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sábado, 12 de fevereiro de 2011

OS FRONTEIRÓMETROS - 3




Os risos encolhidos explodiram como champanhe, mas logo o Boaventura cortou:

- Ó pá vocês não se riam nem saiam da sala, porra! Se os tipos vêem a malta a rir-se fode-se tudo!

Pouco depois, tal uma carga de cavalaria, ouviu-se um tropel de botas a descer.

- Lá vêm as cavalgaduras! – disse o Bandeira.
- Formem em fila! - mandou o Boaventura. – Para começo – olhando o relógio – não está mal! Atendendo a isso, não há flexões para ninguém. Vamos, então, dar início à vossa prova de aptidão. O nosso Aspirante Ornelas é o encarregado de orientar o primeiro teste.

Este, armado da cara mais séria que pôde arranjar, plantou-se diante deles:

- Atenção! Firme! Sé...ópe! Dá licença, meu Tenente? – fazendo tremer o braço numa continência espectacular.
- Pode mandar! No fim da aula apresentem-se neste mesmo local – ordenou o Boaventura.
- Esquerda... vooolver! Passo de corrida, em frente... marche!

Passados uns minutos, o grupo abandonou a sala, atravessou a Parada e foi assistir à sessão, disfarçado no morro sobranceiro ao campo de obstáculos, atrás de um renque arbustivo, num esforço incrível para recolher os risos com os lábios e as mãos. O Ornelas parecia que estava a dar instrução ao seu pelotão: mandou-os correr em círculo, intervalando com flexões em frente, abdominais e saltos de canguru, rastejar sob o arame farpado, saltar a vala, a paliçada e o galho, subir às cordas, ficando de fora o pórtico. Tudo num silêncio só entrecortado pelo farfalhar dos corpos e a voz autoritária daquele. Uns soldados que passavam, estranhos pelo que ouviam àquela hora, aproximavam-se curiosos, mas, sobressaltados, viram o Bandeira a afastá-los. Suados, cheios de terra e a bufar, troaram no átrio. Alguns tinham o ar de quem não cria no que lhes estava a acontecer.

- Então, nossos fronteiros, gostaram da instrução que o nosso Aspirante vos deu? Sim ou não?
- Sim, meu Tenente...
- Mais alto! Sim ou não?
- Siiim, meu Tenente!
- Porra!, parece que estão a morrer... Um caçador especial grita sempre alto, com genica e alegria! GOSTARAM OU NÃO?!
- SIIIIMMM, MEU TENENTE!!!
- Óptimo! Muito bem! Gosto de vos ver felizes... Nosso Aspirante Alves dê um passo em frente. Vou-lhe dar – entregando-a - uma ordem de patrulha que todos devem cumprir sem uma falha. Tem anexado um croqui para não haver dúvidas acerca do vosso objectivo. Nem precisam de bússola... Quero avisá-los de que até à Casa Amarela, onde se acoita o inimigo, temos informações de que há bandos terroristas dispersos que vos podem surpreender. Agora vão à Companhia da Formação, onde, na Caserna 8, o Cabo quarteleiro já está avisado para vos fornecer uma FBP a cada um. Bem vão precisar delas... Podem ir e, nunca antes nem nunca depois da meia noite, devem-se apresentar com a missão cumprida. Na Porta de Armas já estão avisados da vossa missão, o nosso Aspirante Alves só tem que comunicar ao nosso Sargento da Guarda. Sigam...

Depois daqueles transporem os portões, uns deixaram-se ficar, entretidos com a televisão, a leitura, o bilhar ou a sueca, alguns foram ao Cinema e o João, o Altino e o Ãngelo, passada uma boa hora, meteram-se no carro para irem ver o movimento dos praxados, passando-os quando eles se encontravam a conversar, sentados nuns pinocos longe, ainda, da Casa Amarela...

Quando a patrulha regressou, à hora indicada, mais minuto menos minuto, já todos estavam a postos, ansiosos pelo bródio que se seguiria.

