sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O patrão Álvaro: coragem e valentia


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Ao lado do velho pronto – socorro Ford, o patrão Álvaro Rodrigues da Silva olha-nos com a nostalgia de um velho herói que a Câmara Municipal do Peso da Régua agraciou com a Medalha de Ouro (de valor e altruísmo), durante as cerimónias solenes das Bodas de Ouro da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua – os primeiros 50 anos de existência – celebradas em 30 de Novembro de 1930.

Nascido na Régua em 17 de Julho de 1873, o Álvaro Rodrigues da Silva foi um dos melhores bombeiros. Talvez de sempre. Conviveu com muitos bombeiros da velha que, é como quem diz, com os homens que criaram a corporação. Entrou muito jovem no corpo de bombeiros e, durante muito anos, serviu-o devotamente. Ser bombeiro era uma das suas paixões. Por mérito pessoal atingiu o posto de patrão, que hoje corresponde ao de chefe. Os companheiros apreciavam o seu talento para a chefia e elogiavam-no por ser um poço de valentia - um bombeiro destemido - e muito competente.

Considerado um cidadão simples e honrado, fez toda a sua vida a trabalhar como serralheiro, numa oficina que tinha montada no rés-do-chão de uma casa, a meio da Rua General Alves Pedrosa, hoje conhecida como Rua da Alegria. Faleceu em 12 de Fevereiro de 1952, com a idade de 78 anos, reconhecido meio social reguense como um homem que, ao serviço dos bombeiros, se tornou um dos seus primeiros heróis.

Foi o herói que, em 1930, o presidente da câmara Dr. Mário Bernardes Pereira quis homenagear. O edil, ao lado da distinta benemérita D. Branca Martinho, escolhida para presidir ao acto, e da população que enchia o Salão Nobre dos Paços do Concelho, num eloquente discurso reconheceu que o patrão Álvaro, num justo somatório de brilhantes valores individuais, destacava-se pelo seu espírito altruísta e paixão ao voluntariado. A emoção levou-o a pedir aos presentes que “diante da sua farda devíamos todos descobrir-nos com respeito”.

O patrão Álvaro não era homem que trabalhasse para ouvir elogios. Quem o conhecia, sabia que era um bombeiro que gostava de servir a sua terra e sua corporação. Sentia-se mais à vontade, pela sua maneira de ser, nos teatros das operações de qualquer tragédia humana quer elas fossem causadas por fogos, cheias do rio, acidentes ou calamidades naturais. E, por mais graves que fossem, sempre as enfrentou sem medo. Ele sabia que, quando a sirene tocava, os perigos não seriam obstáculo para deixar de salvar vidas e bens.

O patrão Álvaro socorreu e salvou muitas vidas em perigo. Para as missões de socorro onde era chamado mostrava o génio da sua coragem e valentia. Conta-se que, em algumas delas, foi graças à sua presença, que se evitaram males e desgraças maiores. Conhecemos, pelos relatos das notícias, a seu grande e eficiente desempenho num salvamento e regaste de dois homens que haviam ficado soterrados no fundo de um poço, numa povoação do concelho de Santa Marta de Penaguião. Quando a convicção de todos era de que esses dois chefes de família estavam mortos, e bem mortos, o seu arrojo e estímulo para bombeiros abatidos de cansaço e desânimo, ficou conhecido ao proferir a seguinte expressão: “Mortos os vivos, daqui não sairemos sem os arrancar de lá de baixo”.

A firmeza do patrão Álvaro fez com que os bombeiros que comandava acreditassem a levar até ao fim o salvamento de duas vidas, que pensavam já perdidas, após longas 16 horas de trabalhos de remoção de terras. Melhor do que as nossas palavras, podemos consultar mais pormenores dessa missão de salvamento – ocorrida a 10 de Agosto de 1929 - nas memórias do Chefe António Guedes, publicadas no jornal “O Arrais”, onde esteve também presente, que aqui temos o gosto de transcrever:

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“Se a memória não me atraiçoa, foi em dois ou três de Agosto de 1929, fomos chamados para Laurentim, povoado situada a poucos quilómetros da Régua, onde dois homens haviam fica soterrados num poço de dezoito metros de profundidade e quando procediam ao trabalho de ampliação de uma mina no fundo do mesmo poço.

