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sexta-feira, 11 de março de 2011

LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges - CONVITE para 12 de Março

As páginas que se seguem são recolhas de alguns anos de vida guardadas no Lagar da (minha) Memória. Nasceram, como as uvas da PÁTRIA DURIENSE, de cepas de várias castas, idades e lugares. Umas têm o benefício da Região Demarcada, outras, os transcursos citadinos e africanos. Nenhuma delas rejeito: nem a doçura amadurecida, nem o amargo fora de época. (in “Apresentação”).

É a vida do Douro, as vidas à volta das vinhas e dos campos, dos fraguedos e dos socalcos, um cheiro a lagar ubérrimo e escravizante que salpicam o leitor ainda fiel às águas de uma pátria sempre rude para aqueles que não a foram abandonando. Tal como o autor.

 LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges
CONVITE

A Mosaico de Palavras Editora tem a honra de convidar V. Exª e Família a assistir à apresentação da obra LAGAR DA MEMÓRIA, de M. NOGUEIRA BORGES, que irá decorrer no próximo dia 12 de Março (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Apresenta a obra o Dr. Armando Figueiredo.
(Clique nas imagens para ampliar)
Alguns trechos do "Lagar da Memória" transcritos no Escritos do Douro.


Pedidos/compra poderão ser feitos desde já diretamente à editora MOSAICO DE PALAVRAS, via net (http://mosaico-de-palavras.pt/product.php?id_product=101) ou através de Elvira Santos - geral@mosaicodepalavras.com com pagamento por transferência bancaria, ou ainda por meio de envio à cobrança.
Preço - 15,00€.
MOSAICO DE PALAVRAS EDITORA, LDA
RUA COMENDADOR ANTÓNIO AUGUSTO SILVA, 127 - R/C, 4435-191 RIO TINTO -PORTUGAL.
Telefone fixo - 224801761; Telefone móvel – 963678534

quinta-feira, 3 de março de 2011

LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges


As páginas que se seguem são recolhas de alguns anos de vida guardadas no Lagar da (minha) Memória. Nasceram, como as uvas da PÁTRIA DURIENSE, de cepas de várias castas, idades e lugares. Umas têm o benefício da Região Demarcada, outras, os transcursos citadinos e africanos. Nenhuma delas rejeito: nem a doçura amadurecida, nem o amargo fora de época. (in “Apresentação”).

É a vida do Douro, as vidas à volta das vinhas e dos campos, dos fraguedos e dos socalcos, um cheiro a lagar ubérrimo e escravizante que salpicam o leitor ainda fiel às águas de uma pátria sempre rude para aqueles que não a foram abandonando. Tal como o autor.

 LAGAR DA MEMÓRIA de M. Nogueira Borges
CONVITE

A Mosaico de Palavras Editora tem a honra de convidar V. Exª e Família a assistir à apresentação da obra LAGAR DA MEMÓRIA, de M. NOGUEIRA BORGES, que irá decorrer no próximo dia 12 de Março (Sábado), pelas 15 h, na Casa-Museu Teixeira Lopes, 32, Vila Nova de Gaia (perto da Câmara Municipal de Gaia). Apresenta a obra o Dr. Armando Figueiredo.
(Clique nas imagens para ampliar)
Alguns trechos do "Lagar da Memória" transcritos no Escritos do Douro.


Pedidos/compra poderão ser feitos desde já diretamente à editora MOSAICO DE PALAVRAS, via net (http://mosaico-de-palavras.pt/product.php?id_product=101) ou através de Elvira Santos - geral@mosaicodepalavras.com com pagamento por transferência bancaria, ou ainda por meio de envio à cobrança.
Preço - 15,00€.
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sábado, 12 de fevereiro de 2011

OS FRONTEIRÓMETROS - 3




Os risos encolhidos explodiram como champanhe, mas logo o Boaventura cortou:

- Ó pá vocês não se riam nem saiam da sala, porra! Se os tipos vêem a malta a rir-se fode-se tudo!

Pouco depois, tal uma carga de cavalaria, ouviu-se um tropel de botas a descer.

- Lá vêm as cavalgaduras! – disse o Bandeira.
- Formem em fila! - mandou o Boaventura. – Para começo – olhando o relógio – não está mal! Atendendo a isso, não há flexões para ninguém. Vamos, então, dar início à vossa prova de aptidão. O nosso Aspirante Ornelas é o encarregado de orientar o primeiro teste.

Este, armado da cara mais séria que pôde arranjar, plantou-se diante deles:

- Atenção! Firme! Sé...ópe! Dá licença, meu Tenente? – fazendo tremer o braço numa continência espectacular.
- Pode mandar! No fim da aula apresentem-se neste mesmo local – ordenou o Boaventura.
- Esquerda... vooolver! Passo de corrida, em frente... marche!

Passados uns minutos, o grupo abandonou a sala, atravessou a Parada e foi assistir à sessão, disfarçado no morro sobranceiro ao campo de obstáculos, atrás de um renque arbustivo, num esforço incrível para recolher os risos com os lábios e as mãos. O Ornelas parecia que estava a dar instrução ao seu pelotão: mandou-os correr em círculo, intervalando com flexões em frente, abdominais e saltos de canguru, rastejar sob o arame farpado, saltar a vala, a paliçada e o galho, subir às cordas, ficando de fora o pórtico. Tudo num silêncio só entrecortado pelo farfalhar dos corpos e a voz autoritária daquele. Uns soldados que passavam, estranhos pelo que ouviam àquela hora, aproximavam-se curiosos, mas, sobressaltados, viram o Bandeira a afastá-los. Suados, cheios de terra e a bufar, troaram no átrio. Alguns tinham o ar de quem não cria no que lhes estava a acontecer.

- Então, nossos fronteiros, gostaram da instrução que o nosso Aspirante vos deu? Sim ou não?
- Sim, meu Tenente...
- Mais alto! Sim ou não?
- Siiim, meu Tenente!
- Porra!, parece que estão a morrer... Um caçador especial grita sempre alto, com genica e alegria! GOSTARAM OU NÃO?!
- SIIIIMMM, MEU TENENTE!!!
- Óptimo! Muito bem! Gosto de vos ver felizes... Nosso Aspirante Alves dê um passo em frente. Vou-lhe dar – entregando-a - uma ordem de patrulha que todos devem cumprir sem uma falha. Tem anexado um croqui para não haver dúvidas acerca do vosso objectivo. Nem precisam de bússola... Quero avisá-los de que até à Casa Amarela, onde se acoita o inimigo, temos informações de que há bandos terroristas dispersos que vos podem surpreender. Agora vão à Companhia da Formação, onde, na Caserna 8, o Cabo quarteleiro já está avisado para vos fornecer uma FBP a cada um. Bem vão precisar delas... Podem ir e, nunca antes nem nunca depois da meia noite, devem-se apresentar com a missão cumprida. Na Porta de Armas já estão avisados da vossa missão, o nosso Aspirante Alves só tem que comunicar ao nosso Sargento da Guarda. Sigam...

Depois daqueles transporem os portões, uns deixaram-se ficar, entretidos com a televisão, a leitura, o bilhar ou a sueca, alguns foram ao Cinema e o João, o Altino e o Ãngelo, passada uma boa hora, meteram-se no carro para irem ver o movimento dos praxados, passando-os quando eles se encontravam a conversar, sentados nuns pinocos longe, ainda, da Casa Amarela...

Quando a patrulha regressou, à hora indicada, mais minuto menos minuto, já todos estavam a postos, ansiosos pelo bródio que se seguiria.

- Então nosso Aspirante, como decorreu a operação? – interrogou o Boaventura.
- Meu Tenente, mal saímos do Quartel, logo a seguir à curva do muro, como ouvimos uns ruídos esquisitos, resolvemos, para nos precavermos, montar a segurança - explicou o Alves, todo gestos.
- E depois? O que viram?
- Verificámos, afinal, que eram pessoas pacíficas, moradores na zona...
- E como é que souberam? Não me diga que são bruxos?!...
- Falavam de futebol e...
- Mas que perigo, nosso Aspirante! Mas que perigo! Falar de futebol e logo à noite! Não pensou que isso podia ser uma armadilha? Então não sabe que o futebol é o ópio do povo? Vocês podiam ter sido anestesiados como criancinhas! Mas diga, diga...
- Depois continuamos a marcha - o Alves molhava os lábios para contrariar a secura da boca -, sempre guiados pelo croqui, até que, num morro, voltamos a montar a segurança para observação do terreno que ficava em baixo. Estava tudo calmo, era já numa zona desabitada...
- E bateram esse terreno, claro...
- Não vimos ninguém...
- Ai queriam que o inimigo estivesse à vossa vista, a dizer estamos aqui, fodam-nos! Mas que merda de caçadores são vocês?! Tinham que ir lá, procurá-los como furões à caça de coelhos! Mas para isso é preciso ter os colhões no sítio!...
- Mas ó meu Tenente...
- Mas ó meu Tenente o caralho!... Continue, continue...
- Deixámos - nos estar ainda um bocado a ver se havia algum movimento suspeito...
- As folhas a mexer...
- Algum vulto, algum...
- Que viesse ao vosso encontro?!... Meu Deus... Avance, nosso Aspirante, avance...
- Não vimos nada e ...
- Tiveram sorte não levarem umas fogachadas no cu...
- Tinha sempre três homens a caminhar de costas, de frente para o caminho...
- Esses, então, levavam-nas nos tomates...
- Meu Tenente, olhe que a gente...
- Olhe uma merda!... - Continue lá com a descrição...
- Quando chegámos ao cruzamento...
- Montaram a segurança...

Começava a ser difícil conter os risos. Eles ameaçavam estralejar como trovoada em noite abafada de Verão.

- O sítio era perigoso e, antes de o atravessarmos – prosseguiu o Alves, mais confiante e a entrar bem no papel -, tínhamos que ver bem como o fazer. Como mandam as regras, montámos, de facto, a segurança. Dividi a patrulha em dois grupos, um para a esquerda, outro para o direita, e atravessámos, depois, em pontos mais afastados do cruzamento. Prosseguimos a marcha e, como o pessoal estava já um pouco cansado, resolvemos descansar um pouco e montámos a segurança...
- Parou nosso Aspirante! Chega! Porra!, ainda não chegaram a meio do objectivo e quantas vezes já montaram a segurança? Andam cem metros e montam a segurança, andam mais duzentos e montam a segurança.... Foda-se! Tem que me apresentar essa PUTA da SEGURANÇA que eu, também, a quero montar!... Acabaram de chegar e já se fartaram de montar!... Vocês devem ter um tesão do caralho!...Se as catraias sabem disso não vos largam a Porta de Armas!... O que vocês precisavam era – virando-se para o aparelho de televisão – fazer a patrulha no lugar onde aqueles galgos estão a correr atrás da lebre... Sabe como se chama aquilo?...
- É uma corrida de galgos...
- Que novidade! Queria que fosse de coelhos?!... Como se chama o recinto onde eles estão a correr?... - Meu Tenente, aquilo – olhando fixamente para o televisor – é um pavilhão...
- E como se chama?...
- ...
- Diga-me uma coisa, se fossem cavalos a correr como é que lhe chamava?...
- Hipódromo...
- Então, e galgos?!...
- Não sei meu Tenente...
- Galgómetro, nosso Aspirante!... Galgómetro!...