- Então nosso Aspirante, como decorreu a operação? – interrogou o Boaventura.
- Meu Tenente, mal saímos do Quartel, logo a seguir à curva do muro, como ouvimos uns ruídos esquisitos, resolvemos, para nos precavermos, montar a segurança - explicou o Alves, todo gestos.
- E depois? O que viram?
- Verificámos, afinal, que eram pessoas pacíficas, moradores na zona...
- E como é que souberam? Não me diga que são bruxos?!...
- Falavam de futebol e...
- Mas que perigo, nosso Aspirante! Mas que perigo! Falar de futebol e logo à noite! Não pensou que isso podia ser uma armadilha? Então não sabe que o futebol é o ópio do povo? Vocês podiam ter sido anestesiados como criancinhas! Mas diga, diga...
- Depois continuamos a marcha - o Alves molhava os lábios para contrariar a secura da boca -, sempre guiados pelo croqui, até que, num morro, voltamos a montar a segurança para observação do terreno que ficava em baixo. Estava tudo calmo, era já numa zona desabitada...
- E bateram esse terreno, claro...
- Não vimos ninguém...
- Ai queriam que o inimigo estivesse à vossa vista, a dizer estamos aqui, fodam-nos! Mas que merda de caçadores são vocês?! Tinham que ir lá, procurá-los como furões à caça de coelhos! Mas para isso é preciso ter os colhões no sítio!...
- Mas ó meu Tenente...
- Mas ó meu Tenente o caralho!... Continue, continue...
- Deixámos - nos estar ainda um bocado a ver se havia algum movimento suspeito...
- As folhas a mexer...
- Algum vulto, algum...
- Que viesse ao vosso encontro?!... Meu Deus... Avance, nosso Aspirante, avance...
- Não vimos nada e ...
- Tiveram sorte não levarem umas fogachadas no cu...
- Tinha sempre três homens a caminhar de costas, de frente para o caminho...
- Esses, então, levavam-nas nos tomates...
- Meu Tenente, olhe que a gente...
- Olhe uma merda!... - Continue lá com a descrição...
- Quando chegámos ao cruzamento...
- Montaram a segurança...

Começava a ser difícil conter os risos. Eles ameaçavam estralejar como trovoada em noite abafada de Verão.

- O sítio era perigoso e, antes de o atravessarmos – prosseguiu o Alves, mais confiante e a entrar bem no papel -, tínhamos que ver bem como o fazer. Como mandam as regras, montámos, de facto, a segurança. Dividi a patrulha em dois grupos, um para a esquerda, outro para o direita, e atravessámos, depois, em pontos mais afastados do cruzamento. Prosseguimos a marcha e, como o pessoal estava já um pouco cansado, resolvemos descansar um pouco e montámos a segurança...
- Parou nosso Aspirante! Chega! Porra!, ainda não chegaram a meio do objectivo e quantas vezes já montaram a segurança? Andam cem metros e montam a segurança, andam mais duzentos e montam a segurança.... Foda-se! Tem que me apresentar essa PUTA da SEGURANÇA que eu, também, a quero montar!... Acabaram de chegar e já se fartaram de montar!... Vocês devem ter um tesão do caralho!...Se as catraias sabem disso não vos largam a Porta de Armas!... O que vocês precisavam era – virando-se para o aparelho de televisão – fazer a patrulha no lugar onde aqueles galgos estão a correr atrás da lebre... Sabe como se chama aquilo?...
- É uma corrida de galgos...
- Que novidade! Queria que fosse de coelhos?!... Como se chama o recinto onde eles estão a correr?... - Meu Tenente, aquilo – olhando fixamente para o televisor – é um pavilhão...
- E como se chama?...
- ...
- Diga-me uma coisa, se fossem cavalos a correr como é que lhe chamava?...
- Hipódromo...
- Então, e galgos?!...
- Não sei meu Tenente...
- Galgómetro, nosso Aspirante!... Galgómetro!...

As gargalhadas, já impossíveis de reprimir, soltaram-se como uma prateleira de cristal estilhaçada, alguns agarrando-se às barrigas, as lágrimas deslizando nas faces por um sufoco há muito controlado. Trocaram-se abraços, esvaziou-se uma garrafa de Logan, discutiram-se as peripécias da brincadeira e conheceram-se origens por entre risos intermináveis.

