Mostrar mensagens com a etiqueta Jorge Almeida. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Jorge Almeida. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Retalhos da net - ROGAS DO DOURO

Transcrição - Opinião | 17-10-2012
ROGAS DO DOURO Por Jorge Almeida
Vinham de longe de terras altas e serranas. Vinham de longe em busca de esperança e sustento. Vinham com a alegria na alma, mas também com a dureza nos rostos de trabalho sofrido. As rogas do Douro da minha meninice.

O rogador marcava o passo e o ritmo daquele encontro, daquele trabalho anual, daquele teatro de vida sem guião, daquele contrato com o sagrado. O tocador de concertina alegrava a malta, fazia bailar a mocidade, aligeirava o peso dos cestos de verga cheios até ao cimo.

Ainda as moçoilas mal cantarolavam as primeiras modinhas serranas ao ritmo das tesouradas, já os homens preparavam as suas trouxas para acartar as preciosas uvas por caminhos e veredas, por longas distâncias, até ao armazém. Filas de 15-20 homens com o tocador à cabeça e o rogador na retaguarda, palmilhavam muito até ao lagar, as vezes que fossem necessárias, para que a lagarada se realizasse nesse mesmo dia.

Homens e mulheres devotados a um trabalho ritualizado, como se fosse uma compulsão, como se fosse um destino, como se fosse um chamamento divino. A Rosa, a Toninha, a sra. Amélia, bem como o sr. Rui e o Faustino nunca falhavam. Vinham todos os anos e prometiam fidelidade para os próximos. Com o sr. António Borgas, o rogador, vieram sempre. E incentivam o sr. Zé do Rancho a juntar-se ao grupo, esse grande tocador de concertina. Com ele, era uma alegria. Todo o dia a cantarolar.

À noite, a voz de comando tudo dominava. Esquerdo, direito, um, dois, esquerdo, direito, um, dois, como um disco riscado e prolongado, até ao esmagamento total das uvas e o ondular do mosto, sinal do lagar estar completamente cortado. Era então dada a voz da liberdade e, mais uma vez ao som da melodiosa concertina, homens e mulheres davam largas à sua alegria, dançavam e confraternizavam com mais um pé de dança, desta vez bem imerso no divino mosto.

E, mais tarde…. corpos cansados, entorpecidos e quase sonâmbulos, precipitavam-se para os cardenhos, onde do real se fazia fantasia, onde os sonhos se encarregavam de renovar a esperança de corpos martirizados, e onde o imaginário projetava um outro dia, com menos sofrimento e menos exploração.

Dias de sol a sol, calendários sem domingos e feriados, céus sem borrasca ou tempestade. O palco das vindimas do Douro de há algumas décadas.

E hoje… tudo mudou. Os tempos são outros.

As estradas que passaram a serpentear toda e qualquer vinha, as máquinas de vinificação que, na maior parte das situações, dispensam a pisa humana, a rapidez das comunicações, a nova sistematização do terreno, e mesmo, os novos sistemas de embardamento. A técnica fez evoluir a apanha, o transporte e a vinificação. Tudo mais fácil, mais cómodo e digamos, mesmo, mais rentável. Empregadores e empregados têm hoje a tarefa mais facilitada.

Mas… hoje é tudo mais frio e diferente. As rogas foram substituídas por empreiteiros agrícolas. A presença do pessoal circunscreve-se a 8 horas de trabalho. Não há animação, as refeições são curtas e frugais, a relação com o proprietário é ligeira ou inexistente. Tudo se resume a uma máquina de trabalho produtiva e quase impessoal. Quase não há nomes, muito menos famílias e outras referências.

E ao fim da tarde, comprimidos em carros, carrinhas e carretas, eles aí vão, apressados e desconsolados, tristes e sorumbáticos, com ganas de estrada, ansiosos por chegar a suas terras, e porventura ressonar com mais uma novela da TV.