Seguimos imediatamente para lá, cerca das nove horas da manhã…

Eu e chefe Álvaro analisamos a situação e ficamos com uma vaga esperança dos homens se encontrarem ainda vivos – isto no caso de se refugiarem na mina, na ocasião em que se deu a derrocada. E essa esperança recrudesceu ao depararmos com um cano galvanizado, emergindo apenas dois ou três dedos do solo, pelo que passava quase despercebido. Estaria esse cano ligado à mina? Não custa nada experimentar. E assim, colocamos ali dois bombeiros a fornecer ar, por meio da bomba braçal nº2, ligada ao cano encontrado.

Estávamos presentes dois chefes – Álvaro Rodrigues da Silva e eu, e dois sub-chefes -Armando Vicente e Augusto Costa.

O serviço de salvamento ficou assim estabelecido: no poço, dirigindo e auxiliando os serviços de desaterro, ficaria um dos chefes durante duas horas, no fim das quais outro iria o outro substitui-lo. E, cá em cima, dirigindo e auxiliando os serviços de transporte e descarga de aterro, em sitio que não estorvasse, estavam dois sub-chefes.

Por volta das 11 e meia da manhã, fui abordado por uma simpática velhinha – mãe de um dos homens soterrados - que me disse que desejava falar como o Comandante. Mandei chamar o Chefe Álvaro, a quem como o graduado mais antigo, competia exercer as funções de comando, e a velhinha então, de mão erguidas e o enrugado rosto banhado em lágrimas, suplicou: -Tirem dali o meu filhinho…

O angustiante fervoroso pedido daquela velha e pobre mulher comoveu-nos, emocionou-nos profundamente e dirigimos-lhe palavras de conforto e de esperança. Mas eram muitas toneladas de terra e pedregulhos que era necessário remover e guindar para a superfície…
(…)

Veio a noite e o cansaço estava a apoderar-se de nós. Havia já alguns bombeiros feridos e outros com as palmas mãos transformadas numas chagas autênticas. As dez horas já tínhamos a certeza que os homens estavam vivos, pois que nos falaram através do abençoado cano. As onze hora e um quarto da noite tiramos daquele horrível buraco o primeiro homem. Vinha quase desfalecido e completamente encharcado e enlameado. Logo a seguir tirou-se o outro, que se apresentava em melhores condições físicas mas igualmente coberto de lama.

E chegou então – para mim - o momento mais comovente e emocionante deste drama. A simpática velhinha veio novamente procurar-nos, a mim e ao chefe Álvaro, para nos agradecer o “milagre” de lhes termos salvo o seu filho. Com lágrimas de alegria e reconhecimento…abraçou-nos e beijou-nos com emoção e sinceridade. Considerei-me compensado dos tormentos que naquele dia passei”.

Era assim, cumprida mais uma missão de socorro com sucesso que se ficou a dever a todos os bombeiros que souberam compreender o apelo do seu chefe num momento de desânimo.

Percebemos o que sentiu o chefe António Guedes quando estava terminada a operação de salvamento. Há um sentimento de felicidade que o contagiava pela alegria sentida no rosto de uma mãe, agradecida aos bombeiros que tinha salvo a vida do filho. As suas comoventes palavras mostram a grande satisfação pelo dever cumprido, apesar dos tormentos e aflições de muitas horas de trabalho exaustivo, sem descanso nem alimentação, sob o sol escaldante de um dia de Agosto.

E, também percebemos porque o patrão Álvaro tornou, sem o querer, num herói amável e inesquecível.

Quase 80 anos passados sobre esse acontecimento faz todo sentido recorda-lo como um exemplo do ideal romântico de “Vida por Vida”, o lema que deve estar sempre presente no coração dos actuais bombeiros.

O milagre conseguido por aqueles bombeiros, sob o comando do patrão Álvaro, é uma das páginas mais brilhantes e sublimes da história da Associação, ainda molhadas pelas lágrimas de alegria de uma velha mãe. E, são essas lágrimas que, por anos que passem, nos fazem lembrar – sobretudo as gerações mais jovens de bombeiros - a lição de coragem e valentia do nosso voluntário patrão Álvaro.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A Régua com os bombeiros de Ermesinde


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Em 1 de Maio de 1960, os bombeiros de Ermesinde foram recebidos na vila do Peso da Régua num ambiente de festa.

