhoras sérias – daquelas obcecadas com o bronzeado – tapavam os olhos com os braços e ofereciam o corpo às últimas forças do sol de Verão-quase-no-fim; um cão preto e ruço e bem tratado (um cão burguês) brincava com uma criança de tranças loiras (mesmo loiras) e bem vestida e bem tratada (uma criança de burgueses) que lhe fazia lembrar Lelouch e o seu HOMEM E UMA MULHER.

Um avião roncou lá em cima. E as pessoas levantaram os olhos.

(Eram tardes dolorosas, de tropicalismo exacerbado, homens de troncos nus que escorriam suor; eram tardes longas, com saudades à mistura, com crises de nervos em que apetecia partir tudo e não se podia, em que as ganas para se berrar a plenos pulmões o que se sentia, tinham de ser dominadas pela amargura de renúncia à verdade. Eram tardes longas, longas e tristes, aquelas em que o helicóptero cirindava sobre as nossas cabeças, qual mosquito gigante, ou passava ao largo com uma rapidez aflita, levando dentro alguém que espiava vida, uma vida jovem, uma daquelas vidas que morrem na guerra.

África! Em algumas das suas picadas ficaram para sempre as vidas de amigos que chorava, que choraria sempre, amigos que recordava com mágoa, impotente, e as lágrimas que lhe saíam sem pedirem licença eram a sua angústia, presa por um fio na dobra da garganta. Ele queria gritar um poema a esses amigos que morreram na guerra, atingidos pelos estilhaços da metralha, mas, na realidade, não podia. Ele não podia dizer coisas proibidas. (A não ser, à noite, na cama, com a mulher.).

O par que se amava levantou-se e, sacudindo a areia, dei-los abraçados pela praia fora, rumo ao futuro.

(Não os entendiam. Os seres que os rodeavam não faziam parte do elo profundo que os unia. Já tinham o seu passado. As suas vidas transplantaram-se para uma báscula materialista, deportando-se, logo, as suas acções, os seus julgamentos dos outros. Apreciavam-nos como se fossem iguais a eles. Os seus olhos não eram sinceros: fingiam e mentiam interiormente. Detestava-os. Não os odiava. Que lhe importava que eles pensassem aquilo que pensavam? Queria lá saber dos seus interesses mesquinhos e das suas ganâncias? Estava farto deles, Farto de ver sorrisos amarelos, forçados, ditados pelas conveniências. Farto de malandros norteados pelo aburguesamento do não pensar e do deixa correr. E não lhe viessem com pancadinhas nas costas e risos de ocasião dizer que não valia a pena pensar. Ele queria pensar, queria preocupar-se com eles, com aquelas crianças pobres que brincavam na areia para esquecer a fome; com aquela mulher nova na idade e velha no corpo que, do filho ao colo, cheio de feridas, ia de carro em carro pedir uma esmola aos senhores que tinham vindo até à marginal refazer as pazes do amor ou pensar a melhor maneira de levar um semelhante num negócio ou descansar cabeça do barulho da cidade).

Um ronco de barco partia. Proa apontada ao sul, casco rasgando as águas em busca do mundo para além do infinito do seu olhar.

(Também já partira. Num barco assim. Um barco que levou gente, muita gente, para além. Gente que chorava e, também, sorria sem consciência. Gente que levava a esperança de voltar. Mas alguns não voltaram (e como é triste voltar sem eles). Verteram o seu sangue quente que ensopou as escaldantes e poeirentas estradas da selva. Em terra, havia lenços brancos que acenavam, acenavam sem parar. E havia lágrimas de mães e de pais que criaram os seus filhos e os viam partir, sabiam lá até quando; e havia raparigas que viviam a ansiedade dum amor de juventude perante o abismo da incerteza; e havia carpideiras que fingiam chorar não sabiam por quem e para quê e desmaiavam nos braços de estranhos; e havia homens que trabalhavam no cais, indiferentes, minados pela rotina dos gestos e das acções, fartos de verem já tantas partidas iguais. O barco navegava sempre até que não viu mais lenços brancos e só viu a esperança estampada nos olhos dos que o rodeavam, aquela-arma-dos-homens-que-vão-para-a-guerra. E ele, então, apesar de odiar a guerra, sentiu-se superior àqueles que falam, falam, e não dizem nada.).