Ia adiantada a hora quando o João, erguendo um copo, gritou: «Malta! A partir de agora somos os fronteirómetros de Chaves!»
Final.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

OS FRONTEIRÓMETROS - 2


No primeiro dia em que assumiu o comando do pelotão, João, dentro da farda de trabalho verde azeitona, sentiu o sangue a bulir e uma tremura nas pernas. Olhou aqueles rostos que lhe lembraram os seus antigos companheiros da Primária, jurou que nunca os enganaria, mas, para sua defesa, não seria fraco nem os deixaria fazer o que lhes apetecesse; sabia já que o paternalismo humilha mais do que a frontalidade. As ordens de comando e as continências encheram-no de vaidade, um orgulho contido. Recordou o seu Aspirante de Mafra, o Matos, meio careca, peito inchado, andar de Academia Militar, que parecia ter um prazer sádico sempre que, por tudo e por nada, castigava um Cadete com vinte flexões. Só lhe copiaria o que aceitara.

Calhou-lhe o segundo pelotão da terceira Companhia. Os restantes ficavam para o Ãngelo, o Ornelas, o Fonte e o Baptista. Comandava-os o Capitão Pedrosa, um minhoto bonacheiro, que se relacionava com os seus milicianos sabendo a diferença entre o voluntário e o obrigado, mas, sem esquecer regulamentos. Quando, numa reunião de gabinete, ele lhe disse «olhe que os seus homens têm o cabelo comprido além das
normas», não esteve com meias medidas. Na manhã seguinte convenceu todos a irem à máquina zero. Tiraram depois uma fotografia e mandou revelar as suficientes para dar uma a cada um. A partir daí o pelotão do João passou a chamar-se os carecas.

A Instrução, entre a teoria e a prática, era-lhe fácil e agradável. O que o haviam forçado a fazer no velho Convento-Quartel, de uma dureza que achara de um exagero dispensável, dava-lhe, agora, segurança e à vontade. Levado talvez por essa experiência – ou desculpando-se intimamente com ela - e reconhecendo nisso alguma perversão, em certos momentos forçava os limites como se experimentasse a aceitação das próprias e alheias capacidades; era a fruição da vicissitude contrária. Entre treinos de ordem unida, à disputa a ver quem marchava melhor; sessões de ginástica no campo de obstáculos com rastejares, saltos e subidas a tudo que existia e cross semanal até à Curalha; sessões de tiro e desmontares e montares de culatras e limpezas de armas; encenações de assaltos, emboscadas, cercos e nomadizações pelas serras circundantes, de dia, e variadas ocasiões de noite, a vida consumia-se na ilusão de que tudo se aprendia para uso nos matos africanos.

Ao toque de ordem, corpos lavados e civis, o grupo transpunha os portões e desandava para a cidade, o carro a abarrotar, cabendo sempre mais um, gasolina a meias. Parecia o recreio ambulante de um bando de colegiais. Ora no Aurora, ora no Sport, comia-se um bolo e bebia-se um pingo, a enganar as horas para o jantar, metiam-se com as raparigas, percorriam as ruas como pássaros fugidos da gaiola, ou iam ao Açude espreitar a fronteira, uma tosca cancela no meio da estrada. Depois do jantar, se o serão televisivo espanhol não os pregasse aos sofás, voltavam para, a pretexto de um café, cimentarem os conhecimentos femininos que as suas fardas despertavam.

Uma noite de muito calor, foram ao Alto da Forca, onde, em séculos passados, dizia a lenda e a história, se condenavam os insubmissos da ocupação Romana. Constara-lhes que lá haveria uma quermesse a que se juntou a curiosidade do lugar, ou talvez fosse apenas uma daquelas idéias que surgem por não haver outras... Puxaram a capota para trás, a brisa a acariciá-los, excitados pela originalidade. Percorreram as barracas, apostaram sem resultado nas panelas, e ficaram, depois, encostados ao carro, a música dos alto-falantes a cobrir-lhes as palavras, as luzes da cidade cintilando como reflexos das estrelas.