As gargalhadas, já impossíveis de reprimir, soltaram-se como uma prateleira de cristal estilhaçada, alguns agarrando-se às barrigas, as lágrimas deslizando nas faces por um sufoco há muito controlado. Trocaram-se abraços, esvaziou-se uma garrafa de Logan, discutiram-se as peripécias da brincadeira e conheceram-se origens por entre risos intermináveis.

Ia adiantada a hora quando o João, erguendo um copo, gritou: «Malta! A partir de agora somos os fronteirómetros de Chaves!»
Final.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

PASSOU POR AQUI

Por: João de Araújo Correia

Passou por aqui, por esta vila comercial, (1) o escritor Tomás de Figueiredo. Melhor dizendo, passava por aqui e aqui se demorava duas ou três horas, à espera de carro ligeiro ou camião de carreira que o levasse a casa do amigo Fausto, onde se hospedava, às temporadas, para escrever, ir à caça ou não fazer nada. Encontrou encantos na velha Aldeia de Cima - pátria do amigo Fausto. Parece que encontrou ali restos de povo em estado puro e deles se enamorou. Vocábulos antigos e costumes antigos, ainda válidos, encontrou-os ali e ali os saboreou. Deles extraiu bom sumo, boa essência, para a sua escrita. 

O Tomás gostava de me ver. Quando descia à Régua, logo me telefonava para combinarmos o nosso encontro, conversarmos um rato - sentados lado a lado no banco de uma livraria. Creio que nos aproximavam as nossas diferenças de pensar e até o modo de sentir a coisa literária. Ele, com o nariz arrebitado, era uma espécie de lutador glorioso. Eu, com o nariz humilde que Nosso Senhor me deu, era e sou uma espécie de antena desconfiada ou meio desiludida de quanto vai pelo mundo. Certo é que o seu feitio e a minha falta de feitio se atraíam e estimavam. Eu também gostava de o ver e de conversar com ele, sentado a seu lado, no banco da livraria, que ele denominava, com latente orgulho de escritor aguerrido, banco dos régulos.

Eu, se fui reisete, fui um reisete vencido. O Tomás, sempre de lança em punho, fazia do nosso banco um trono partilhado. Mas, como era belo, a meus olhos, aquele bom Tomás... Sempre muito lavado, muito escanhoado, muito alvadio, ia debitando, à minha beira, ecos de coisas minhas desconhecidas. Assim me enriquecia e deleitava. 

Má língua, o Tomás! Por ele percebi como é ruim, lá em baixo, a luta literária. Tinha ressentimentos, remoía queixas de bons escritores e pendurava na lua escritores somenos. Mas, não era ele... Era a vítima, era o produto de meio inquinado a voz que assim esconjurava ou bendizia.

Para temperar o Tomás, propunha-lhe um café... Em menos de amém, punha-o diante de nós, numa banqueta, o primeiro balcão da livraria, a chefe Maria Ângela, que morria por ele, pelo Tomás, tanto como as caixeirinhas suas subordinadas. O ladrão tinha artes de as cativar com fidalguias pouco usadas, numa vila comercial. Morriam por ele, mas, sem sombra de pecado. Cativavam-se do seu bom modo.

Sobre o café, vá de fotografia... Tomás, bem disposto, queria que os dois régulos se retratassem juntos. Armava a maquineta, que trazia na mão, como turista inglês, e pedia à Maria Ângela, ou à Eduarda, que desse ao gatilho.

Não sei como terão ficado, no papel eterno, os dois régulos sentados no banco da livraria. O Tomás levou-os para o outro mundo.

Tinha alma de escritor o demo do Tomás. Deus me livrasse de lhe chamar doutor - como se visse a meu lado, no banco da 1ivraria, o antigo notário de Tarouca, de pena aguçada para lavrar uma escritura.

- Então eu, que tanto suei, para ter nome nas letras, sou doutor? Porque é que você me não chama Tomás de Figueiredo?

E eu, que sou humilde, fazia-lhe a vontade. Tinha até pena de não poder pronunciar com Z o nome próprio do homem, que assinava Tomaz, à moda antiga. Pelava-se por tudo o que fosse passado. Por vontade dele, suponho que ainda haveria capitães-mores e outros anacronismos. Era esse o filão da sua poesia...

Mas, no amor a Camilo, à linguagem castiça e ao povo castiço, ainda viçoso em Aldeia de Cima, éramos parceiros no mesmo jogo ou compadres na mesma freguesia.

Eu preferia o Tomás em verso. Na prosa, para meu gosto, era demasiado rico e emaranhado. Eu, que tenho poucas forças, tinha de as fazer com as minhas fraquezas para lhe romper a espessura. No verso, o Tomás dispersivo entrava em forma. O verso, que desapareceu do mercado, faz falta. Era uma boa poda. Só deixava, na vara, os olhos úteis.

Tive pena, muita pena, do Tomás de Figueiredo... Morreu grávido ou em puerpério... Morreu grávido do último livro ou depois de o ter dado ao mundo. Ao despedir-se de mim, da última vez que passou por aqui, percebi que o escritor andava ocupado, que trazia um filho no ventre. Morreu dele, quanto a mim, porque a gestação artística, de todas as gestações, é a mais esgotante. Pode matar de gestose. Assim aconteceu com o Tomás de Figueiredo, que já não era novo, embora o remoçasse todos os dias, vestindo-o de claro, a sua fé literária.

O Tomás deixou por aqui muitas saudades. Prendia esta gente comercial com o seu trato, que era fino sem ser mesureiro. Saía-lhe da arca sem artifício. Era um claro fio de água na sede de quem trabalha. A Régua é trabalhadora.

Também ele amava a Régua, estes montes, que se tingem de todas as cores quando o Outono os enfeita para uma espécie de morte olímpica. Entrou na livraria, uma vez, com um braçado de folhas coloridas.

- Que é isso, Tomás?

- É um presente, que vou mandar para Lisboa. Veja estas folhas...

Era poeta, sensível à poesia das folhas moribundas, o Tomás de Figueiredo. 

(1) - Régua ou Peso da Régua 
11-7-70

- Nota: Está crónica faz parte do livro “Pó Levantado”, edição da Imprensa do Douro, Régua, 1974. Matéria enviada por J. A. Almeida para "Escritos do Douro 2011".  Referências - Direção Regional de Cultura do Norte e Wikipedia. A imagem ilustrativa acima recolhida da internet livre, é composta/editada em PhotoScape e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

OS FRONTEIRÓMETROS - 2


No primeiro dia em que assumiu o comando do pelotão, João, dentro da farda de trabalho verde azeitona, sentiu o sangue a bulir e uma tremura nas pernas. Olhou aqueles rostos que lhe lembraram os seus antigos companheiros da Primária, jurou que nunca os enganaria, mas, para sua defesa, não seria fraco nem os deixaria fazer o que lhes apetecesse; sabia já que o paternalismo humilha mais do que a frontalidade. As ordens de comando e as continências encheram-no de vaidade, um orgulho contido. Recordou o seu Aspirante de Mafra, o Matos, meio careca, peito inchado, andar de Academia Militar, que parecia ter um prazer sádico sempre que, por tudo e por nada, castigava um Cadete com vinte flexões. Só lhe copiaria o que aceitara.

Calhou-lhe o segundo pelotão da terceira Companhia. Os restantes ficavam para o Ãngelo, o Ornelas, o Fonte e o Baptista. Comandava-os o Capitão Pedrosa, um minhoto bonacheiro, que se relacionava com os seus milicianos sabendo a diferença entre o voluntário e o obrigado, mas, sem esquecer regulamentos. Quando, numa reunião de gabinete, ele lhe disse «olhe que os seus homens têm o cabelo comprido além das
normas», não esteve com meias medidas. Na manhã seguinte convenceu todos a irem à máquina zero. Tiraram depois uma fotografia e mandou revelar as suficientes para dar uma a cada um. A partir daí o pelotão do João passou a chamar-se os carecas.

A Instrução, entre a teoria e a prática, era-lhe fácil e agradável. O que o haviam forçado a fazer no velho Convento-Quartel, de uma dureza que achara de um exagero dispensável, dava-lhe, agora, segurança e à vontade. Levado talvez por essa experiência – ou desculpando-se intimamente com ela - e reconhecendo nisso alguma perversão, em certos momentos forçava os limites como se experimentasse a aceitação das próprias e alheias capacidades; era a fruição da vicissitude contrária. Entre treinos de ordem unida, à disputa a ver quem marchava melhor; sessões de ginástica no campo de obstáculos com rastejares, saltos e subidas a tudo que existia e cross semanal até à Curalha; sessões de tiro e desmontares e montares de culatras e limpezas de armas; encenações de assaltos, emboscadas, cercos e nomadizações pelas serras circundantes, de dia, e variadas ocasiões de noite, a vida consumia-se na ilusão de que tudo se aprendia para uso nos matos africanos.

Ao toque de ordem, corpos lavados e civis, o grupo transpunha os portões e desandava para a cidade, o carro a abarrotar, cabendo sempre mais um, gasolina a meias. Parecia o recreio ambulante de um bando de colegiais. Ora no Aurora, ora no Sport, comia-se um bolo e bebia-se um pingo, a enganar as horas para o jantar, metiam-se com as raparigas, percorriam as ruas como pássaros fugidos da gaiola, ou iam ao Açude espreitar a fronteira, uma tosca cancela no meio da estrada. Depois do jantar, se o serão televisivo espanhol não os pregasse aos sofás, voltavam para, a pretexto de um café, cimentarem os conhecimentos femininos que as suas fardas despertavam.

Uma noite de muito calor, foram ao Alto da Forca, onde, em séculos passados, dizia a lenda e a história, se condenavam os insubmissos da ocupação Romana. Constara-lhes que lá haveria uma quermesse a que se juntou a curiosidade do lugar, ou talvez fosse apenas uma daquelas idéias que surgem por não haver outras... Puxaram a capota para trás, a brisa a acariciá-los, excitados pela originalidade. Percorreram as barracas, apostaram sem resultado nas panelas, e ficaram, depois, encostados ao carro, a música dos alto-falantes a cobrir-lhes as palavras, as luzes da cidade cintilando como reflexos das estrelas.

Quando se dispunham a descer, o Bandeira pediu para dar «uma voltinha até lá abaixo». O Ângelo e o Antão foram para o assento traseiro, enquanto ele, de fora, a acabar um cigarro, lhe indicava como funcionava a chave de ignição, as mudanças, essas coisas. Uns segundos depois, num assombro de quem não acredita no que vê, o Opel Olimpia ganha velocidade inusitada para o terreno sulcado, o Bandeira, lívido, a gritar «João!, esta merda não trava!», ele a berrar-lhe que devia estar a carregar na embraiagem, correndo monte abaixo agarrado à porta, quase arrastado (o Antão e o Ângelo já tinham, entretanto, saltado para o chão, como se o fizessem de um Unimog em andamento), o carro sempre a deslizar, «puxa o travão de mão, caralho!», «onde
é?!», «à tua direita! Não vês? Olha aí! Puxa essa merda para cima!», o carro sem comando, ele enfiando a mão para virar o volante para a esquerda a fim de cortar o sentido do declive, esbaforido, em pânico, a pedir-lhe para parar com aquilo, até que, sem explicação, o automóvel, após uns solavancos, como se fosse abaixo, quedou-se mansamente. O Ângelo e o Antão, lá em cima, um pouco distantes, riam às gargalhadas, o Bandeira, com uma palidez que nem a noite escondia, saiu e sentou-se num montículo e o João lançava carvalhadas agarrado ao volante. Estiveram assim uns instantes, sem fala, anestesiados pelo estupor. João deu ao dimarré, deixou descair um pouco e experimentou o pedal do travão. «Com que então esta merda não trava? Rais te parta, nabo do caralho! Podíamo-nos ter fodido todos lá em baixo!» Fecharam a cobertura, tal quem esconde uma vergonha, e regressaram ao Batalhão.