O relógio, ditador da vida, marcava o ritmo. Tinha de voltar. Ao movimento das pessoas e dos carros. Com encontrões, com guinadas para a direita e para a esquerda, guinchar de travões, arranques estrepitantes de carros sport dos meninos e das meninas ricas; com polícias passando multas aos carros mal estacionados, em transgressões de trânsito; com homens perseguindo outros homens iguais no corpo mas diferentes nas filosofias; mãos no ar oferecendo, num papel com um número, a ilusão da fortuna àqueles que pouco ou nada têm ou àqueles que tendo muito ainda querem mais; sinaleiros apitando furiosa e teatralmente aos volantes que vieram da província e não sabem que na cidade é proibido pisar o risco; condutores maltratando-se pelas palavras mais genuínas do dicionário da má educação. Tinha que voltar. Voltar a cruzar-se com aqueles que se postavam às esquinas das ruas, às portas dos cafés ou das casas de discos ou dos supermercados comendo a estupidez da vida, feita da fatuidade que só os imbecis sabem usar. Mas desculpava-os. É que eles ainda não tinham partido num barco, com muita gente vestida toda da mesma maneira, para longe, para além.
- Continua.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Encontros com o Chefe Artur


No nosso dia-a-dia encontramos muitos bombeiros com um condão peculiar, admiráveis, exemplares e irrepreensíveis a desempenharem o seu trabalho humanitário. Eles são autênticos ser os predestinados que ao nascerem lhe é atribuída uma missão divina para, neste mundo imperfeito e cheio de egoísmos individuais, protegerem a nossa efémera existência dos perigos, infortúnios e inquietações terrenas.

O Chefe Artur - de nome completo, Artur Fernandes Rodrigues Costa – que pertence ao quadro de honra da Associação Humanitária dos Bombeiros de Vila Real e Cruz Verde é um desse admiráveis bombeiros. Durante mais de meio século, enquanto esteve no activo, cumpriu devotamente esse compromisso de prestar auxilio e socorro a todos os necessitados.

Posso dizer que, pelo menos desde 1998, os meus caminhos se cruzam com os caminhos do chefe Artur. Com alguma frequência, encontro-o na distinta Confeitaria Gomes, sentado à mesa com os seus amigos em agradáveis conversas. Quem o conhece, sabe bem que o Chefe Artur é um bom conversador e gosta de discutir e dar a sua opinião. Outras vezes, pelas minhas funções na federação, encontro-o garbosamente fardado nas festas de aniversário de associações amigas. É aí que ainda posso testemunhar o quanto os jovens bombeiros o prezam.

Mas, os meus encontros mais interessantes com este velho bombeiro surgiram de forma diferente. Aconteceram quando fazia pesquisas do passado dos bombeiros da Régua. Ao consultar velhos álbuns, encontrei-o retratado em fotografias que assinalam acontecimentos importantes na história da associação. Confesso que algumas imagens, onde ele aparecia, me ficaram na memória, à espera de uma oportunidade de as revelar.

Desta última vez, foi nos caminhos das memórias de mais de cem anos de história da AHVB do Peso da Régua que encontrei o Chefe Artur. Como não podia deixar de ser encontrava-se garbosamente fardado para estar presente na festa de homenagem e despedida do Comandante Carlos Cardoso dos Santos - o qual deixava por vontade própria o corpo activo depois de 31 anos de comando - que se realizou quartel dos bombeiros da Régua, no dia 3 de Março de 1990.

O Chefe Artur era um dos seus grandes amigos e unia-os uma geração de bombeiros notáveis que, no distrito de Vila Real, tinham alcançado a glória e a auréola. São nomes inesquecíveis como o Rodrigo Félix de Vila Real, o Lage de Vigado, o Serafim de Mesão-Frio, o Araldo de Santa Marta de Penaguião e o Celso de Boticas. O respeito e admiração que ambos não escondiam de ninguém, eram razões para que o Chefe Artur não faltasse à homenagem do comandante da Régua, como ele costumava dizer, para lhe dar um emocionado abraço de gratidão.

Como convidado da associação, não foi esta a última vez que o Chefe Artur esteve no quartel dos bombeiros da Régua. Lembro-me que nos visitou noutros momentos importantes na vida da corporação. Esteve presente nas comemorações do 120º aniversário da associação que aconteceram em 28 de Novembro de 2000.