Quando se dispunham a descer, o Bandeira pediu para dar «uma voltinha até lá abaixo». O Ângelo e o Antão foram para o assento traseiro, enquanto ele, de fora, a acabar um cigarro, lhe indicava como funcionava a chave de ignição, as mudanças, essas coisas. Uns segundos depois, num assombro de quem não acredita no que vê, o Opel Olimpia ganha velocidade inusitada para o terreno sulcado, o Bandeira, lívido, a gritar «João!, esta merda não trava!», ele a berrar-lhe que devia estar a carregar na embraiagem, correndo monte abaixo agarrado à porta, quase arrastado (o Antão e o Ângelo já tinham, entretanto, saltado para o chão, como se o fizessem de um Unimog em andamento), o carro sempre a deslizar, «puxa o travão de mão, caralho!», «onde
é?!», «à tua direita! Não vês? Olha aí! Puxa essa merda para cima!», o carro sem comando, ele enfiando a mão para virar o volante para a esquerda a fim de cortar o sentido do declive, esbaforido, em pânico, a pedir-lhe para parar com aquilo, até que, sem explicação, o automóvel, após uns solavancos, como se fosse abaixo, quedou-se mansamente. O Ângelo e o Antão, lá em cima, um pouco distantes, riam às gargalhadas, o Bandeira, com uma palidez que nem a noite escondia, saiu e sentou-se num montículo e o João lançava carvalhadas agarrado ao volante. Estiveram assim uns instantes, sem fala, anestesiados pelo estupor. João deu ao dimarré, deixou descair um pouco e experimentou o pedal do travão. «Com que então esta merda não trava? Rais te parta, nabo do caralho! Podíamo-nos ter fodido todos lá em baixo!» Fecharam a cobertura, tal quem esconde uma vergonha, e regressaram ao Batalhão.

Costumavam, antes de se deitarem, juntar a farda e as botas da Instrução nas cadeiras ao fundo das camas, para de manhã, sempre apressados, ser mais rápido enfiá-las. O quarto, com janelas para a Parada, era amplo, mas, com poucos cómodos de arrumação. Quiçá os tivesse, eles é que não sabiam aproveitá-lo... Aquilo era sempre uma desarrumação: botas para um lado, calças e quicos para outro, às vezes tudo espalhado pelo chão, já não se sabendo a quem pertenciam as coisas, só as escovas dos dentes tinham certeza de posses. Nessa noite, ainda a imagem do carro a ir por ali abaixo, mal refeitos do susto, a tarefa estava complicada. Ao grito do Bandeira «onde estão as putas das minhas botas? », o João, procurando, também, as suas debaixo das camas todas, respondeu «estão no Alto da Forca!». Resmungo para aqui, alvoroço para acolá, demorado o acerto de par daquelas e das roupas, João berrou «esta merda não é
um quarto, mas um abarracamento!». Desde aí, por galhofeira e unânime concordância, o quarto passou a ser o abarracamento 12.

Em alguns fins de tarde gastavam o tempo, antes do jantar, a jogar futebol. Faziam-no no mini-campo de terra batida, escavado entre taludes arborizados, desfazendo-se em suores por uma bola de catechu. Eram partidas renhidas com muita canelada pelo meio e off-sides inventados para anular golos inconvenientes. Numa dessas discussões de é falta não é falta, João pareceu ver, no alto do morro, o Luís, um Aspirante da Academia que conhecera em Mafra em circunstâncias de cumplicidade e que não esquecera. Fixou o vulto, foi-se aproximando, ele acenou-lhe, e, já sem dúvidas, correu a abraçá-lo. Não havia dúvidas, no Batalhão de Caçadores 10 só tinha alegrias: criava e recebia amigos!