Costumavam, antes de se deitarem, juntar a farda e as botas da Instrução nas cadeiras ao fundo das camas, para de manhã, sempre apressados, ser mais rápido enfiá-las. O quarto, com janelas para a Parada, era amplo, mas, com poucos cómodos de arrumação. Quiçá os tivesse, eles é que não sabiam aproveitá-lo... Aquilo era sempre uma desarrumação: botas para um lado, calças e quicos para outro, às vezes tudo espalhado pelo chão, já não se sabendo a quem pertenciam as coisas, só as escovas dos dentes tinham certeza de posses. Nessa noite, ainda a imagem do carro a ir por ali abaixo, mal refeitos do susto, a tarefa estava complicada. Ao grito do Bandeira «onde estão as putas das minhas botas? », o João, procurando, também, as suas debaixo das camas todas, respondeu «estão no Alto da Forca!». Resmungo para aqui, alvoroço para acolá, demorado o acerto de par daquelas e das roupas, João berrou «esta merda não é
um quarto, mas um abarracamento!». Desde aí, por galhofeira e unânime concordância, o quarto passou a ser o abarracamento 12.

Em alguns fins de tarde gastavam o tempo, antes do jantar, a jogar futebol. Faziam-no no mini-campo de terra batida, escavado entre taludes arborizados, desfazendo-se em suores por uma bola de catechu. Eram partidas renhidas com muita canelada pelo meio e off-sides inventados para anular golos inconvenientes. Numa dessas discussões de é falta não é falta, João pareceu ver, no alto do morro, o Luís, um Aspirante da Academia que conhecera em Mafra em circunstâncias de cumplicidade e que não esquecera. Fixou o vulto, foi-se aproximando, ele acenou-lhe, e, já sem dúvidas, correu a abraçá-lo. Não havia dúvidas, no Batalhão de Caçadores 10 só tinha alegrias: criava e recebia amigos!

A meio do seu curso apareceram pela Escola de Infantaria, para tirocinarem, alguns jovens Oficiais do Quadro, acabadinhos de sair de uma fornada da Academia Militar. Olhando-os, assemelhavam-se a visionários duma juventude que acreditava num desígnio patriótico, voluntários entusiastas de uma crença forjada nos princípios da honra e da disciplina. Militares por opção, não haviam perdido, contudo, a fraternal generosidade da condição humana. Uns, forçando mais o rigor militarista que o ensino académico lhes incutira, outros, mais libertos para a tolerância que o carácter lhes pedia. O Luís era um destes. Tinha um rosto comparte que não precisava de fingir dureza para se fazer aceitar. Talvez essa a razão para a empatia que os uniu. Não eram habituais as confianças entre os Cadetes e a Oficialidade, mesmo que recente. Obrigavam as distâncias não só as inflexíveis teorias regulamentares, mas, também, o exercício de uma rotina sistemática em que se incorporava, quase instintivamente, um sentimento reactivo de defesa à confraternização com as graduações inferiores; assim o impunha a lógica militar, indiscutível nos seus fundamentos, como se de outro modo não subsistisse. Já o conhecia de muitas noites, ao recolher, se lhe apresentar com a dispensa na mão. Um fim de tarde cruzaram-se no terreiro em frente do Convento, ele fardado, o Luís à civil. Fez-lhe continência e, para sua surpresa, ouve-o: «Isso é lá dentro. Amanhã já vamos ser iguais. De onde és?» Foram os dois para a Ericeira, desfiar as suas origens vizinhas, gostos e passados, combinando futuras viagens conjuntas de fim de semana. Desde então, sempre que o via, entre muros, num daqueles medonhos corredores ou à porta de armas quando em serviço, João fazia questão, perante quem os visse, em ostentar-lhe a sua obediência militarista, formulando-lhe continências escrupulosas, trocando olhares e sorrisos coniventes.

Era esse Luís que agora reencontrava sempre igual, sempre como iguais. Com ele o grupo ganhava um novo e inseparável aliado, um companheiro inseparável.

O Boaventura, que aguardava há bastante tempo a mobilização para uma colónia, era, de entre todos do grupo, o de maior antiguidade e, como Tenente do Quadro, comandava a Companhia da Formação. Uma noite chamou-os e disse-lhes:

- Amanhã chegam meia dúzia de Aspirantezecos novos e vamos praxá-los!
- Vai ser bonito... – deu-lhe para dizer o Antão.
- Ai, vai, vai... Pedem-se sugestões...
- Mandamo-los fazer umas flexões e uns abdominais a seguir ao jantar... - alvitrou o Fonte.
- É pouco.
- Espera! - jubilou o Bandeira -, damo-lhes uma sessão de aplicação militar.
- Não me importo de ser eu a dá-la – ofereceu-se o Ornelas.
- E se fosse um quarto de sentinela? – alvitrou o João. – Falávamos com o Silveira que vai estar amanhã de Oficial de Dia e avisávamos o Sargento da Guarda.

O Altino e o Ângelo só se riam, antevendo as cenas.

- Bom, já estou a ver que não vamos a lado nenhum! Vou decidir eu como comandante desta merda e acabou-se! Preparo-lhes uma ordem de patrulha nocturna à Casa Amarela, precedida de meia hora de obstáculos, e tu – virando-se para o Ornelas – é que vais, então, com os maçaricos.

No dia seguinte, depois de jantar, procedeu-se rotineiramente. Uns tomavam café ou liam os jornais, outros viam televisão ou tomavam conta da mesa do bilhar, outros, ainda, jogavam aos dados, aparentando naturalidade, incumbindo-se de enquadrar no ambiente os, algo inibidos, recém-chegados. O Ornelas tinha ido vestir a farda de feijão verde e o Boaventura avisar o Silveira e o Piquete da Guarda do que se preparara, assim como fardar-se a rigor.

- Atenção meus Senhores! – bradou ele, voz forte, cara dura, mal entrou na sala. – Os nossos Aspirantes acabados de chegar, fazem o favor de se juntarem neste lado – apontando o espaço entre o balcão do bar e a mesa de bilhar. – Há alguém cujo nome comece por A?
- Meu Tenente, eu chamo-me Alves, não sei se...
- Já vi que não... A partir de agora o nosso Aspirante Alves passa a ser o responsável por vocês. Quantos é que são? Um... dois... três... seis! Consigo sete! Muito bem! O que é que se passa, ou antes, o que é que se vai passar? – O Fonte e o Altino mais precoces na incapacidade de suster o riso saíram. – Os nossos Aspirantes – prosseguiu o Boaventura - acabam de ingressar numa Unidade de elite... É costume, sempre que aqui se apresentam Aspirantes Milicianos ou do Quadro, testá-los na sua resistência e sofrimento para ver até que ponto têm, ou não, capacidade para pertencerem e dignificarem a história deste Batalhão, cuja divisa é fronteiros de Chaves sempre excelentes e valorosos. Além de que isto não é para copos de leite ou azeiteiros! – Fez uma pausa a observá-los. - Assim, como o podem atestar os Aspirantes mais antigos que, também, já passaram pelo mesmo (era mentira...), a prova de resistência consta de duas partes: uma interna e outra externa. A primeira é uma sessão, breve mas exigente, de aplicação militar e a segunda, mais demorada, um patrulhamento a um dos alvos mais perigosos das inóspitas redondezas. Têm dez minutos para irem aos vossos quartos vestir as fardas de instrução e apresentarem-se lá fora no átrio. – Os sete puzeram-se a olhar, incrédulos, uns para os outros. – Está a contar o tempo! O último a chegar paga vinte flexões! – berrou, ríspido, já eles, em corrida, subiam as escadas.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

OS FRONTEIRÓMETROS - 1

Quando, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, lhe entregaram um impresso para indicar três Quartéis onde gostaria de ser colocado, depois de terminado o Curso de Oficiais Milicianos, o soldado cadete João coçou a cabeça e pediu para entregar aquele no dia seguinte. De noite, na caserna, depois da instrução nocturna, enquanto o sono não se apresentava, magicou no caso. Tinham de ser terras onde houvesse Destacamentos de Infantaria. Porto foi logo a sua prioridade. De lá tinha sido arrancado, o curso de Economia no início, e gostaria de regressar à velha cidade granítica, mesmo que por escasso tempo, pois, sabia-o, mais tarde ou mais cedo, abalaria, num barco qualquer, para uma frente da guerra colonial. Era uma circunstância sentimental, uma maneira de regressar aos velhos lugares, embora com uma farda. A segunda hipótese levou-o a Vila Real, onde, em tempos, no 13, o seu Pai cumprira a obrigatória servidão militar. Seria interessante pelo simbolismo e, como ficava a escassos quilómetros de casa, podia, até, ir e vir todos dias, excepto aqueles em que a Ordem de Serviço o colocasse na escala. Mais difícil foi acertar com a terceira opção. Excluída Lamego, não coadunável pela sua especificidade, além de não estar fadado para Ranger ou travessias de rappel, sobrou-lhe Chaves. Nesta cidade raiana, na década de sessenta, quadra em que esta narração decorre, localizava-se o Batalhão de Caçadores Especiais 10, com o epíteto de fronteiros de Chaves, sempre excelentes e valorosos, unidade com fama de dura e rigor militarista, tanto na corporação castrense como nas margens da sociedade civil que, de algum modo, lá tiveram ou tinham familiares. João, também, não o ignorava, mas devia completar o quadro das três preferências, sempre confiante que, se não lhe satisfizessem a primeira, a segunda, ao menos, não lha recusariam. Com essa esperança fez as malas e partiu para casa, mal lhe deram a bicha de Aspirante, a aguardar futura ordem de marcha. Pouquíssimos dias depois, com um indisfarçável sorriso e sem espanto – que, das coisas militares, ele já de nada se admirava - , o carteiro entregou-lhe uma carta onde vinha a convocatória do Exército para se apresentar em Chaves.

Numa reluzente manhã domingueira de Julho do ano de sessenta e seis, ao fundo de uma frondosa Avenida, em meia-lua espaçosa, viu o seu novo destino, admirando-se por, logo à primeira vista, dele ter gostado. Saiu do automóvel emprestado pelo Pai, correspondendo, ufano, à apresentação de armas do sentinela, e solicitou esclarecimentos ao Sargento da Guarda. Se pelo brilho do dia, pelo descanso da incógnita acabada, ou a frescura do edifício, foi satisfeito que estacionou o carro no parque, fez as apresentações ao Oficial de Dia, arranjou quarto, pousou a mala e percorreu, sozinho, as divisões da sua nova casa. O Quartel, reverberando ao sol, fazia-lhe esquecer a soturnidade conventual da Escola Mafrense, que, em depósito de meio ano, sempre lhe lembrara penitências de castrados fradescos, cumprindo, envoltos na escuridão, martirológios irracionais. Agora tinha, apesar da sua condição de milícia forçado, o calor e a brancura de um espaço que o aprazava. Mal ele sabia, infante ingénuo e generoso, que dentro daqueles muros, com um punhado de iguais, cozeria, no seu mais feliz período militar, o alimento puro e belo da amizade perdurável.