No decorrer dessas cerimónias, conforme as imagens documentam, encontramos o Chefe Artur na companhia do Secretário de Estado da Administração Interna, o Dr. Carlos Zorrinho, a protegê-lo com o seu guarda-chuva, enquanto aquele assistia à passagem do desfile do corpo de bombeiros, junto à entrada do Quartel Delfim Ferreira. Nunca esqueceremos este surpreendente e inédito momento proporcionado pelo Chefe Artur e o seu acto de cortesia com aquele importante político. A sua presença é um privilégio para os bombeiros da Régua. Eles gostam de conviver com este velho bombeiro que os enternece pela sua história de vida.

É um bombeiro carismático. Em Vila Real não há ninguém que não conheça o Chefe Artur e não lhe exteriorize a sua simpatia. Todos reconhecem a sua generosidade, a sua energia inesgotável, a sua alegria de viver. Com o passar do tempo, tornou-se um fenómeno de popularidade. A sua dedicação ao longo de 54 anos de bombeiro fez cativar a atenção dos seus conterrâneos. Sendo um homem simples e de trato fácil conquistou a afeição de meio mundo á sua volta. Sendo um bombeiro foi extraordinário. Considerado pelos seus companheiros do seu tempo um bombeiro fora de série.

Hoje continua a falar-se do Chefe Artur. Elogiam-se as suas aptidões e as proezas conseguidas nos “teatros de operações” mais perigosos. Com a determinação e coragem, as únicas qualidades que o elevam a um culto merecedor da nossa incondicional deferência, fez-se um grande e inesquecível bombeiro.

Este sentimento é unânime e está expresso nas palavras que lhe dedicou António Barros, secretário geral da AHBV de Vila Real e Cruz Verde, em 12 de Abril de 2003, para assinalar a entrega do maior galardão de reconhecimento ao seu trabalho, o Crachá de Ouro, da LBP, que salienta da sua vida o seguinte:

“Um bombeiro, uma referência…são as palavras ditas pelo Chefe Simão e pelo Chefe Barros para ilustrarem a vida de um Bombeiro – o nosso Chefe Artur Costa – e que são o exemplo de muitas outras que ouvimos, também simples e profundas, ditas e sentidas com muito orgulho, por estes e tantos outros amigos que partilham a caminhada deste Bombeiro, bombeiros do mesmo ideal, com o mesmo espírito, bombeiros de uma geração com história que fizeram história e que, agora, contam as suas histórias feita de vida, porque de sacrifício, de dávida, de fraternidade, de serviço em prol dos outros, de profunda amizade, de Vida por Vida…palavras simples que todos entendemos, sentimos e subscrevemos, porque sabemos verdadeiras e plenas e de significado…”.

Se há bombeiros profundamente identificados pelo seu chão de origem, um dele é o Chefe Artur, nascido em 28 de Novembro de 1930, na cidade de Vila Real. As suas raízes são genuinamente transmontanas. Mas, há quem diga – e quem o tenha escrito - que foi um daqueles seres que já nasceu com o seu destino traçado. Que nasceu bombeiro e para ser bombeiro. Alguns afirmaram, que é um predestinado. Cumpriu com um rigoroso dever de humanidade a missão que lhe foi destinada pelo divino criador. Para nosso bem, soube ser diferente e um dos melhores bombeiros.

O Chefe Artur conta 79 anos de uma vida cheia e, pelo que vimos, e muito feliz. Conserva uma boa forma física e uma lucidez impressionante. Dá gosto de ouvir pela sua voz contar as suas memórias de bombeiro e de as apreciar numa magnífica crónica “Carro da Bomba”, que escreveu em co-autoria para o livro “Vila Real - Histórias ao Café”. Ele possui mais saberes e incríveis experiências de vida que merecem ser registadas pela sua mão. É um homem generoso, solidário e fraterno. A sua vida continua ser uma referência para todos os bombeiros como exemplo de coragem, abnegação e de dedicação ao voluntariado.

O Chefe Artur é um semideus que vive – viverá por muito mais tempo - ao nosso lado. Ele é o personagem do bombeiro que todos idealizamos. Um anjo da guarda fardado, de capacete e de um machado nas mãos. Em quase tudo igual ao primeiro bombeiro que animou os nossos sonhos e que apagava os fogos feitos na imaginação das inocentes brincadeiras infantis.