Eram aguardados na Rua da Ferreirinha, junto à famosa Garagem Janeiro, pelos bombeiros da Régua, numa impecável formatura, pelos directores da associação Alfredo Baptista e Augusto Mendes de Carvalho e pela população que queria assistir à entrega do diploma de sócio - honorário, distinção concedida pelos bombeiros de Ermesinde.

Esta brilhante cerimónia celebrava o princípio de uma união e amizade entre as duas corporações que, desde essa data, é mantida e consolidada com contactos permanentes.

Os bombeiros de Ermesinde, na sua primeira vinda à Capital do Douro, mostravam a sua determinação em unir os homens paz do litoral com os do interior. Fizeram representar-se por uma delegação que incluía o presidente da direcção Adélio de Oliveira e o Comandante Capas Peneda. Para que a cerimónia revestisse de maior brilho, os directores pediram aos associados com viatura própria, para integrarem a caravana com destino à Régua.

O brilho não faltou de nenhum dos lados. Os bombeiros da Régua, sentindo-se honrados com o gesto altivo, acolheram os seus camaradas de Ermesinde e com uma recepção que, seu presidente da direcção, considerou como grandiosa. Como reconhecimento pela honra recebida, aos bombeiros da Ermesinde foi entregue uma medalha privativa da associação reguense, colocada solenemente no seu estandarte, pelo Comandante Carlos Cardoso.

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A cerimónia continuou depois no salão nobre do quartel. Os discursos proferidos salientaram a importância dos laços de união entre as duas associações e, sobretudo, entre os homens que abraçam a causa do voluntariado. Pelas palavras do Comandante Capas Peneda veio o maior elogio de solidariedade. Confessou emocionado que os bombeiros da Régua podiam estar em Ermesinde como estivessem na sua casa. Ora, na verdade, é isso que hoje acontece quando lá vamos. Somos recebidos pelo actual presidente da direcção Artur Carneiro e pelo Comandante Carlos Teixeira como amigos especiais, onde temos sempre um lugar na mesa de honra. Da nossa parte, quando eles nos visitam, damos-lhe as mesmas atenções. Assim, a amizade entre as duas corporações resiste ao tempo e a distância que nos separam!

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Mas esta fotografia aviva as memórias da Régua nos anos 60. Além da oficina dos Janeiros, na rua da Ferreirinha estavam estabelecidos os grandes armazéns e algumas das principais lojas de comércio. Como artéria principal era movimentada e ligava, através da chamada ponte do Bate – Estacas, o centro da vila à vizinha freguesia de Godim. E, servia como a saída e a entrada dos veículos que percorriam a velha estrada nacional nº108 entre a Régua e Ermesinde, um percurso com sinuosos 94 km de distância.

A Régua, nesse tempo, vivia fechada em si e nas suas belas paisagens e pelos cenários de ruralidade que as mãos do homem transformaram em verdadeiros monumento naturais. Os grandes negócios faziam-se no sector dos vinhos.

E, muitas ajudas aos bombeiros vinham das firmas de vinhos, como a da casa comercial inglesa Sandeman que, em 18 de Junho de 1893, ofereceu a quantia de 25 mil réis. Ainda hoje é assim…

Algumas memórias e vivências desses velhos tempos são evocadas na notável crónica “A Botica do Anastácio”, de Joaquim Pires (pseudónimo do escritor Dr. João de Araújo Correia), publicada no jornal “O Arrais”, em ficamos a conhecer o quotidiano de ilustres bombeiros reguenses:

“A Régua actual, tornemos a dizer, não é muita antiga. Nasceu com a Companhia Velha, cujo edifício e armazém, à beira do nosso rio, são uma espécie de quartel-general do país vinhateiro. Era à Régua o foro de capital do Douro.
Mas, por hoje, vamos lá recordar a botica do Anastácio, situada na Rua dos Camilos, defronte da antiga loja do Valente Novo. Loja que mudou de nome português para nome francês, mudando o proprietário. Deus lhe perdoe!
A botica do Anastácio! Já toda a gente lhe chamava farmácia. Mas, o meu pai, amigo de termos velhos ainda lhe chamava botica. Assim como chamava Rua da Bandeira à Rua dos Camilos, porque os terrenos, por ali situados, tinham pertencido aos Portocarreiros, fidalgos da Bandeirinha, lá em baixo, na cidade do Porto.
A Régua não é muito antiga. Mas, já se pode ir falando da Régua de ontem aos actuais reguenses. Como tudo quanto nasceu, também, a Régua vai envelhecendo.
A botica do Anastácio é de ontem. É do tempo em que não havia clubes ou só havia um clube. É do tempo em que os mentideiros, os soalheiros, os centros de cavaco, eram as farmácias ou mercearias. Memorável ponto de reunião foi a botica do Anastácio - como lhe chamava meu pai. Memorável clube improvisado.
Anastácio, de pé, do lado de dentro do mostrador, deitava aos contertúlios, de vez em quando, uma palavra mansa.
Era homem calmo, correcto, farmacêutico limpo e honesto como não havia segundo. Receita aviada por ele saía das suas mãos como obra-prima em forma de garrafa, hóstias ou pomada. Morreu bastante novo, com uma diabete quase fulminante.
Contertúlios reunidos à noite eram aí meia dúzia. Além de meu pai, conto o Dr. Vasques Osório, mais conhecido por Doutor Galego, por ser filho de Domingos, galego de nação; Joaquim Lopes da Silva, homem de grande tino comercial, uma energia oriundo de Ovar; Cardoso Mirandela, então ajudante de notário, homem esperto e positivo; Joaquim de Sousa Pinto, merceeiro bem disposto, dedicado comandante de bombeiros; Joaquim Penhor, a quem chamavam o Tio Rico, e outros.
Conversavam sobre a política do tempo, contavam anedotas recessas, etc.
Tio Rico morava lá em cima, no Poeiro, numa casa que veio a ser residência paroquial. Creio que vivia com mulher e cunhadas. E, como não tivesse filhos, deixou a casa ao Cardoso Mirandela, sobrinho dele por afinidade.
A Régua não é muito antiga. Mas, como se vê, começa a ter que contar”.

Como bem conta o escritor reguense, pela botica do Anastácio passaram muitos homens que fizeram a história da Régua e, em especial, dos seus bombeiros voluntários.

Ficamos a saber que, por volta dos anos 30, nessa tertúlia estavam presentes o Comandante Joaquim Sousa Pinto (1927-30), um dos fundadores da associação, o Chefe Cardoso Mirandela e o pai do escritor que foi bombeiro (António Correia), que gostavam de dar dois dedos de conversa sobre a política do seu tempo…!

Bons tempos dessa Régua de ontem!

Hoje, passados quase 50 anos, quase tudo mudou na Régua.

Os costumes das pessoas e os horizontes da cidade são bem diferentes. As pessoas deixaram de reunir nas tertúlias. A cidade, que nasceu e cresceu nas margens do rio Douro, uma vez mais procura através dele novas formas de desenvolvimento, como é o caso do turismo. Chegam ao cais fluvial milhares de turistas atraídos pelos encantos naturais, pelo vinho generoso, único no Mundo, pelos rituais das vindimas e, ultimamente, pelas descobertas proporcionadas pelo “Museu do Douro”, onde se pode visitar a exposição dedicada à vida de um homem genial - a razão e o sentimento - como foi o escocês Barão de Forrester.

Enfim, a Régua como concelho desde 1837 e os seus bombeiros voluntários, a partir de 1880, estão voltados para o futuro e continuam a crescer ao compasso de um mundo em mudança, mas assente em quatro pilares basilares: o vinho, a paisagem, o turismo e a cultura.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.
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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O João dos Óculos a caminho da Eternidade

Se é muito difícil escrever sobre a morte de um homem é mais complicado escrever sobre a morte de um bombeiro em serviço numa missão de socorro, como sucedeu ao João Gomes de Figueiredo, mais conhecido por João dos Óculos, no violento incêndio ocorrido na Casa Viúva Lopes, na da Régua, no dia 8 de Agosto de 1953.