Clique nas imagens para ampliar. Imagem acima retirada e editada da net via http://dourovintagefotos.fotosblogue.com/25/. Texto/recorte do jornal "Notícias de Vila Real", edição de 17/10/2012.  Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos. 

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Recortes: O MOMENTO É DOS AUTARCAS

Opinião | 29-05-2012 - Transcrição do "Notícias de Vila Real"
Por Jorge Almeida
O agricultor duriense é duma resistência incrível. Forjado numa intemporal luta titânica contra a adversidade climatérica, geográfica e morfológica, o duriense tem revelado ao longo da história uma grande resiliência, não só face às agruras dependentes da mãe natureza, mas também face às variáveis económicas, sociais e políticas que tantas vezes o têm prejudicado e mesmo espezinhado.

A história do Douro regista também importantes momentos de contestação e mesmo convulsão social contra a injustiça no negócio dos vinhos, as desigualdades, a desregulação, contra políticas prejudiciais à sustentabilidade e viabilidade económica do pequeno agricultor, elemento nuclear do tecido social da região.
Essa mesma história também nos ensina várias coisas, tanto em períodos de governos autoritários, como em alturas de governações liberais e democráticas. Só foi possível obter reconhecimento das nossas especificidades, das nossas necessidades e conseguir políticas mais justas e adequadas aos interesses do país vinhateiro sempre que a região se mostrou determinada e mobilizada, sempre que teve lideranças fortes, reconhecidas e ao mesmo tempo representativas.
Analisar o período tumultuoso pré organização da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, permite-nos conhecer o pulsar e o sentir duma região deprimida e muito prejudicada por concorrências desleais e por agentes económicos sem escrúpulos, mas ao mesmo tempo entender a força do movimento então criado que levou o Secretário de Estado do reino, o Marquês do Pombal, a produzir o decreto régio que tão bem promoveu a disciplina e a regulação, origem dum período de prosperidade que então se seguiu.
Ou então estudar o processo dos Paladinos, a sua capacidade de mobilização e reivindicação, o prestígio e representatividade das suas lideranças, os objetivos que prosseguiam, a organização institucional que foi possível criar, e as políticas que o governo central definiu a bem da lavoura duriense.
Nestes e noutros períodos de fluxo da nossa história podemos identificar alguns elementos comuns. A união e a mobilização dos durienses. Um ideário comum. A defesa intransigente dos interesses dos vitivinicultores. Uma luta consequente.
A situação económica e social em que se encontra hoje a RDD é muito preocupante. A perda de rendimento dos agricultores não para desde há uma década, e a manter-se, colocará em causa a sobrevivência dos pequenos e médios agricultores, que não terão hipótese de manter o granjeio das suas terras. Está em causa o modelo fundiário típico da região, o abandono das vinhas e logicamente a classificação de Douro Património Mundial. O êxodo populacional que se sente desde há alguns anos subirá exponencialmente.
O panorama mudou radicalmente nos últimos anos. O benefício nas explorações classificadas com letras A e B já não cobre as despesas do granjeio. Longe disso. As parcelas com letras inferiores ou que não tenham benefício, tornaram-se completamente inviáveis. Os agricultores vão fazendo um granjeio mínimo, não profissional, adiando estoicamente a decisão gravosa do abandono.
Por outro lado, a situação das Cooperativas, da Casa do Douro, da Subvidouro, ainda contribui mais para a falta de soluções. O desespero começa a dominar os espíritos. A fome está aí.
De um governo que põe um SE das Florestas, desinformado, demagogo, populista e incompetente a tutelar o setor vitivinícola, nada há a esperar.
Recentemente, os autarcas do Douro, em bloco, desafiados por esse mesmo SE, elaboraram um documento que sintetiza o essencial dos problemas da RDD e propõe dez medidas, no fundamental corretas, para resolver os principais problemas da região.
Dada a assertividade das medidas propostas, da sua exequibilidade, da sua justeza, da representatividade dos seus autores (as 21 Câmaras), os agricultores e as suas organizações só podem ter uma posição. Apoiar inequivocamente o documento, incentivar os autarcas a dinamizar um movimento reivindicativo que leve o governo a entender a gravidade da situação e a concretizar políticas em conformidade com as propostas apresentadas.
O momento não é para divisões ou guerras de capelinhas. O momento é de união e luta. Dos autarcas há que esperar um próximo passo. Assunção da liderança. Mobilização. Luta consequente. É o momento de fazer história.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Há fogo