Em posição altaneira à cidade, como se velasse pelas suas gentes, costas defendidas pela Serra Amarela que se estendia, numa esquerda longínqua, para se grudar à cordilheira Castelhana, o Batalhão tinha uma ampla Porta de Armas, acedendo-se ao Comando e respectiva Messe de Oficiais através de uma escadaria bordejada por canteiros de verdura ou por dois curvilíneos arruamentos empedrados subindo ligeiramente. Atrás daquele, uma enorme Parada, impecavelmente limpa, com as casernas laterais, e, no cimo de uma pequena elevação cimentada, o Refeitório das Praças com a Messe de Sargentos ao lado. Depois do almoço, João desfardou-se e resolveu dar uma volta pela velha urbe onde Trajano deixara história. A apresentação ao Comandante da Unidade, dos Aspirantes esperados, seria feita na manhã seguinte, assim como a atribuição das tarefas futuras. Desceu a pé a Avenida que subira de manhã; passou no largo, onde, todos os anos, se amontoavam os feirantes da festa dos Santos; desaguou no jardim do Tabolado, em frente ao Liceu, e entrou no Aurora. Sentou-se, pediu um café, mirou e remirou o ambiente. Numa mesa do canto, escutado por uma tertúlia de catecúmenos, viu Nadir Afonso, que conhecia dos suplementos literários, de barbas grisalhas, provavelmente em vilegiatura flaviense. Reparando, descuidadamente, num jornal abandonado em cima do balcão, levantou-se, pegou-o, perguntou «Posso?», ressentou-se e, afastando a chávena, abriu-o sobre a pequena mesa redonda: era o Notícias do Tâmega. Sobre ele se debruçou, fingindo compenetrada inculca, mas reparando sempre em quem saía ou entrava. Deixou-se estar um bom bocado, pernas cruzadas, queimando cigarros. Eram bonitas as raparigas de Chaves... Depois, desceu a Rua de Santo António, virou à direita para as Termas, visitou a zona dos balneários cheia de aquistas que se amornavam nos bancos a fazer horas para a ração da água, retrocedeu para a Ponte Romana, sob a qual um Tâmega estival corria serenamente para a lonjura do mar, e reiniciou o trajecto ao contrário junto do posto da PVT. Os domingos não são bons dias para se perceber uma cidade, ausentes as rotinas, as surpresas e o nervosismo do quotidiano utilitário, mas pareceu-lhe – confirmado pelos meses seguintes - que Chaves era uma cidadezinha aconchegada, de conhecidas vizinhanças, limitada pelas faldas dos serros circundantes, onde, contudo, fervilhava um próspero comércio e um tolerado intercâmbio fronteiriço, um sopro suave e morno de fraternidade embrulhado num orgulho regionalista.

Quando regressou ao Quartel, deu, num abraço de risos e brados, com o Bandeira, seu antigo companheiro do Brotero, agora reencontrado em outra sorte. Pela noitinha, quanto viam a RTVE na sala da Messe, juntaram-se-lhes, vindos do Porto, entre outros, o Altino e o Ângelo que, feitas as apresentações, vá-se lá saber por que resultado afectivo, logo combinaram ficar no mesmo quarto de quatro camas e que tinha o número doze. João sentia necessidade de partilha, como se procurasse almas gémeas em que confiar. Boa parte da noite passou-se no desenrolar das experiências mútuas, numa pressa de conhecimento que selasse um pacto.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Ausência

Não sei há quantos anos - talvez desde que me conheço – que transporto uma imagem-memória sem definição.
Bem me esforço por lhe encontrar a forma, a cor e o conteúdo, mas, sempre em vão.
Nessa procura me perco sem relógio, num suor pegajoso, numa dor de impotência, numa íntima aflição.
São momentos de luta interior que tanto ocorrem numa noite de espertina ou na balbúrdia do dia, sem resposta para as minhas dúvidas, convencido de que nunca alcançarei o descanso da solução.
Umas vezes, aquela imagem surge-me num revivalismo do já experimentado, mas, quando a aprofundo, logo se me dissipa a objectivação e tudo é engano, mistura de pensamento e de lembrança no esbatimento da monotonia.
Tanto me aparece no roxo da revolta como no rubro da injustiça, no negro da ingratidão como no cinzentismo da apatia.
Tanto chora numa premência de tristeza como grita numa brevidade de alegria.
Há, porém, uma minúcia que já apreendi: o sentimento da ausência. É isso: a ausência como uma fome nunca satisfeita, uma falta insuprível, um espaço sem tempo e sem modo, continuamente à espera de quem a possa preencher.
Será a ausência de uma alma que na minha se devia encaixar? Será uma incompreensão atávica perante a frieza de um mundo que não há meio de entender?
Será uma desarmonia entre uma época sem sentido e uma consciência inadaptada?
Um vazio, aquém (e além) do nascituro, como se o corpo fosse apenas o invólucro de um nome destinado ao cumprimento de uma obrigação gerada?
Mas se, afinal, isto não se explica, por que buscar, então, no intervalo da vida e da morte, a pacificação do entendimento, essa imagem-memória, se ela é uma ausência ausente, que é o mesmo que afirmar uma incapacidade racional – não uma subjectivação incomunicável -, uma omissão que se sofre no envelhecimento de um retrato que escurece tão veloz que só damos por ele quando o espelho se fende?
Vem-me de longe essa nuvem, esse tempo sem tempo, como uma sombra dos dias, como uma angústia de exílio. Queria-a na sua substância, demorar-me na sua presença para a saber inteira, porque só assim decifraria o seu sentido no relacionamento comigo.
Bastava detê-la no meu (e no seu) conhecimento e, depois de esclarecido, largá-la definitivamente.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

OS IGNORADOS

Falo-vos da África dos matos sem fim,
Dos ecos perdidos no capim,
Das picadas vermelhas mas livres,
Tão livres como a liberdade.
Em cada curva uma palmeira,
Em cada lugar uma saudade,
Em cada sorriso uma clareira
De brancura e de amizade.

Falo-vos das noites de encantamento,
Das queimadas para lá do pensamento,
Da lua a beijar a baía de Pemba,
Do batuque e das esteiras na temba
Onde o meu corpo se satisfazia
Em outro corpo que, depois, dizia:
« São cinco quinhentas, patrão! »
E eu, cá dentro, aqui onde bate o coração,
Nem sei o que sentia.
Só sei que, depois, voltava
Com mais quinhentas na mão,
Roído pelo tédio e a solidão.

Falo-vos dos poemas proibidos,
Alguns esquecidos,
Outros lembrados
E agora publicados.

Falo-vos dos loucos a berrarem no entardecer,
Das sentinelas a dispararem para a escuridão
Com o medo aos saltos, na indecisão
Da manhã que não se sabe se vai nascer.

Falo-vos dos rios em que lavei o rosto,
Matei a sede ao sol- posto,
Gritei que não queria a guerra,
Mas não desertaria da minha terra.

Falo-vos da África onde não voltarei
Para matar a fome das minhas recordações,
Abraçar os irmãos que deixei
E lamber as feridas de todas as desilusões.

Falo-vos da África dos nossos soldados,
Dos seus sorrisos e dos seus abraços,
Uns, já mortos, outros, vivos-despedaçados,
Mas, todos eles, ignorados.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima representa parte do Parque Tsavo no Quénia/África e foi recolhida no site "Viajologia-Época-Viajando com Haroldo Castro". Composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Intemporal

Era no verão passado, numa tarde quente dos últimos dias do meu calendário do mês Julho.

Inesquecível, a luz desenhada pelos ramos dos velhos plátanos, que ao passar me faz uma sombra no passado.

Naquele tarde, lembro-me que pedi para ficares, para não ires embora tão apressadamente. Tu já não ouviste nada e foste embora, a correr para lado nenhum.

Não te disse que precisava de Eternidades para te esquecer…!

Agora, lembro do silêncio que ficou, para sempre, naquele lugar. Entre as margens do meu rio, entre as margens da nossa existência. Sabes, podes não acreditar em mim, mas é só o silêncio que ouço de ti, quando caminho no meio dos plátanos.

Ao contrário de nós, os plátanos são intemporais. Como é a  paisagem admirável das Caldas do Moledo. Aprendi que nós somos mesmo seres temporais: vivemos sempre entre o passado e o futuro...!

Que sorte ter aqui passado na altura certa, bruscamente no verão passado!
- José Alfredo Almeida, Peso da Régua, Janeiro de 2011. Clique na imagem acima para ampliar.

A QUINTA DO PINHEIRO MANSO

O Dr. Fonseca - Fonsequinha para os da sua criação - quando chegou à Quinta do Pinheiro Manso – assim chamada por ter na sua extrema mais distante uma dessas gigantescas árvores pináceas - estacionou o carro ao lado da porta do armazém. Atravessou a estrada e sentou-se no muro, de costas para o pomar do Branquinho. À sua frente, a fachada de cantaria com uma varanda ao meio, ladeada por duas janelas, e uma águia real no cimo do telhado. Era uma sensação esquisita, um misto de deslumbramento pelo regresso satisfeito e saudosismo de um passado de adolescente. Lembrou-se daquela madrugada em que se sentara, com a Mãe e o irmão Armando, mais novo dois anos, no assento traseiro do velho carro de praça do Álvaro (um Ford preto, lembrava-se como se fosse ontem) com o Pai ao lado deste. Tinha quinze anos e nunca esqueceu as lágrimas da Mãe, grossas e ininterruptas por um abandono contra a vontade; o Pai, percorridos uns metros, virara-se para trás, numa despedida final, os olhos húmidos num rosto atraiçoado. Até Lisboa, foram horas de solavancos e paragens, atrás de uma velha Bedford, guiada pelo primo Zacarias, a abarrotar de móveis e trastes velhos.

Estava de novo ali, dono, agora, do que deixara, forçado, há quase meio século. Muitos anos, tantos que os Pais já dormiam o sono de que nunca se acorda. Gostava de os ter ali, para, num minuto que fosse, substituírem as lágrimas de amargura pelas de alegria. Solteiro por opção, ou, como costumava dizer, por racionalidade - pois desistia dos namoros quando desconfiava do aproximar do ponto de não retorno -, não tinha ninguém com quem partilhar o momento. Apavorava-o sempre a perda de independência, aquela liberdade de movimentos que a comunhão selada exclui. Reajustava conquistas novas, já que, bem parecido e bolsa suficiente, a dificuldade era seleccioná-las. Sem o confessar, era um daqueles misógamos para quem uma fidelidade não passava de uma coacção dos comportamentos.

Em Lisboa, mais precisamente, na Portela, que, naquela altura, era quase um subúrbio, nas imediações de um Quartel de porta de armas em rodopio constante, instalaram-se numa casa apalaçada de família pequena que lhes alugou uma ala por recomendação de amigos comuns, donos de uma grande loja de tecidos e que ajudaram o Pai a reencontrar hábitos negociantes pelas feiras das redondezas da Capital. Ainda esperaram uma pequena quota de sociedade em homenagem às riquezas antigas, mas nem mesmo as afinidades criadas com o baptismo de um filho lhes estimulou o gesto. Com uma subvenção fixa e as comissões angariadas, Fonseca – Fonseca Maria da Silva, adiante-se desde já – ia sustentando os estudos dos filhos e a Mulher que, longe da criadagem em que fora nascida, gemia recordações num meio sem raízes. Todas as noites, a uma mesa despida de fartura, Fonsequinha, misturado em comiseração e raiva que lhe despertavam ganas de um dia poder resgatar a humilhação, ouvia o Pai mastigar o pão e a sua história.