Quem ainda o conheceu como bombeiro deve saber porquê, mas quem como eu, apenas ouvi-o falar dele, interroga-se se não é absurdo e injusto um jovem homem, como ele era, perder a sua vida quando estava cumprir o dever de ajudar a salvar a vida e os bens do seu semelhante. Dizem que este é o risco de quem escolheu para o seu destino a divisa “vida por vida”. E, que Deus só escolhe e leva para junto si aqueles que mais ama. Se assim é, um deles, o melhor coração que encontrou no nosso seio, foi o do João dos Óculos.

Natural de Vila Pouca de Aguiar, veio cedo para a Régua com seus pais ganhar a vida. Por aqui, ficou até morrer no meio das chamas desse grande incêndio, quando tinha de idade 33 anos. Os companheiros tinham-no como um excelente amigo, apesar de ser um pouco triste e frio. Como o bombeiro nº 14 da associação reguense foi um fiel e dedicado servidor, sempre pronto a aparecer nas horas de perigo e maior aflição. Desempenhava a profissão de tipógrafo na famosa Imprensa Douro e, nos tempos livres, era sua alma artista que mais brilhava. Gostava de cantar e de tocar harmónica de beiços em que era exímio. A antiga Rádio Alto-Douro convidava-o para tocar o vasto reportório de músicas nos seus programas. Fazendo parte do Orfeão Reguense e da Orquestra Diabólica animou muitos espectáculos e festas.

A sua morte foi uma tragédia para todos. A começar pela família, a viúva D. Celeste Correia Figueiredo e os seus três filhos de tenra idade que, como se deve imaginar, lhes fez muita falta no seu sustento. Sabemos que sofreram dificuldades e privações na sua sobrevivência. À sua família valeram as ajudas em bens, alimentos e brinquedos que a direcção do Dr. Júlio Vilela sempre quis prestar, para os proteger da miséria em que ficaram. Os seguros de vida, nesse tempo, como ainda hoje, tinham valores reduzidos para compensar uma vida.
Como o passar dos tempos, a Régua não esqueceu o bombeiro João dos Óculos. A Câmara Municipal, presidida por Renato Aguiar, fez-lhe uma homenagem ao baptizar com o seu nome uma rua da cidade.

O escritor João de Araújo Correia, nas Bodas de Diamante da Associação (1955), lembrou-o assim, neste soneto:

“O João dos Óculos nasceu bombeiro
Embora fosse pálido e franzino,
Cumpriu até o fim o seu destino
Com impoluta alma de guerreiro

Nenhuns braços lhe foram cativeiro
Mal da sereia ouvisse o som mofino…
Em uma noite de luar divino
Foi encontrar a morte num braseiro.

A sua associação -cândida amante -
Celebra hoje as Bodas de Diamante…
-Quase cem anos de existência honesta.

Um bom diante, sócios, é carvão.
Ide buscar o coração do João
E fazei dele o símbolo da festa.”

O triste acontecimento está bem gravado na memória colectiva. E, uma placa de mármore, no meio de uma parede do quartel, assinala em sua memória esse dia fatídico. E aviva o esquecimento do seu nome. Os bombeiros do presente têm um sentido de respeito e solidariedade pelos velhos camaradas. Não esquecem a perda deste homem. O João dos Óculos vive nas suas lembranças e nos seus medos… O seu exemplo de bombeiro sensibiliza-os como uma prova de abnegação, valentia e sacrifício.

O velho Chefe António Guedes nas suas memórias escritas no jornal “O Arrais”, em 25 de Janeiro de 1979, que esteve a combater incêndio com o João do Óculos, descreve-nos, com dor e nostalgia, o instante em que assistiu à sua morte, assim desta maneira:

“Passados tempos, a importuna sirene convoca-nos para um incêndio na Casa Viúva Lopes, desta vila, e ele para lá seguiu entre mim e o motorista.

Ao aproximar-me do prédio incendiado verifiquei, com infinito pesar, que já a nada podíamos valer, apesar da rapidez da nossa saída, pois as labaredas, alterosas, saindo por todas as janelas, envolviam o prédio sinistrado.

À uma hora e meia da manhã um bombeiro pediu-me para ser substituído, pois já estava há quatro horas de agulheta em punho.