Tudo o que se disse parece pouco, mas significa muito. Por outras palavras, o Chefe Artur é um símbolo vivo que valoriza a essência da verdadeira dimensão humana da figura dos bombeiros. Contamos ainda com ele para nos ajudar a reforçar os ideais de fraternidade, os valores do voluntariado e a importância dos bombeiros na nossa sociedade.
- Peso da Régua, Novembro de 2009, J. A. Almeida.
(Clique nas imagens acima para ampliar)

Ronda pela Imprensa do Douro: António Lobo Antunes e a escrita mentirosa



Custa-me encontrar um título apropriado à escrita de António Lobo Antunes que, podendo ganhar dinheiro com a profissão de médico, prefere a escrita para envergonhar os portugueses.


Talvez este início de crónica escandalize quem costume venerá-lo. Eu, por maior benevolência que para com ele queira usar não posso, nem devo. Por várias razões, algumas das quais vou enunciar. Porque não gosto de atirar a pedra e esconder a mão.


Este senhor foi mobilizado como médico, para a guerra do Ultramar. Nunca terá sabido manobrar uma G-3 ou mesmo uma Mauser. Certamente nem sequer chegou a conhecer a estrutura de um pelotão, de uma companhia, de um batalhão. Não era operacional mas bota-se a falar como quem pragueja. Refiro-me ao seu mais recente livro: Uma longa viagem com António Lobo Antunes. João Céu e Silva pode reclamar alguns méritos deste tipo de escrita. Foi o entrevistador e a forma como transpõe as conversas confere-lhe alguma energia e vontade de saber até onde o entrevistado é capaz de levar o leitor. Mas as ideias, as frases, os palavrões, os impropérios, as aldrabices - sim as aldrabices - são de Lobo Antunes.


Vejamos o que ele se lembrou de vomitar na página 391:
«Eu tinha talento para matar e para morrer. No meu batalhão éramos seiscentos militares e tivemos cento e cinquenta baixas. Era uma violência indescritível para meninos de vinte e um, vinte e dois ou vinte e três anos que matavam e depois choravam pela gente que morrera. Eu estava numa zona onde havia muitos combates e para poder mudar para uma região mais calma tinha de acumular pontos. Uma arma apreendida ao inimigo valia uns pontos, um prisioneiro ou um inimigo morto outros tantos pontos. E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava, e como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros».


Penso que isto que deixo transcrito da página 391 do seu referido livro, se vivêssemos num país civilizado e culto, com valores básicos a uma sociedade de mente sã e de justiça firme, bastaria para internar este «escriba», porque todo o livro é uma humilhação sistemática e nauseabunda, aos Combatentes Portugueses que prestaram serviço em qualquer palco de operações, além fronteiras. É um severo ataque à Instituição militar e uma infâmia aos comandantes de qualquer ramo das Forças Armadas, de qualquer estrutura hierárquica e de qualquer frente de combate. Isto que Lobo Antunes escreve e lhe permite arrecadar «350 contos por mês da editora» (p. 330), deveria ser motivo de uma averiguação pelo Ministério Público. Porque em democracia, não deve poder dizer-se tudo, só porque há liberdade para isso. Essa liberdade que Lobo Antunes usou para enriquecer à custa o marketing que os mass media repercutem, sem remoques, porque se trata de um médico com irmãos influentes na política, ofendeu um milhão de Combatentes, o Ministério da Defesa, uma juventude desprevenida, porque vai ler estes arrotos literários, na convicção de que foi assim que fez a Guerra, entre 1961 e 1974. E ofende, sobretudo, a alma da Portugalidade porque a «aldeia global» a que pertencemos vai pensar que isto se passou na vida real nos finais do século XX.


Fui combatente, em Angola, uns anos antes de Lobo Antunes. Também, como ele fui alferes miliciano (ranger). Estive numa zona muito mais perigosa do que ele: nos Dembos, com operações no Zemba, na Maria Fernanda, em Nuambuangongo, na Mata Sanga, na Pedra Verde, enfim, no coração da guerra. Nunca um militar, qualquer que fosse a sua graduação ou especialidade, atirou a matar. Essa linguagem dos pontos é pura ficção. E essa de fazer cordões com orelhas de preto, nem ao diabo lembraria. E pior do que tudo é a maldade com que escarrou no seu próprio batalhão que tinha seiscentos militares e registou centena e meia de baixas... Como se isto fosse crível!