Granjeara fortuna a vender baga de sabugueiro e volfrâmio sem saber a quem. Os de negócio igual, uns, diziam que era para os Alemães, outros, para os Ingleses. Entregava a mercadoria numa casa exportadora do Porto e pouco lhe importava o destino desde que o dinheiro – coisa sem rosto e sem fala – viesse. Comprou carros e cavalos, lameiros e consideração. Um dia, soube que a Quinta do Pinheiro Manso estava à venda. O dono, viúvo, velho e com o único filho enterrado pela pneumónica, queria-se desfazer daquilo. Homem de pormenores e feitio perfeccionista, Fonseca da Silva gastou tudo o que tinha para a transformar num brinquinho. Se já gostava dela quando ainda nem pensava em comprá-la, agora era a menina dos seus olhos. Tinha finalmente uma Quinta que, mesmo sem benefício, lhe dava estatuto de Lavrador. Quando lá se instalou, vindo da modéstia de Chãos, sentiu um prazer quase carnal.

Milhares (Felisberto de pia baptismal) era alcunha que se lhe pespegara como uma sarna, depois de herdar, de um tio brasileiro, meia dúzia de mercearias Paulistas e uma porção de cruzeiros com demorada contagem. No lado de lá do Atlântico, em requintada estadia, vendera tudo e apresentara-se em Santa Maria de Chãos, povoado vizinho de Lamaçal, num Buick amarelo descapotável com espaventosos cromados e pneus pintados de branco. Não precisou de esperar muito para se tornar, com desapiedada usura, em abastado proprietário de quintas aconchegadas. Emprestava dinheiro a juros contra a hipoteca dos bens dos aflitos. Estes, ultrapassados os prazos e exauridas as finanças, entregavam-se à frieza da Lei e do Milhares. Após algumas hesitações, o agiota fixou-se numa virada ao rio que, num donaire nunca visto, ornamentou com graciosos globos brancos, iluminando, todas as noites, os socalcos tratados a primor. Terreno sem muitas cepas, que, essas, tinha-as ele em outros lugares da Rota, era, antes, assim a modos que um símbolo heráldico de abastança desforçada, acrescida do direito de tratar uma boa dúzia de pipas em cada vindima. O povo crismou-a com o nome de Quinta das Bolas, mas, ele chamava-a de Quinta das Luzes.

Em desfavor do costume nos herdeiros colaterais, em que uma herança surge como uma lotaria inesperada, Milhares ressabiava-se por quem lhe tolhesse uma ambição. As terras do Pinheiro Manso eram um desses bocados que ele, há muito, idealizava na sua posse. Apreciava-lhe a localização, à beira de estrada, perto da Vila, com água à fartura. Tinha tanto que mandava vir das mais caras casas do Porto – por vezes, também, eram as melhores... – tudo o que necessitava ou negligenciava. Pagava ao Quim, chauffeur de sua estima, uma quantia mais ou menos correspondente à sua safra diária, e, pela noitinha, lá estava ele a descarregar a mercadoria. Se fosse dia de bom clima, Milhares pedia-lhe ajuda para meter os carros na garagem, pois, nessas alturas, ele costumava expô-los ao ar livre para que as latas não apodrecessem com a humidade e não tivesse que cegar erva nos tapetes. O Buick, tirando um ou outro domingo de festa, dormia o sono dos desaproveitados; o Dodge era feio demais e só servia para justificar a amplitude da riqueza; o Boca de Sapo, qual banheira a flutuar no alcatrão, servia-lhe para as idas ao Café ou às feiras semanais.

Dono de uma artimanha que, felinamente, conjugava com a espera paciente que lhe traria a vítima, adulou o Fonseca. Convidava-o para jantar, prendava-lhe os filhos, e, por tudo e por nada, estava sempre a dar-lhe os parabéns pela excelente compra que fizera. Visitavam-se reciprocamente e jogavam o dominó em serões de risota. O fingimento escapa sempre à boa fé, principalmente quando aquele se disfarça nos sorrisos e nos logros sem pressas. O ganho de uma confiança nunca se conjectura maculada, pois, se a pobreza gera guetos, a riqueza define natas e estas não aceitam, pelo descanso da fortuna, as hipóteses das surpresas. A Mulher - de seu nome Deolinda – dona de um faro apurado da suspeita, quantas e quantas vezes lhe dizia: «Fonseca, cuidadinho com o Milhares que ele não dá ponto sem nó!» Ora, esse tempo ainda era dos homens e as mulheres serviam para a cama, a cozinha, a criação dos filhos e todas as suas opiniões sempre cortadas pelo dizer da época: «Vê se tratas das panelas e dos filhos que já fazes muito.»

Assinado o Armistício e repartidas, como trofeus de caça, as nações derrotadas, a esperança do fim dos racionamentos e de uma paz duradoura só entusiasmou os fartos da miséria e do medo. Portugal não entrara na guerra, mas, todas as guerras, zunem por perto, mesmo aos não beligerantes. Sem armas ou bombas para sustentar, inventariadas novas prioridades e consensualizados outros desígnios, o volfrâmio deixou de interessar e as valas serranas cobriram-se de restolho. Secas as fontes dos rendimentos, muitos agregados demoraram a fazer contas. Desprevenidos, porque os que lucram com aquelas nunca pensam que elas terminem do modo inopinado como começaram, puseram-se a olhar uns para os outros a ver o que cada um fazia. Ouve quem se suicidasse por dívidas ou incapaz de imaginar penúrias; quem deixasse a nascença para esconder a vergonha na indistinção longínqua; quem se consumisse na depressão das mãos atadas, à espera de que uma luz lhe trouxesse uma esperança para ajudar a sobrevivência; quem, de algum dinheiro guardado, erguesse, nos terrenos que alimentaram as armas, pomares de macieiras, com o bravo de esmolfe em preponderância; e quem, de bolsos cheios, se preparasse para ouvir as sirenes das privações alheias.

A casa tinha um aspecto geral de desleixo. Fonsequinha notava-lhe a frontaria pincelada de nódulos negros, as portadas descoloridas, os ferros amarelecidos de ferrugem, os beirais apodrecidos e, até, a águia deixara de ser branca e o seu bico adunco. À esquerda, a antiga cavalariça, entre a casa e o muro que sinalizava o carreiro que levava aos lagares, era um montão de destroços disfarçado nas ervas. Pela amostra, os filhos do Coronel tinham deixado aquilo num estado deplorável. Não se arrependia, contudo, do cheque que lhes dera. A reparação de uma vida não tinha preço.

Os carros, ao passarem, abrandavam a marcha e as cabeças, lá dentro, viravam-se com aquela cara de quem diz: «Olha o Dr. Fonseca! Parece ele...» Ia, esporadicamente, a Lamaçal, para, a pretexto de cumprimentar os parentes afastados, se mostrar, avivando-lhes – pensava ele – velhos remorsos por nunca terem dado um passo para ajudar os seus Pais. Dava-lhe um certo prazer surgir-lhes advogado famoso, enquanto eles continuavam debruçados sobre os pomares. Algumas demandas por ali tinha resolvido e a que melhor recordava era uma questão de águas verrinosas do Manuel Francisco. Pensou em lá dar um salto, tomar um café ou comprar regueifa na padaria, mas, desistiu quando se lembrou do seu velho professor de Reais que dizia a cada passo: «A posse só é grande quando não nos altera as feições.»

Meteu a chave no portão, subiu a meia dúzia de lanços e viu-se no quintal da sua infância. O cimento substituíra a terra, a horta estava uma estrumeira de esquecimento e o tanque, coberto do piolho das laranjeiras, rodeado de frutos putrefactos pelo chão. Sentou-se nas escadinhas junto da porta de casa, puxando de um cigarro, e ali ficou a saborear o prazer com receio de o esgotar.

O Pai ainda aguentara um tempo largo as tacadas da precaridade. Constrangido, dispensou assalariados e ficou só com dois, os mais velhos e dedicados. Recorreu ao sogro que lhe abriu os braços e, depois, acossado pelos gastos, ao padrinho que, a muito custo, lhe esticou uns dedos como quem dá uma esmola. Um dia abriu-se com o Milhares. Que sim, não havia problema, só tinha que dizer quanto queria e «vamos ao Cartório fazer um documentozito, porque há viver e morrer». A Deolinda, mal soube, disse logo que não assinava. Antes comer pão e sardinha a entregar-se nas mãos daquele «safardana». Milhares, que via chegar a hora da sua desforra, ajudou ao convencimento que, valha a verdade, pouco custou, tais eram os apertos. Quando, passados uns tempos - ano e meio, mais mês, menos mês - , a nora deixou de rodar e o pão já não se cozia, Fonseca Maria da Silva entregou as chaves da Quinta do Pinheiro Manso nas mãos de Milhares e abalou com a Deolinda e os filhos para Lisboa.

O Dr. Fonseca sentiu as pernas a tremer, uma neblina nos olhos, uma friura a arrepiá-lo. Levantou-se, mas teve que se sentar logo. Apetecia-lhe gritar, qual vulcão explodindo numa fúria vermelha depois de anos e anos a fermentar. Deixou-se estar, mesmo que a pedra lhe desconfortasse as nádegas. Aspirou o ar, tentou dominar-se, expulsar aquela rolha que lhe tapava a boca, mas era mais um carpo no meio do peito. Viu-se num triciclo de madeira, para cá e para lá, saltando nas pedrinhas, a barafustar com o irmão, a água deslizando nos regos dos feijoeiros, do cebolo, das tronchas e das alfaces. Entrou na casa, mais sereno, e um cheiro a surro e a mofo empestou-lhe as narinas. Os seus passos ecoaram com aquele sobressalto que as casas abandonadas têm. À esquerda, era o quarto dos Pais com as duas janelas que tanto davam para o pomar e a largueza da serra como para a estrada que permitia ver quem vinha de Lamaçal. No soalho, pó e lixo velhos amontoavam-se como se por ali tivesse passado, há muito, um bando de assaltantes; nas paredes escorria uma humidade putre, igual a um visco cavernoso. Abriu, ao sol da tarde, as janelas laterais que davam para os lagares, por entre barulhos de gonzos, algumas de vidros partidos com pedaços de papelão esboroado. No que fora o seu quarto deu um salto para trás: uma ratazana, do tamanho de um coelho, por entre uma restolhada de cal e papéis enegrecidos, escapuliu-se por um dos buracos do chão, junto à parede onde era a sua cabeceira. Aqui conhecera a puberdade e massajara os primeiros pêlos, os desejos escondidos e masturbados a pensar nas mulheres que via; era o seu refúgio quando os Pais discutiam por razões que só mais tarde percebeu, adormecendo embalado pelo sussurro das águas. Na sala de jantar espalhavam-se restos de jornais e – pasmou-se – uma ceia de Cristo, daquelas que se compram nas feiras, dependurada na parede. Na marquise, onde, com o irmão, se entretinha nas tardes de invernia, surpreendentemente, os vidros estavam todos, mas não havia, sequer, um vaso de planta murcha. Na cozinha, uma mesa desconjuntada, em cima da lareira, e um pote imundo ao canto, os canos soltos, por cima da banca, fora das anilhas de suporte. Saiu e sentou-se, de novo, nas escadas. Percebeu-se só.