A meio do seu curso apareceram pela Escola de Infantaria, para tirocinarem, alguns jovens Oficiais do Quadro, acabadinhos de sair de uma fornada da Academia Militar. Olhando-os, assemelhavam-se a visionários duma juventude que acreditava num desígnio patriótico, voluntários entusiastas de uma crença forjada nos princípios da honra e da disciplina. Militares por opção, não haviam perdido, contudo, a fraternal generosidade da condição humana. Uns, forçando mais o rigor militarista que o ensino académico lhes incutira, outros, mais libertos para a tolerância que o carácter lhes pedia. O Luís era um destes. Tinha um rosto comparte que não precisava de fingir dureza para se fazer aceitar. Talvez essa a razão para a empatia que os uniu. Não eram habituais as confianças entre os Cadetes e a Oficialidade, mesmo que recente. Obrigavam as distâncias não só as inflexíveis teorias regulamentares, mas, também, o exercício de uma rotina sistemática em que se incorporava, quase instintivamente, um sentimento reactivo de defesa à confraternização com as graduações inferiores; assim o impunha a lógica militar, indiscutível nos seus fundamentos, como se de outro modo não subsistisse. Já o conhecia de muitas noites, ao recolher, se lhe apresentar com a dispensa na mão. Um fim de tarde cruzaram-se no terreiro em frente do Convento, ele fardado, o Luís à civil. Fez-lhe continência e, para sua surpresa, ouve-o: «Isso é lá dentro. Amanhã já vamos ser iguais. De onde és?» Foram os dois para a Ericeira, desfiar as suas origens vizinhas, gostos e passados, combinando futuras viagens conjuntas de fim de semana. Desde então, sempre que o via, entre muros, num daqueles medonhos corredores ou à porta de armas quando em serviço, João fazia questão, perante quem os visse, em ostentar-lhe a sua obediência militarista, formulando-lhe continências escrupulosas, trocando olhares e sorrisos coniventes.

Era esse Luís que agora reencontrava sempre igual, sempre como iguais. Com ele o grupo ganhava um novo e inseparável aliado, um companheiro inseparável.

O Boaventura, que aguardava há bastante tempo a mobilização para uma colónia, era, de entre todos do grupo, o de maior antiguidade e, como Tenente do Quadro, comandava a Companhia da Formação. Uma noite chamou-os e disse-lhes:

- Amanhã chegam meia dúzia de Aspirantezecos novos e vamos praxá-los!
- Vai ser bonito... – deu-lhe para dizer o Antão.
- Ai, vai, vai... Pedem-se sugestões...
- Mandamo-los fazer umas flexões e uns abdominais a seguir ao jantar... - alvitrou o Fonte.
- É pouco.
- Espera! - jubilou o Bandeira -, damo-lhes uma sessão de aplicação militar.
- Não me importo de ser eu a dá-la – ofereceu-se o Ornelas.
- E se fosse um quarto de sentinela? – alvitrou o João. – Falávamos com o Silveira que vai estar amanhã de Oficial de Dia e avisávamos o Sargento da Guarda.

O Altino e o Ângelo só se riam, antevendo as cenas.

- Bom, já estou a ver que não vamos a lado nenhum! Vou decidir eu como comandante desta merda e acabou-se! Preparo-lhes uma ordem de patrulha nocturna à Casa Amarela, precedida de meia hora de obstáculos, e tu – virando-se para o Ornelas – é que vais, então, com os maçaricos.

No dia seguinte, depois de jantar, procedeu-se rotineiramente. Uns tomavam café ou liam os jornais, outros viam televisão ou tomavam conta da mesa do bilhar, outros, ainda, jogavam aos dados, aparentando naturalidade, incumbindo-se de enquadrar no ambiente os, algo inibidos, recém-chegados. O Ornelas tinha ido vestir a farda de feijão verde e o Boaventura avisar o Silveira e o Piquete da Guarda do que se preparara, assim como fardar-se a rigor.