Mandei chamar outro bombeiro, para isso, mas o João estava ali próximo ofereceu-se para substituir o camarada.

O pavimento da casa, naquele lugar, era de cimento, pensávamos nós. Era de cimento, sim, mas este, de pouca espessura, aplicado no soalho o que constituía uma verdadeira e fatal armadilha. Se a derrocada se tivesse dado cerca de vinte minutos antes, lá ficariam o Comandante Lourenço Medeiros e o seu colega Neto, dos Bombeiros de Salvação Pública, de Vila Real, que tinham andado a vistoriar o prédio, interiormente.

O João tomou conta da agulheta estando, assim como eu, colocados absolutamente como manda o regulamento, ou seja, sobre a soleira da porta e debaixo da sua padieira. O pé do João um pouco mais adiantado, talvez, e a derrocada do sobrado arrastou-o para aquele horrível inferno de labaredas.

Fiquei, eu e dois bombeiros que estavam presentes, envolvidos num mar de fumo, cinzas, que quase nos cegavam. A seguir, ouvi gritos horrorosos do João, não vendo este no lugar que ocupava. Vi a agulheta caída no chão e então, avaliei o que havia sucedido. Quase às apalpadelas apanhei a agulheta e assestei o seu jacto em volta do João, que divisei, na penumbra entalado por escombros, em cima de um tonel.

Mandei os dois bombeiros buscar um lanço de escadas para tentarmos salvar o nosso camarada. Quando se colocava a escada para o Claudino descer, pois que se ofereceu para isso, com enorme fragor ruiu o pavimento do primeiro andar, cujos escombros, em escassos segundos sepultaram completamente o pobre do João, cujos gritos se deixaram de ouvir. Estes eram lancinantes, pavorosos e parece que ainda hoje estou a ouvi-los.
(…)

Continuaram duas agulhetas a lançar água a jorros sobre o local em que se encontrava o franzino corpo do João, a ficar de evitar que ficasse carbonizado, o que se consegui. E, só as seis da manhã - já de dia - foi possível arrancar o seu pequeno corpo, sem vida, daquele funesto lugar.

Pobre e infeliz João! Como senti a morte daquele pequeno e grande amigo pequeno e franzino, como era, tinha uma alma de gigante. Deu-nos um heróico e assombroso exemplo de abnegação, valentia e sacrifício.”

Nas cerimónias fúnebres, os bombeiros e o povo mostraram sentidas manifestações de desgosto e profundo pesar. As duas dezenas de corporações de soldados da paz, num sentimento de união, vindos de todo o país, associaram à dor e à mágoa dos que mais amavam este bombeiro… da Régua.

O corpo do João dos Óculos foi velado no quartel pela sua família e por uma guarda de honra permanente de bombeiros. Ao meio da tarde, o seu cortejo fúnebre saía em direcção ao cemitério do Peso. Os comerciantes, em sinal de respeito e de luto, encerravam as portas das suas lojas. Ao passar pela Av. Dr. Manuel de Arriaga “formou-se um apinhado de gente que assistia comovida à passagem do cortejo fúnebre”. Escreveram assim nas suas notícias os jornais da terra.

Deste mundo, partia para sempre um ser humano que tivera uma morte penosa a praticar o bem, a quem se dava o último aceno com lágrimas de emoção e de saudade…!

Na inédita fotografia, o João dos Óculos estava ainda a caminho da Eternidade, onde Deus o chamou para voltar a olhar pelas nossas vidas, ganha mais sentido o angustiante silêncio dos bombeiros da Régua, fardados num luto de tristeza, seguindo os passos sagrados e as orações de fé do Padre Avelino Branco.

Afinal, como aqueles bombeiros, é no caminho entre esta e a outra vida intemporal que muitos homens percebem que é ainda possível viver num mundo sem egoísmo.

Aprendam, se querem ter melhores sentimentos, a grande lição de vida e de humanidade que nos deixou o bombeiro João Gomes de Figueiredo, o nosso João dos Óculos.
- Peso da Régua, Outubro de 2009, J. A. Almeida.