Em Lisboa, Fonsequinha licenciara-se em Leis, acabando por ficar no consultório onde estagiara, sempre à espera da primeira oportunidade de se emancipar. Quando a Mãe lhe disse adeus, o Pai demorou pouco a fazer o mesmo. A necessidade desunia-os com frequência, mas eram um daqueles casais em que, quem sobrevivesse, resistiria pouco ao vazio do outro.

Combalido, orfão de tudo, desamparado numa cidade sem coração em que a prosperidade estava sempre nos mesmos, resolveu, com alguns contos amealhados, vir para a terra das suas origens tentar saldar a sua obsessão. Foi à Farmácia, onde Armando, já casado, labutava como ajudante técnico, e propôs-lhe irem «lá para cima», repetindo-lhe a sua ideia tantas vezes confidenciada. Quando o irmão, num riso de troça, lhe disse, perguntando: «Não te passa mesmo essa ideia, pois não?!», Fonseca virou costas e partiu.

Montou banca na Régua, hospedando-se na Pensão Borges até comprar apartamento na parte alta da Vila. Ganhou nome a defender homicidas que ele transformava em contrariados matadores em legítima defesa. Bulha de navalha que desse sangue ou morte em qualquer redondeza aldeã, enchia-lhe a sala de espera do consultório. Ele ouvia, ouvia, uma pergunta aqui, outra ali, para adornar, torcia o nariz, «Senhor Doutor, gaste-se o que se gastar!», cobrava os preparos, calculando os prazos processuais, combinava a data para o adestramento das testemunhas e apontava todos os passos dados. O seu crédito alastrou a casos de heranças fartas, minadas por insanáveis disputas familiares, que abrangiam, conforme os interesses defendidos, avaliações de gordas ou magras tornas; a compras e vendas de terras de usucapião complicado e paternidades melindrosas, provocadas, em ventres de moçoilas pobres mas de boas carnes, por endinheirados de prepúcios avidamente esgaçados. Isso autorizou-lhe o capricho de comprar uma quinta no Alto Corgo, coisa de cinquenta pipas e perto de uma dúzia de benefício de letra A.

Um dia, conferindo os seus extractos bancários, resolveu que iria ser Advogado Livre, tomando conta só dos casos irrecusáveis. Tornou-se, então, negociante de vinhos a tempo inteiro. Era um sonho que o perseguia desde que soube da saga do seu Avô materno, esfalfado a trabalhar para ganhar só para o sustento, sempre aflito a implorar a venda da novidade por um preço espezinhado, à mercê das Casas Exportadoras, numa hostilidade tão gritante que, mais do que uma desigualdade negocial, era uma humilhação tão grande que até revoltava o mais sacripanta. Aprendera que a viver só do granjeio das vinhas não se saía da cepa torta e tinha pena daqueles iludidos que, por possuírem muito milheiro, se julgavam ricos.

Engendrou a teia dos seus conhecimentos, peneirou hierarquias administrativas, comprou resistências sem rosto, comissionou consciências sem doutrina, e não se importou, algumas vezes, de perder, prospectivando lucros, abdicando dos imediatos. No Porto, na margem esquerda do Douro, os descendentes da velha Albion, quando, ao princípio, lhes soaram os ecos compradores do causídico, virado negociante vinícola, não ligaram, entendendo-o como mais um lunático que resolvera distrair a fortuna numa fanfarronice propagandista. Os sinos das suas capelas só tocaram a rebate quando, em cima dos seus stocks envelhecidos, retiniu a loucura do Dr. Fonseca. Este, num lance de tremendismo comercial, comprara milhares de pipas a Adegas aflitas com os pagamentos atrasados aos seus associados e espremidas pelos juros dos empréstimo bancários. À quantidade juntou-lhe a invulgaridade do preço, triplicando o que corria no mercado e pagando a pronto. Nunca se vira uma coisa assim. As Adegas escancararam as portas às filas dos sorridentes lavradores, as agências financeiras acertaram os créditos vencidos, os tribunais arquivaram processos de dívidas, caiaram-se casais escurecidos, as lojas voltaram a vender os químicos e os pulverizadores retornaram com o remédio azul. Os velhos senhores da Região, rotinados na obediência às suas leis e ao tabelamento dos seus interesses, reuniram-se de emergência nos veludos das sua Associação. Nada decidiram, resolveram esperar, porque, se por um lado, aliavam argumentos para nem uma pipa comprarem ao preço que o Dr. Fonseca instituíra, por outro, tinham os mercados externos à espera e as existências para renovar. O tipo não possuía capacidade exportadora e seria cozinhado em lume brando. Em lume brando - sabe-o toda a gente - é como a comida é boa: não se queima e o sabor melhora. O cozinheiro era ele, tinha os géneros, o lume e a paciência. Adquirira, pelas variadas barras em que litigara, a sabença de que todos os riscos devem ter uma rede e os corporativismos não resistem a fendas, por mais sólidas que se assemelhem as irmandades. A Advocacia dera-lhe a medida exacta das coexistências possíveis, das divisões e dos aleatórios das firmezas, sendo que, frequentemente, melhor se explora uma discórdia jacente do que se ajusta um consenso simulado. Fez uma parceria secreta, - um daqueles conluios que se apregoam confidencias e toda a gente conhece - com quem lhe poderia oferecer as vias exportadoras: o Engenheiro Ramiro – estabelecido, há anos, no meio dos que haviam atravessado o Canal da Mancha em busca do eldorado dos montes agrestes -, cúmplice em causas antigas e empatias recíprocas de comuns apreciações às subserviências reinantes. Não era o filantropismo que os movia: aliavam essa aparente magnanimidade às suas vantagens e a uma estranha e avelhada dispepsia do Eng. Ramiro a ligações mal consolidadas com aqueles. Os fundos próprios, nomes e assinaturas abriram-lhes as chaves do crédito. O Dr. Fonseca explorou em Jornais, Televisões e Rádios a vitimização regionalista, aliciando serventuários mal pagos e habituados a lautas mesas, subsidiou clubes de futebol e romarias, angariou espantos e simbologias e jogou na Bolsa embalado pela euforia primaveril do Marcelismo. Quem vivia à sua sombra não o discutia, quem lhe invejava os voos caçoava-o, quem sabia e podia interpretar a vida com a distância dos solventes dividia-se: os tolerantes apreciavam-lhe o rasgo, os radicais censuravam-lhe a aventura. Na Classe, de que se afastara, chamavam-lhe Poeta. Ficaram célebres algumas defesas em que, a propósito das figuras dos réus, seus contextos familiares ou perfis psicológicos, desatava a recitar poemas em fulgurância declamativa: de António Nobre a Guerra Junqueiro, de Cesário Verde a Régio, tinha sempre na ponta da língua os versos que melhor se ajustavam ao caso julgado. Os Meritíssimos, esses, ou encaixavam um sorriso benigno ou, mais acrimoniosos, interrompiam a escusabilidade, logo obedecidos com uma frase terminal: «Tem toda a razão, Meritíssimo Juiz, para que hei-de estar a recitar o que toda a gente conhece?...» Admiravam-lhe a rapidez de raciocínio, mas, encolhiam-se perante o excesso que o acompanhava; impressionava-os o seu modo de olhar, como se lhes esquadrinhasse as entranhas a adivinhar o que pensavam. Tinha a observação de um alquimista e a generosidade inconcepta, que poderia passar, num minuto, do agrado cativante à irascibilidade que afugentava. Pelo escritório, os empregados passavam como meteoros. Alguns nem esperavam o fim do mês. Ainda mal determinara uma tarefa já estava a mandar fazer outra; nada estava bem, punha defeitos em todas as cartas, em todos os modos de atender a clientela, sempre inquieto e insatisfeito a repelir o mundo; falava aos sopetões como se atirasse injúrias. Nas fases em que acordava diferente, envolvia-se em sorrisos e atenções como quem repara erros, mas, já poucos acreditavam nessa sinceridade. Nem os colegas poupava em apreciações profissionais desprimorosas. Não escapavam, a muitos, estes desconsertos histriónicos e a dúvida de um comportamento bipolar fixou-se em alguns. Conquistou a fama tanto de intratável quanto de magnânimo. Ao ostracismo perjurativo correspondia, em porção igual, a adulação incontestável. Os que lhe percebiam o trauma, uns, suportavam-no; outros, afastavam-se para não lhe aturarem os caprichos; outros, ainda, aproveitavam-se das suas intempestivas munificências, fingindo que o estimavam.

Fonseca continuava sentado, envolto pela mornidão da tarde. Não era só os Pais que ele queria vivos, era, também, o Milhares, para o trazer ali, mostrar-lhe o que, pelos vistos, ele nunca soube: que a vida é curta e tudo se paga aqui.

Quando o Milhares morreu, sem descendentes, falha que, aliás, nunca se amofinou por suprir, a D. Lucinda, viúva consolável (já que em casada fora sempre inconsolável), ainda aguentou uns bons anos o Pinheiro Manso, ríspida com os trabalhadores e a contabilidade caseira. Podia, finalmente, berrar sozinha para as paredes e para os gatos que lhe povoavam a solidão: «A miséria desta casa que nem benefício tem para, ao menos, ajudar a pagar o sulfato!» Não faltava cabimento a D. Lucinda, cara de coruja e peitos marsupiais caídos em desuso. Quando ficaram com a quinta do Fonseca, como paga do empréstimo, bem azucrinara os ouvidos do marido: «Mais do que o gozares a vida, ganancias-te na ambição! Só tens dinheiro! O resto falta-te tudo! Vais com ele para a sepultura!» Milhares aparava a agressividade, sem qualquer resposta ou esboço, com um silêncio de mocho desconfiado da sua fertilidade.

Dinheiro não levou Milhares quando morreu, porque a fortuna dele eram terras e para a terra foi ele. No cofre estava um monte de notas que, bem feitos os cálculos, daria para um granjeio. A viúva tratou de vender o que entendeu supérfluo, incluindo os carros no rol, “para que preciso eu deles se nem sei guiar?!“, fez constar que a Quinta estava à venda e deu ordens ao João, velho caseiro de há mais de vinte e cinco anos, para que, ao primeiro interessado, lhe telefonasse. Mudou-se para a Quinta das Luzes, nunca as acendendo; ao menos aqui tinha direito a alguma litragem, esse milagre histórico salvador de inglórios lavradores.

D. Lucinda chegara à idade em que não se contam os anos porque eles deslizam tão depressa que já não se notam ou não se desejam lembrar. Visitava-a, agora, muito, um sobrinho do Porto, filho que a irmã Florinda parira num engano de menopausa de que já se arrependera vezes sem conto. Estabelecera-se, há muito, com o Esdrúbal, seu marido, numa mercearia próspera na zona da Lapa do velho burgo tripeiro. António – assim se chamava o engano – não fora bafejado nem pela beleza nem pelo resto. Era mesmo o espelho de um trágico erro uterino. De uma esperteza de chico ordinário, falava com perdigotos e ria-se desbragadamente. Mal aprendera a ler e a escrever, à custa de palmatoadas e porrada de criar bicho, mas empedava-se que sabia o suficiente para contar as notas. “Cá para mim, estás à espera que eu morra “, falava consigo a D.Lucinda quando o via chegar do Porto. Recebia-o bem, fazia de conta que aceitava  aquele «venho fazer companhia à tia», perguntava pelos pais e dava-lhe o que tinha à mão, não consumindo a Isabel, criada que envelhecera com ela e que a acompanharia até à morte, deixando-lhe, como prova de gratidão, umas leiras nos arrabaldes de Lamaçal.