- Atenção meus Senhores! – bradou ele, voz forte, cara dura, mal entrou na sala. – Os nossos Aspirantes acabados de chegar, fazem o favor de se juntarem neste lado – apontando o espaço entre o balcão do bar e a mesa de bilhar. – Há alguém cujo nome comece por A?
- Meu Tenente, eu chamo-me Alves, não sei se...
- Já vi que não... A partir de agora o nosso Aspirante Alves passa a ser o responsável por vocês. Quantos é que são? Um... dois... três... seis! Consigo sete! Muito bem! O que é que se passa, ou antes, o que é que se vai passar? – O Fonte e o Altino mais precoces na incapacidade de suster o riso saíram. – Os nossos Aspirantes – prosseguiu o Boaventura - acabam de ingressar numa Unidade de elite... É costume, sempre que aqui se apresentam Aspirantes Milicianos ou do Quadro, testá-los na sua resistência e sofrimento para ver até que ponto têm, ou não, capacidade para pertencerem e dignificarem a história deste Batalhão, cuja divisa é fronteiros de Chaves sempre excelentes e valorosos. Além de que isto não é para copos de leite ou azeiteiros! – Fez uma pausa a observá-los. - Assim, como o podem atestar os Aspirantes mais antigos que, também, já passaram pelo mesmo (era mentira...), a prova de resistência consta de duas partes: uma interna e outra externa. A primeira é uma sessão, breve mas exigente, de aplicação militar e a segunda, mais demorada, um patrulhamento a um dos alvos mais perigosos das inóspitas redondezas. Têm dez minutos para irem aos vossos quartos vestir as fardas de instrução e apresentarem-se lá fora no átrio. – Os sete puzeram-se a olhar, incrédulos, uns para os outros. – Está a contar o tempo! O último a chegar paga vinte flexões! – berrou, ríspido, já eles, em corrida, subiam as escadas.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

OS FRONTEIRÓMETROS - 1

Quando, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, lhe entregaram um impresso para indicar três Quartéis onde gostaria de ser colocado, depois de terminado o Curso de Oficiais Milicianos, o soldado cadete João coçou a cabeça e pediu para entregar aquele no dia seguinte. De noite, na caserna, depois da instrução nocturna, enquanto o sono não se apresentava, magicou no caso. Tinham de ser terras onde houvesse Destacamentos de Infantaria. Porto foi logo a sua prioridade. De lá tinha sido arrancado, o curso de Economia no início, e gostaria de regressar à velha cidade granítica, mesmo que por escasso tempo, pois, sabia-o, mais tarde ou mais cedo, abalaria, num barco qualquer, para uma frente da guerra colonial. Era uma circunstância sentimental, uma maneira de regressar aos velhos lugares, embora com uma farda. A segunda hipótese levou-o a Vila Real, onde, em tempos, no 13, o seu Pai cumprira a obrigatória servidão militar. Seria interessante pelo simbolismo e, como ficava a escassos quilómetros de casa, podia, até, ir e vir todos dias, excepto aqueles em que a Ordem de Serviço o colocasse na escala. Mais difícil foi acertar com a terceira opção. Excluída Lamego, não coadunável pela sua especificidade, além de não estar fadado para Ranger ou travessias de rappel, sobrou-lhe Chaves. Nesta cidade raiana, na década de sessenta, quadra em que esta narração decorre, localizava-se o Batalhão de Caçadores Especiais 10, com o epíteto de fronteiros de Chaves, sempre excelentes e valorosos, unidade com fama de dura e rigor militarista, tanto na corporação castrense como nas margens da sociedade civil que, de algum modo, lá tiveram ou tinham familiares. João, também, não o ignorava, mas devia completar o quadro das três preferências, sempre confiante que, se não lhe satisfizessem a primeira, a segunda, ao menos, não lha recusariam. Com essa esperança fez as malas e partiu para casa, mal lhe deram a bicha de Aspirante, a aguardar futura ordem de marcha. Pouquíssimos dias depois, com um indisfarçável sorriso e sem espanto – que, das coisas militares, ele já de nada se admirava - , o carteiro entregou-lhe uma carta onde vinha a convocatória do Exército para se apresentar em Chaves.