Se o seu comandante que na altura deveria ser tenente-coronel, mais o segundo comandante, os capitães, os alferes, os sargentos e os soldados em geral, lerem estas aldrabices e não exigirem uma explicação pública, ficarão na história da guerra do Ultramar como protagonistas de um filme que de realidade não teve ponta por onde se lhe pegue.


Em primeiro lugar esta mentira pública atinge esses heróicos combatentes, tão sérios como todos os outros. Porque não há memória de um único Batalhão ter um décimo das baixas que Lobo Antunes atribui àquele de que ele próprio fez parte. É preciso ter lata para fazer afirmações tão graves sobre profissionais que para serem diferentes deste relatório patológico, basta terem a seu lado a Bandeira Portuguesa e terem jurado servi-la e servir a Pátria com honra, dignidade e humanismo. Não conheço nenhum desses seiscentos militares que acolheram António Lobo Antunes no seu seio e até trataram bem a sua mulher que lhes fez companhia, em pleno mato, segundo escreve nas páginas 249 e 250. Mereciam eles outro respeito e outros elogios. Porque insultos destes ouvimos e lemos muitos, no tempo do PREC. Mas falsidades tão obscenas, nem sequer foram ditas por Otelo Saraiva de Carvalho, quando mandou prender inocentes, com mandados de captura, em branco e até quando ameaçou meter-me e a tantos, no Campo Pequeno para a matança da Páscoa. Estas enormidades não matam o corpo, mas ferem de morte a alma da nossa Epopeia Nacional.
- Dr. Barroso da Fonte, Notícias do Douro, Peso da Régua, 13  de Novembro de 2009.


sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulo II

Sobre M. Nogueira Borges, O HOMEM E O ESCRITOR - Deste jovem contista, que escreve também poesia, várias publicações se dispersam já por inúmeros jornais. Escrevendo norteado pelos mais belos e justos ideais, a sua prosa é fluente e escorreita como um espelho a reflectir o seu espírito irreverente e insatisfeito. Apesar de todos os defeitos que lhe possam atribuir, ele é, acima de tudo, um enamorado da verdade e orgulha-se de pertencer aquela estirpe nobre de homens íntegros de antes quebrar que torcer e que não sabem, por natureza, mentir ou fingir.

M. Nogueira Borges não se filia em escolas literárias. Os seus escritos são misto ficção e realidade, projectados no tempo e no espaço de homens da rua, da aldeia, ou da cidade, da Metrópole ou do Ultramar. Tendo cumprido serviço militar em Moçambique, daí trouxe um conhecimento mais profundo sobre os homens e uma mais extensa visão sobre os seus legítimos anseios quotidianos. Não admira, pois, que a paisagem e o homem de África aqui apareçam, despidos de artificialismos. Acima de quaisquer limitações ele interessa-se pela mensagem humana e límpida que transparece nas suas ideias escritas e nas personagens das narrativas. Não é, portanto, a ânsia de se filiar ou de emparceirar nas letras que o levam a redigir os impulsos da sua imaginação sã e fértil ou a captar os sucederes do dia a dia, mas, muito simplesmente, a natural tendência para comunicar com os seus semelhantes. O conto é-lhe uma expressão livre de ideias e sentimentos que causam no leitor compaixão ou repugnância ou protesto, através duma capacidade inata de quem escreve. Tudo o que for livre, será de facto, verdadeiro e absoluto.

Possuindo diversa poesia inédita, esta prosa é escolhida entre as produções do melhor tez. Ela é a expressão do seu carácter modelado e do seu temperamento intransigente e põe, acima de tudo, as suas convicções que, apesar da ingratidão, nunca traíu, ainda que na vida isso já lhe tivesse custado incompreensões, represálias e até dissabores. Os seus contos são verdadeiros poemas com personagens, ora humildes, ora penosamente burgueses, ora semi-deusas postas a ridículo, escritas numa prosa segura e de forte estilo, ainda que indefinitivo, donde emerge uma lição de beleza pelas almas que sofrem sem protecção divina ou humana aguardando um amanhã melhor.

É com manifesta satisfação que presto homenagem ao camarada e ao companheiro de estudos e do serviço militar pelo nascimento do seu primeiro livro. E finalmente, não posso deixar de fazer votos por que o público não desperdice esta oportunidade de ir ao encontro da sua mensagem e que a crítica o leia a fim de se poder interpretar, com total discernimento a verdadeira dimensão artística dum espírito que nasce com a esperança de que NÃO MATEM A ESPERANÇA.
- Armando Figueiredo.