Quando o caseiro telefonou a dar recado de que o Senhor Coronel do lugar do Alto queria falar com ela sobre a Quinta, mandou-o transmitir-lhe que, como andava muita ocupada com a cava, ela o contactaria para combinar uma data. Bem lhe custou a patranha, mas, tinha que usá-la não fosse ele pensar – o que não deixava de ser verdade - que a apanhava com sofreguidão de venda.

O Coronel Silveira, mais conhecido pelo nome do eremitério onde residia, sito num desvio da estrada de Goudalim, era um velho militar reformado que passava por ali grandes temporadas, principalmente quando o tempo começava a aquecer. Não se notava muito, de parcas falas, praticando uma vida anódina e distante. Só o carro, estacionado junto à porta da casa, anunciava a estada. Vivia em Lisboa, onde servira em altos cargos, constando que passara pela Índia. Tinha dois filhos, ambos economistas, que pouco ligavam à casa do Alto, a não ser por Agosto sempre embasbacados diante das urzes.

Um dia, passava Silveira pela estrada de Lamaçal, viu aquele casarão desconsolado e, parando o carro, inquiriu a um homem, sentado no muro, a quem pertencia. Quem lhe falou foi, precisamente, o caseiro que lhe papagueou as instruções de D. Lucinda. «Gostaria muito de falar com ela, podia-me interessar.», abreviou o velho Oficial.

Quando se encontraram por entre salamaleques cerimoniais e uma vistoria prolongada à casa e pertenças rústicas, o preço foi acordado e, ao outro dia, formalizada a escritura. O Coronel do Alto, espantado com a rapidez do negócio – ele que, como militar, estava habituado a dilações solertes -, fez questão, com a aquiescência de D. Lucinda, de convencer o João a manter-se à frente da Quinta. Pouco depois, dando-lhe umas breves instruções, que o regresso seria rápido, rumou à Sede do Império para combinar com os filhos a divisão das canseiras.

O Dr. Fonseca, antes que anoitecesse, resolveu dar uma volta pelos terrenos do Pinheiro Manso. Passou pela mina onde caçara lesmas com o irmão, deu ao caminho que separava a Vinha de Cima da Vinha de Baixo, observou os escombros do que fora, no seu tempo, a casa do Feitor e chegou, depois de uma ligeira subida, ao velho soito que dava castanhas tão boas que até as assadeiras de domingo as compravam ao Pai. Se as vinhas tinham o aspecto de gastas antes do tempo, aquele só o era porque, acima das ervas, das silvas e do entulho, se erguiam as copas dos castanheiros. Regressou à casa enublado de recordações que vinham duma distância perdida. Ouvia a voz do Pai, em cima do muro, chapéu de palha na cabeça, a controlar o pessoal, enquanto ele, de sachola nas mãos, fazia que redrava e os filhos do feitor corriam atrás das galinhas, debaixo dos ralhos da Mãe que tinha uns olhos tão verdes que até pareciam falsos. Os sinais eram os mesmos: aquele cheiro a terra como um perfume de nascença, o murmúrio das folhas das cepas convergente com a brisa dos castanheiros e dos sabugueiros que orlavam as estremas. Afastara-se dos Tribunais e das safadezas dos homens à custa dos quais, afinal, amontoara a fortuna que lhe permitia a permuta, longe dos julgamentos sociais, do fica mal e do parece bem. Ali poderia ser ele, adquirir a dimensão real de todo o ser humano: “pequenino, um átomo na grandeza do Universo, do que conhecemos, não do que existe para além da nossa ignorância, um pedaço de carne em que se aceitou a alma como uma exclusividade sem dimensão”, divagou com os olhos na copa do pinheiro manso. Acendeu um cigarro, queria ver morrer o sol na serra em frente, do outro lado da estrada. Lembrou-se do modo como voltara ali.

Num fim de manhã, na rua dos Camilos da Capital Vinhateira, chegava ele esfrangalhado de uma reunião com o Engenheiro Ramiro em que desfizeram a parceria secreta, entrando no Nacional para tomar um café, deu, de caras, com o Manuel Francisco que vinha à manifestação contra a posse administrativa da Casa do Douro por um alado grupo militar nascido das ramificações revolucionárias do 25 de Abril. No meio da conversa, aquele contou-lhe que a Quinta do Pinheiro Manso estava à venda. O Coronel, pouco após a Revolução, morrera, de repente, em Lisboa. Dizia-se que o desgosto fora tanto que o coração não aguentara. O Dr. Fonseca sobressaltou-se. Um júbilo repentino inundou-lhe o peito, só em pensar “e se eu a comprasse?!“. A altura era má. A sua carteira de títulos, que chegou a impressionar administrações bancárias e seguradoras, ficara, a seguir às nacionalizações, num zero. Dinheiro tinha algum, mas, as responsabilidades, talvez – talvez, porque nunca fizera grandes contabilidades –, o ultrapassassem. De qualquer modo, encarregou o Manuel Francisco de saber quanto pediam os herdeiros por ela. O que ganhara investira na Bolsa. Em todos os aumentos de capital das Empresas subscrevia acções, apostando alto para não correr o risco de os rateios o excluírem. Quando os seus meios não chegavam, a Banca financiava-o de bom agrado. O 16 de Março fora um aviso, embora já tardio, mas a jugulação do golpe convenceu-o da infalibilidade do regime.

Vivia-se um tempo de ajustes, uma daquelas ocasiões em que aos homens duas escolhas se colocam: serem verticais ou camaleões. Fonseca sentia-se acossado e, simultaneamente, moído pela tentação de se ajustar aos novos tempos. Sabia que, se se embrenhasse no jogo das contradições, poderia inverter os efeitos e disso retirar vantagens, aproveitando a reputação e as conivências. A nacionalização da Banca, com o arrasto das empresas agregadas, deixara-o num desespero. A Revolução fora a sua guilhotina. De um momento para o outro, como num assalto nocturno, ficara sem causa de vida; a parceria secreta desfizera-se sobre a coacção dos acontecimentos e dos sortilégios que as sociedades, esgotados os fins, desfiguram. Para o Dr Fonseca acabara um ciclo, vivia a época errada e a disforia amotinara-lhe a consciência. Nunca mais foi o mesmo. Enfiou-se em casa, alimentava-se mal, fumava, o que só complicava a sua arritmia, e esgotava-se a pensar como se deixara chegar ali. Em certas alturas o seu pensar convertia-se num tropel de incoerências que amedrontava. A Marquinhas bem lhe acicatava o apetite, cozinhando-lhe o que ela sabia ser do seu agrado, mas só esgotava pacotes de leite, desconfiado do que lhe punha na mesa. Quem o visitava, alguns cumprindo gratidões e estimulando-lhe euforias antigas, outros pedindo uma opinião e propondo-lhe negócios de recurso, encontravam-no de olhos parados e calado como se um susto lhe tivesse travado a língua.

Quando, do lado de lá do fio, o Manuel Francisco lhe comunicou o preço da venda da Quinta disse logo que sim. Era, pressentiu-o, o último desejo da sua vida: retornar ao chão onde nascera, reparar a expiação paterna e voltar costas à devastação dos seus sonhos.

Quando o sol se foi o Dr. Fonseca deu uma derradeira olhadela ao soito e desceu pela Vinha de Baixo. Meteu-se no Mercedes, cor de café com leite, a caminho do Alto Corgo, a noite já definida. Descendo pela estrada de curvas, recapitulava a decisão que interiormente se consolidara. Não voltaria a dormir naquela casa. Recusava misturar a recordação da sua infância com os fantasmas de gerações estranhas, os resíduos de memórias de vidas que não admirava, cheirar aquelas sobras de almas extraviadas.

Mandou desbravar o soito, ampliando-lhe a vista e o espaço, e transformou-o no lugar do seu arbítrio. Chamou-lhe O Silêncio. O Manuel Francisco arranjou-lhe pedreiro, trolha, mestre de obras, ou lá o que fosse, para lhe levantar, naquele ermo, um arremedo de casa. Não regateou dinheiro para lhe apressarem as licenças e as obras que não queria requintadas, apenas práticas, com o mínimo indispensável. Passados uns escassos dois meses tinha no Silêncio uma cozinha, um quarto com banheiro, uma sala com fogão e uma estante enorme, a toda a largura da parede, com os seus livros. A deslado, amanhara um canil e uma cavalariça. A água vinha do poço inesgotável, à beira da antiga casa do feitor; a electricidade, enquanto não lhe fizeram a ligação, roubou-a a um poste. Ainda pensou trazer a Marquinhas, mas arranjou outra cozinheira, a Zulmira, rogada ao Manuel Francisco, uma viúva antiga que criava os netos de um casamento estragado, a quem entregou um duplicado das chaves. Àquele obrigou-o, num contrato verbal de arrendamento, a granjear-lhe os bardos mediante uma renda simbólica de cem contos anuais que seriam pagos no início de cada ano civil.

As rolas e as pegas traziam-lhe as cantigas do céu. Ao fundo, um precipício de fragas e tojo acabava numa ribeira sem cartografia. Punha-se ali a escutar o canto das perdizes e chamava-as com as mãos em concha. Encontrara o lugar para se retirar dos barulhos do mundo. Homem de crenças, mas, sem grandes metafísicas, importava-lhe o momento que “o futuro é o que nos sobrevive“. Deixou crescer a barba e o cabelo que já nem se sabia onde acabava aquela e começava este. Só os olhos de lince brilhavam naquele negrão. Pedia sempre, a quem o visitava, que lhe arranjasse um cão para, dizia ele, sentir a companhia dos guardadores das almas, o que fez com que, às tantas, gastasse mais dinheiro com eles do que consigo. A uma caravana de ciganos, que avistou no fundo da estrada, ajustou um alazão de traços arábios e trote distinto.

Começaram, então, a vê-lo, com um chapéu de abas largas, colete no Verão e capote no Inverno, pelos atalhos de São Gregório ou pela calçada de Santo António de Chãos, etéreo mas sempre respeitoso a quem o saudava. Todos os dias, horas a fio, como se cumprisse um fado, o Dr. Fonseca desembocava nos povoados depois de se meter nos atalhos mais esconsos da serra. Quando parava na taberna de Lamaçal, perdia-se, com quem estivesse, num copo puxado por um naco de presunto com broa. Pagava as rodadas, cumprimentava a afastada parentela, contavam-se anedotas e sueltos de escárnio político no meio de gargalhadas que estilhaçavam a quietude.

Envolvia-o a auréola que a província costuma recriar, uma voz do povo contada e acrescentada numa necessidade de inventar mitos. Quando ele não estava no Silêncio a ausência aumentava-lhe a alegoria, quando regressava, reavivam-na num pretexto de falatório que ajudava a alterar a rotina.