*Jorge Almeida

Há fogo, há fogo, gritava a garotada da minha rua. A sirene era inconfundível, a frequência de sons agudos e graves não enganava. Em correria deixávamos o jogo da bola ou da carica para acorrer ao quartel.

Já lá estavam os mais afoitos e os mais próximos. É no Corgo, é no Corgo, dizia uma voz esganiçada. E os bombeiros não faltavam à chamada. Conforme estavam, em casa, no trabalho ou no lazer, assim vinham aqueles nossos heróis. De automóvel, de bicicleta, de motorizada, a pé. O Manuel, o Silva, o Figueiredo, o João e tantos, tantos outros. E o Chefe Claudino, e mais tarde o Comandante Cardoso… que organização, que autoridade.
Era um gosto ver sair o carro de nevoeiro a toda a velocidade a caminho do salvamento de pessoas e bens. Havia algo de forte, de solidário, de altruísta, de comunitário que a pequenada absorvia.

Os Bombeiros Voluntários do Peso da Régua representaram sempre, ao mais alto nível, os mais nobres valores da ajuda ao próximo, interpretando individual e colectivamente o lema de “dar de si antes de pensar em si“.

Mas tem sido também uma associação virada para a formação humana em todas as suas vertentes, e para a cultura.
Quando muito jovem, fui um dos utilizadores assíduos da biblioteca. As obras de aventuras Enyd Blyton ou de Emílio Salgari, mas também os clássicos da literatura portuguesa como os de Eça de Queirós e Camilo de Castelo Branco, abriram muitos caminhos para o conhecimento aos jovens da minha geração, numa altura em que a informação disponível rareava, as bibliotecas públicas no interior eram uma miragem, e em que o poder político tinha outras preocupações, bem longe da cultura do povo.

Recordo com muita saudade o testemunho que me foi transmitido por meu tio José Arnaldo Monteiro, o seu referencial à literatura e à cultura em geral, e o carinho que sempre manifestou pela associação. José Arnaldo Monteiro foi um grande resistente à ditadura. Foi dos primeiros reguenses a envolver-se no movimento democrático e a perfilar-se na defesa de causas sociais. Em sua memória, e concretizando um desejo de família, será em breve entregue aos nossos bombeiros o fundamental da sua biblioteca particular.

Saúdo por isso a orientação da direcção presidida pelo dr. José Alfredo que tem feito da vertente cultural uma das suas grandes preocupações.
A Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, para além de ser a menina dos olhos da comunidade reguense, atingiu grande prestígio a nível regional e nacional. Honra a memória de todos que a serviram, desenvolve uma profícua atividade no presente, e prepara-se para um grandioso futuro. Instalações, equipamentos e pessoas, sobretudo pessoas, a têm feito crescer, modernizar e consolidar. Mas será sempre com a memória e a cultura que este ideário reguense se perpetuará.

Vivam os Bombeiros.

*Jorge Almeida - Médico. Foi Vereador, Presidente da Assembleia Municipal da Câmara Municipal do Peso da Régua e Deputado na Assembleia da República. Actualmente exerce as  funções de Vogal do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Trás-os- Montes e Alto Douro.

Clique nas imagens para ampliar. Este texto está também publicado na edição do semanário regional "O Arrais" de 12 de Abril de 2012. Texto e sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Abril de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.