Não Matem a Esperança - Capítulo II

Havia noites terríveis na sua solidão. Noites de cinzeiros cheios de pontas de cigarros, de livros abertos, ao calhar, na secretária, de linguados escrevinhados com fúria desesperada, de fumo intenso infestado um quarto de janelas avariadas.

Noites de solidão dum ser-pensante que ainda pretendia ser poeta: poeta do vento, do amor-AMOR, da chuva, das prostitutas miseráveis que vendem a sua carne aos traficantes das esquinas ainda mais miseráveis, poeta dos pobres e dos oprimidos, das crianças que tomam banho nuas na fonte do jardim público da cidade. Ânsia de sair da opressão das quatro paredes em que se julgava sufocar e ir por essas ruas, sem rumo, gritar as poesias da sua alma-caldeira-de-revolta e atirá-las, como murros de pugilista, à cara de certas pessoas, enfiá-las pela boca abaixo para que as mastigassem. Pessoas egoístas que só pensam em si, que julgam ter nos outros uns bonecos de carne e osso que funcionam com corda; que gostam de ser bajulados, de sentir o reconhecimento escravo dos outros; que se lançam em momentos de fraqueza na ambiguidade da vida; que submetem a si; através do dinheiro (ganho sabe-se lá como), os seres dignos que se não queiram deixar borra e que são obrigados a aceitá-los por girarem no seu meio. E, raios! Que fingem como uns porcos sujos (se é que os porcos fingem), que julgam fazer dos outros parvos, tipos desconexos no essencial, querendo lançar os outros na sua confusão.

Incompreensão, interesses fúteis, preconceitos sociais estúpidos, mentes atrasadas e sem visão, uma sociedade moribunda, onde a família – seu núcleo formativo – é cada vez mais um foco de desunião, consequência de cobiças de bens possuídos e que geram as invejas – e uma pessoa a viver no meio disto. A viver no meio de comodistas bem colocados na vida, de cobardes e de traidores que lançam os inocentes para a fogueira, acompanhados da solidão que se sente no meio duma grande multidão. E ouvem-se palavras, só palavras, enfeitadas com promessas de liberdade (que nunca mais chega e era preciso ter chegado há muito), perfumadas ora de falsa importância capitalista, ora dum mais ou menos puritanismo poético e que os burgueses escutam refastelados em poltronas, sossegados se os defendem, inquietos e nervosos e revoltados os atacam; e, entretanto, os autênticos defensores da liberdade vão continuando a morrer nas mãos de homens que têm pelos no coração. Mas o tribunal do futuro há-de julgá-los a todos. Um novo Nuremberga se criará. E há programas de televisão que, como diz o crítico, demonstram até que pontovai o embrutecimento das massas e que o povo vê e ouve com a amorfiahábito de passados artificiais a fazer horas de ir para a cama com a mulher; e há seres humanos que são obrigados a viver com tudo isto a martelar-lhes os sentidos.

E, por isso, ele cada vez tinha mais pena da sua esperança do futuro, que amava com consciência e razão. Reconhecia-lhe a fluidez limpa, sem mancha (por enquanto), duma alma e de um corpo que eram a sua vida, a sua fé na felicidade. Ela o compreendia, sentia as mesmas angústias duma solidão que as pessoas determinavam. E, então, gritava-lhe: «Cautela minha esperança! Não faças como os outros dizem ou te pedem. O que eles querem é envenenar-te, violar os teus sentimentos virgens e inocular-te o vírus da ganância e da parcialidade. Deixa-os! Deixa os outros! Foge deles! Deles, os papões, os vampiros da vida «que comem tudo e não deixam nada». Mas eu tenho pena de ti. Porque sei, tenho a certeza (certeza cruel!) que, também tu, à medida que cresceres, te deixarás levar pelo rio da podridão e da decadência moral. Amanhã serás como eles, os outros, e irás receber uma medalha pelos bons serviços prestados à maldade da sociedade. E se eu choro, minha esperança, é porque sei que sou impotente para impedir a tua contaminação, é porque sei que até tu, tu que és a minha última esperança, morrerás no conhecimento do meu solitário mundo.».

Mas, enquanto a sua esperança não morria, ele ia vivendo com ela a seu lado.
- Continua.