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terça-feira, 6 de outubro de 2009

Diversificando: Os centenários bondes elétricos de Santos

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QUANDO O PASSADO É ESCOLA DO PRESENTE E ESPERANÇA DE UM FUTURO...
Exemplos a seguir em outras latitudes municipais - Do ForEver PEMBA:

Anualmente, dia 23 de Setembro é o Dia Municipal do Bonde em Santos, estado de São Paulo, Brasil, data que, depois de quase 30 anos de esquecimento e abandono, marca o retorno dos bondes elétricos às ruas e ao centro antigo da cidade, em linha turística que passa por várias edificações-monumentos testemunhas de uma época de muita riqueza.

Em 2005 a cidade do Porto em Portugal doou 3 exemplares de bondes elétricos para Santos. Em 24 de Janeiro de 2006 foi inagurado o primeiro veículo totalmente recuperado e de cor amarela. Em 23 de Setembro de 2008 foi inaugurado, a meio de muita comemoração, o segundo veículo, desta vez de cor verde. Nas oficinas de bondes, ainda há mais um bonde português, 1 norte-americano e 2 italianos. Os bondes estão sendo reformados e circularão nas linhas turísticas que contam com 5kms. de extensão no total, no centro histórico de Santos.

Os três bondes doados pela cidade do Porto, em Portugal, tiveram seus sistemas totalmente adaptados para poder rodar nas linhas santistas, junto aos dois procedentes da Escócia e um reboque. Ainda estão sendo restaurados dois exemplares italianos, doados pela cidade de Turim. Um deles funcionará como restaurante sobre trilhos. Completam o acervo, outros dois exemplares norte-americanos doados pelo Sesc-Bertioga, somando 10 carros, incluindo o que funciona como ponto de informações turísticas na praia do Gonzaga. Assim, em quatro anos, o acervo passou de três para dez unidades.

Paralelamente, a ampliação da linha turística contemplará 40 pontos de interesse histórico, artístico e cultural. Para que tudo isso se tornasse realidade, foi necessário superar inúmeros desafios técnicos num esforço conjunto da Prefeitura Municipal e da Companhia Santista de Transportes Coletivos - CET, responsável pela recuperação dos sistemas originais de funcionamento dos antigos veículos. O serviço representou um grande desafio técnico e as informações elétricas e mecânicas necessárias foram fornecidas pela Companhia de Transportes Coletivos do Rio de Janeiro, auxiliada pela Fundação Arquivo e Memória de Santos, na recuperação de documentos, fotos e plantas.

O desfile dos bondes pelos trilhos da cidade de Santos representa um verdadeiro museu a céu aberto, dotado de peças representantes de vários países, que encanta, a preço simbólico de R$1,00, quem os utiliza e aprende a conhecer o passado importante de Santos, e emociona quem, como eu, teve a felicidade de neles andar, ainda jovem estudante, pelas ruas da Invicta Cidade do Porto, rumo a Campanhã, às Antas, à Praça ou até à Foz do rio Douro...

  • Outros post's deste blogue sobre os Bondes de Santos - Aqui!
  • Quase tudo sobre os Bondes de Santos no Blogue "Muito Bem!" de Emilio Pechini!
  • Bondes sobreviventes no Brasil (pdf).

Um video sobre o 23 de Setembro, Dia Municipal do Bonde de Santos, onde poderemos observar os restaurados "portuenses" 193 (10) e 224 (14) circulando pelas ruas antigas da cidade santista. (Desligue o "player" da DouroFM localizado no menu lateral, para evitar sobreposição de sons)

- Fontes de dados: Youtube, Revista Beach & Co., Google e blogue "Muito Bem".

  • Centenário 1909 - 2009: No dia 28 de abril de 1909 os bondes elétricos começaram a circular em Santos, operados pela empresa The City of Santos Improvements Company. Até então, os veículos eram puxados por animais ou movidos à vapor.
    A novidade marcava a modernização do sistema de transporte público do município, o qual exerceu importante papel no crescimento da economia e o surgimento de novos bairros ao longo do seu trajeto.
    Cem anos depois, o bonde é uma das principais atrações turísticas da cidade, transportando santistas e visitantes numa viagem inesquecível pelos trilhos da Linha do Centro Histórico. Mais de 830 mil pessoas já fizeram o passeio! - Bonde Turístico de Santos; Prefeitura Municipal de Santos.