Admiravam-se de se apresentar numa modéstia de quase mendigo: as botas sempre as mesmas, embora, se percebesse, de boa sola; o casacão de couro castanho – via-se que custara bom preço -, coçado e dobra gordurosa; as calças de cotim rasca, para além do uso, tinham rasgões que lhe escancaravam alguma pelugem; o camisolão, de gola gasta pendente num vinco de surro. A aparência geral era decrépita, dizendo alguns que vestia assim num descuido estudado. Quando lhe perguntavam, numa confiança popular, se precisava de dinheiro para comprar roupa, desatava em risadas sonoras que coravam o perguntante, a mais que os olhos lhe saltavam das órbitas e se enchiam de lágrimas. Quem se costumava meter com ele era o Zé do Mato, assim chamado porque, depois de dois anos nas bolanhas da Guiné, ficara meio maluco e, onde entrasse ou a quem fosse apresentado, dizia sempre: «Apresenta-se o Zé do Mato!», acompanhado de continências apalermadas. Numa manhã em que o Dr. Fonseca passou, num galope de vento, sem lhe dizer nada e a gritar ao cavalo, sentenciou para quem o quis ouvir: «O Dr. está apanhado, mas não é Zé do Mato!»

Se surgia distante e frio, repelindo tentativas de conversa, as pessoas respeitavam-lhe a cala, fingindo que não entendiam. Assim que virava costas, sem cumprimentar ninguém, punham-se a olhar uns para os outros e encolhiam os ombros. Decorriam temporadas sem ir ao casario, refugiado no morro do Silêncio, percorrendo os caminhos com os cães atrás dele, latindo à desolação dos montes; chegava a metê-los numa carrinha azul - que arrematara num cemitério de sucata - e ir, com eles, tomar café à Vila. Era um reboliço com a canzoada cá fora a desafiar os internados que, para não ficarem atrás, ladravam em dobro e arranhavam os vidros, enraivecidos pela clausura. Ele, então, perante o espanto que o espectáculo provocava nos circunstantes, dava grandes gargalhadas que, ecoando na pacovice do Largo, a uns, soavam sinceras e, a outros, despropositadas. Mas havia verdade nelas, porque o riso era-lhe uma conformidade da natureza. Vinha à porta a bata branca do empregado da Farmácia com o x-acto, feito bisturi de comparticipações, no bolso; a do enfermeiro do Posto de Saúde assomava à janela com a agulha da injecção suspensa nas mãos; os reformados do Caminho de Ferro, surpresos, erguiam-se dos bancos do mini-jardim como se uma locomotiva descarrilasse por ali; os funcionários da Caixa Agrícola deixavam de contar o dinheiro dos outros e suspendiam o preenchimento das livranças; os piquetes da Guarda compunham-se como se para uma contingência; os pagadores de décimas aceleravam o dobrar dos recibos; e a criançada pedia-lhe rebuçados que, às mãos cheias, ele tirava dos bolsos. Depois, reenfiava-se na carrinha, o ladrido a amainar, os animais a lamberem-lhe os cabelos (ou a barba?), o pescoço, a gola do casacão, as mãos – todo. Arrancava de sorriso aberto, dizendo-lhes meiguices. Os que o viam, alguns riam de escárnio, mas, muitos mais, comoviam-se.

Gostava de atar uma corda à cabeçada do Cigano - assim se chamava o equídeo – e, de varinha na mão, estar com ele à volta, estimulando-lhe o trote, alegrando-o quando pisava como ele queria, enquanto a matilha, inquieta no canil – para não perturbar o Cigano -, lhe implorava a libertação. O cavalo resfolegava, atirava a cabeça como se quisesse soltar-se, até parar exausto. Fonseca dava-lhe um cubo de açúcar, agarrava-se a ele, festejava-lhe o pescoço e lavava-o com tal carinho que mais parecia um pai a dar banho a um filho; a seguir, enchia-lhe a manjedoura de palha e um balde com água.

Nas noites de Verão, a aragem dos pinheiros a mitigar a brasa do dia, Fonseca escancarava a porta aos cães, sentava-se numa cadeira de verga, assobiava-lhes; eles corriam a desafiar os vultos da escuridão e regressavam, língua de fora, para lhe saltarem para o peito. Com as visitas, as horas perdiam-se em desabafos, recordações de negócios em que ninguém acreditava, traições inesperadas, oportunidades perdidas. Era a sua fase de paragem, em que recuperava o entendimento da realidade, mas que, contraditoriamente, o deixava indiferente perante qualquer possibilidade de regresso. Tinha uma calma estranha para quem lhe conhecia a exuberância, um tédio de tudo como se nada mais lhe interessasse. O Dr. Fernando, seu Médico e amigo de sempre, que ia a Goudalim, a casa dos sogros, nos passeios de domingo, aproveitava, algumas vezes, para lhe dar um abraço enquanto a Mulher desfiava conversas com os pais.
- Fonseca, quando deixas este cu do mundo?!...
- Olha que não cheira mal...
- Há quanto tempo não vês esse coração e esse colesterol? Não te desleixes... O teu irmão está bom?
- Ora... Ora... Diz que jurou nunca mais pôr os pés na terra de que fomos corridos. Estou farto de lhe mandar recados. Aquele tipo não regula bem...

Ficavam esquecidos, a rememorar os tempos de Mafra, de Estremoz e da Fazenda Tentativa, em Angola, a descolonização servida num prato de hotel algarvio, o rumo do País, o virar de casacas de alguns conhecidos. Trincavam uns biscoitos acompanhados de vinho fino, diante das habilidades do Cigano, e separavam-se com promessas de reencontro.

Vivia num tempo descontextualizado e de referências esbatidas. As malhas sociais, aqueles fios que determinam as regras, cortava-as sem esforço porque, bem vistas as coisas, não existiam nos distúrbios da sua consciência; estavam fora da compreensão, aquém ou além da decepção que lhe destruíra os projectos.

Quando os compromissos bancários lhe chegaram pelo correio ou pelos recados dos seus antigos cúmplices, vendeu, sem um arrependimento, a Quinta do Alto Corgo a preço banalizado pela confusão política vivida. Calava de vez os que ontem lhe facilitavam tudo e hoje se preocupavam em disfarçar as cicatrizes do compadrio. Restava-lhe viver a sua pré-história, não odiava, só pedia que não lhe aumentassem o nojo, um asco que lhe subia à garganta e o inundava de pruridos que lhe queimavam as entranhas. Tivera uma vida cheia, tocara o zinco e a platina, pisara a lama e o veludo, experimentara a mesquinhez e a distinção, descera ao opróbrio e subira ao esplendor, conhecera falsos e leais, perdera e ganhara, detestara e amara, afastara e cativara. Podia ter sido sempre grande, adulado e levado em ombros, mas nascera para o incompatível. Há destinos assim: ficam na história como exemplos mal aproveitados. A morte era-lhe uma prescrição da vida; que viesse sem a sentir. Apavorava-o o sofrimento que mastiga a sua chegada. Pragmático até à medula, encolhia os ombros às subtilezas transcendentais e apartava as dúvidas místicas.

No Inverno, passava o tempo no Silêncio, entorpecido pela humidade e pelo frio que castigava o outeiro. Lia muito, com o velho Nordmende sintonizado, baixinho, na estação de música clássica e a ITT que trouxera de Lisboa sempre desligada: a televisão trazia-lhe os ecos de que fugira. Devorava biografias onde procurava retratos de si mesmo; a amargura de outras vidas minorava a da sua. Era um idólatra do judeu austríaco Stefan Zweig de quem já repetira as leituras de Maria Antonieta ou Maria Stuart, Confusão dos Sentimentos ou o Coração Inquieto. Falava sempre dele, e da sua Mulher Frederica, com uma comiseração glorificadora: «Eles não se suicidaram! Naquele ano de quarenta e dois, em Petrópolis, mandaram à merda o desencanto do mundo e do destino!», exclamava para os mais chegados e literatos. Dormia muito, acalentado pelo crepitar das achas na lareira e pela cadência da chuva. Deprimido, esquecia-se até dos animais, e só quando o sol despertava, em clareiras permanentes, se lembrava deles.

Mal a Primavera despontava no rejuvenescer das árvores e no chilreio da passarada, com uns afagos a lembrar que o Verão estava para chegar, recuperava a energia - uma sensação de bem- estar que o convencia de ser dono da terra - e readquiria os hábitos. Um dia decidiu converter o terreno, em volta do Silêncio, num campo de milho. O Manuel Francisco, que o ia cumprimentar quase todas as manhãs, bem o desaconselhou: «Olhe que isto não é terra para milho, doutor!». Ele riu e teimou. Depois de o Casimiro andar lá um dia inteiro, com o tractor, a revolver a terra, espalhou, sozinho, como um semeador bíblico, os grãos numa satisfação que assombrava os passantes. Esgotou tanques de água que espalhava com grossos tubos de plástico. Até de noite calava as cigarras com a rega. Quando acordava, inebriava-se com os rebentos, não se apercebendo – ou não queria aperceber-se - que eram as ervas que lhe fomentavam a ilusão. Nunca de lá colheu uma espiga, mas o importante era a miragem que o alimentava.

De modo contrário ao que viveu, serenamente morreu. Supõe-se que assim fosse porque, naquela manhã de uma quarta-feira de fim de Outubro do ano da graça de 1980, Zulmira, quando subiu ao alto para as lides costumeiras, deparou com um sossego na casa que não era habitual. Os cães ladraram, nervosos, quando a viram, bateu à porta e ninguém lhe respondeu. Pensando em todas as ausências menos na da vida, foi à volta, meteu a chave na porta da cozinha e deu com ele estendido na cadeira-sofá da saleta com um livro aberto no peito sem um arfar, imóvel e cerado. Esticou um grito, deitou as mãos à cabeça e chamou-o naquele derradeiro instinto de que não seja verdade o que se vê. Correu, com o coração aos pulos, para o talude sobranceiro à Vinha de Cima, onde o Manuel Francisco e meia dúzia de homens cortavam os últimos cachos, e pôs-se a gritar por socorro. «Que se passa mulher?! O que é que foi?!», bradou, intrigado. «O Senhor Doutor morreu! O Senhor Doutor morreu! Ai valha-nos Deus Nosso Senhor! Coitadinho dele!!!» Entraram na sala, o Francisco retirou-lhe o livro (era o Coração Aflito), levaram-no para a cama e completaram-lhe o fecho dos olhos. Correu a casa, “a mania deste homem nunca ter querido telefone!”, chamou o Dr. Fernando e avisou o Armando.

Transpunha o esquife a porta do cemitério de Lamaçal, aproximou-se um latir de cães. Impedidos de entrar no campo santo, ergueram os focinhos e desataram a uivar num queixume animalesco, os sinos a dobrarem no campanário. Os que não choravam desfizeram-se em pranto, e aqueles, como que estimulados, arranhavam o portão, esganiçando-se quais lobos endoidecidos pela fome.

Armando tartamudeou ao Manuel Francisco que continuasse a honrar o arrendamento, descontando, no preço deste, as despesas com o Cigano e os cães, e que lhe comunicasse para Lisboa se soubesse de alguém interessado na Quinta. Despediu-se de toda a gente presente e meteu-se no carro sem lá pôr os pés ou, sequer, a olhar.

A Quinta do Pinheiro Manso lá continua. Ninguém a disputa. Só o abandono lhe marca a memória. O Manuel Francisco é que já pensou em ir ao Banco empenhar-se e, depois, telefonar ao Armando. A Mulher, porém, diz-lhe sempre que as almas não se compram.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da net livre e composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.