Numa reluzente manhã domingueira de Julho do ano de sessenta e seis, ao fundo de uma frondosa Avenida, em meia-lua espaçosa, viu o seu novo destino, admirando-se por, logo à primeira vista, dele ter gostado. Saiu do automóvel emprestado pelo Pai, correspondendo, ufano, à apresentação de armas do sentinela, e solicitou esclarecimentos ao Sargento da Guarda. Se pelo brilho do dia, pelo descanso da incógnita acabada, ou a frescura do edifício, foi satisfeito que estacionou o carro no parque, fez as apresentações ao Oficial de Dia, arranjou quarto, pousou a mala e percorreu, sozinho, as divisões da sua nova casa. O Quartel, reverberando ao sol, fazia-lhe esquecer a soturnidade conventual da Escola Mafrense, que, em depósito de meio ano, sempre lhe lembrara penitências de castrados fradescos, cumprindo, envoltos na escuridão, martirológios irracionais. Agora tinha, apesar da sua condição de milícia forçado, o calor e a brancura de um espaço que o aprazava. Mal ele sabia, infante ingénuo e generoso, que dentro daqueles muros, com um punhado de iguais, cozeria, no seu mais feliz período militar, o alimento puro e belo da amizade perdurável.

Em posição altaneira à cidade, como se velasse pelas suas gentes, costas defendidas pela Serra Amarela que se estendia, numa esquerda longínqua, para se grudar à cordilheira Castelhana, o Batalhão tinha uma ampla Porta de Armas, acedendo-se ao Comando e respectiva Messe de Oficiais através de uma escadaria bordejada por canteiros de verdura ou por dois curvilíneos arruamentos empedrados subindo ligeiramente. Atrás daquele, uma enorme Parada, impecavelmente limpa, com as casernas laterais, e, no cimo de uma pequena elevação cimentada, o Refeitório das Praças com a Messe de Sargentos ao lado. Depois do almoço, João desfardou-se e resolveu dar uma volta pela velha urbe onde Trajano deixara história. A apresentação ao Comandante da Unidade, dos Aspirantes esperados, seria feita na manhã seguinte, assim como a atribuição das tarefas futuras. Desceu a pé a Avenida que subira de manhã; passou no largo, onde, todos os anos, se amontoavam os feirantes da festa dos Santos; desaguou no jardim do Tabolado, em frente ao Liceu, e entrou no Aurora. Sentou-se, pediu um café, mirou e remirou o ambiente. Numa mesa do canto, escutado por uma tertúlia de catecúmenos, viu Nadir Afonso, que conhecia dos suplementos literários, de barbas grisalhas, provavelmente em vilegiatura flaviense. Reparando, descuidadamente, num jornal abandonado em cima do balcão, levantou-se, pegou-o, perguntou «Posso?», ressentou-se e, afastando a chávena, abriu-o sobre a pequena mesa redonda: era o Notícias do Tâmega. Sobre ele se debruçou, fingindo compenetrada inculca, mas reparando sempre em quem saía ou entrava. Deixou-se estar um bom bocado, pernas cruzadas, queimando cigarros. Eram bonitas as raparigas de Chaves... Depois, desceu a Rua de Santo António, virou à direita para as Termas, visitou a zona dos balneários cheia de aquistas que se amornavam nos bancos a fazer horas para a ração da água, retrocedeu para a Ponte Romana, sob a qual um Tâmega estival corria serenamente para a lonjura do mar, e reiniciou o trajecto ao contrário junto do posto da PVT. Os domingos não são bons dias para se perceber uma cidade, ausentes as rotinas, as surpresas e o nervosismo do quotidiano utilitário, mas pareceu-lhe – confirmado pelos meses seguintes - que Chaves era uma cidadezinha aconchegada, de conhecidas vizinhanças, limitada pelas faldas dos serros circundantes, onde, contudo, fervilhava um próspero comércio e um tolerado intercâmbio fronteiriço, um sopro suave e morno de fraternidade embrulhado num orgulho regionalista.

Quando regressou ao Quartel, deu, num abraço de risos e brados, com o Bandeira, seu antigo companheiro do Brotero, agora reencontrado em outra sorte. Pela noitinha, quanto viam a RTVE na sala da Messe, juntaram-se-lhes, vindos do Porto, entre outros, o Altino e o Ângelo que, feitas as apresentações, vá-se lá saber por que resultado afectivo, logo combinaram ficar no mesmo quarto de quatro camas e que tinha o número doze. João sentia necessidade de partilha, como se procurasse almas gémeas em que confiar. Boa parte da noite passou-se no desenrolar das experiências mútuas, numa pressa de conhecimento que selasse um pacto.
Continua...

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.