Vinham de longe de terras altas e serranas. Vinham de longe em busca de esperança e sustento. Vinham com a alegria na alma, mas também com a dureza nos rostos de trabalho sofrido. As rogas do Douro da minha meninice.
O rogador marcava o passo e o ritmo daquele encontro, daquele trabalho anual, daquele teatro de vida sem guião, daquele contrato com o sagrado. O tocador de concertina alegrava a malta, fazia bailar a mocidade, aligeirava o peso dos cestos de verga cheios até ao cimo.
Ainda as moçoilas mal cantarolavam as primeiras modinhas serranas ao ritmo das tesouradas, já os homens preparavam as suas trouxas para acartar as preciosas uvas por caminhos e veredas, por longas distâncias, até ao armazém. Filas de 15-20 homens com o tocador à cabeça e o rogador na retaguarda, palmilhavam muito até ao lagar, as vezes que fossem necessárias, para que a lagarada se realizasse nesse mesmo dia.
Homens e mulheres devotados a um trabalho ritualizado, como se fosse uma compulsão, como se fosse um destino, como se fosse um chamamento divino. A Rosa, a Toninha, a sra. Amélia, bem como o sr. Rui e o Faustino nunca falhavam. Vinham todos os anos e prometiam fidelidade para os próximos. Com o sr. António Borgas, o rogador, vieram sempre. E incentivam o sr. Zé do Rancho a juntar-se ao grupo, esse grande tocador de concertina. Com ele, era uma alegria. Todo o dia a cantarolar.
À noite, a voz de comando tudo dominava. Esquerdo, direito, um, dois, esquerdo, direito, um, dois, como um disco riscado e prolongado, até ao esmagamento total das uvas e o ondular do mosto, sinal do lagar estar completamente cortado. Era então dada a voz da liberdade e, mais uma vez ao som da melodiosa concertina, homens e mulheres davam largas à sua alegria, dançavam e confraternizavam com mais um pé de dança, desta vez bem imerso no divino mosto.
E, mais tarde…. corpos cansados, entorpecidos e quase sonâmbulos, precipitavam-se para os cardenhos, onde do real se fazia fantasia, onde os sonhos se encarregavam de renovar a esperança de corpos martirizados, e onde o imaginário projetava um outro dia, com menos sofrimento e menos exploração.
Dias de sol a sol, calendários sem domingos e feriados, céus sem borrasca ou tempestade. O palco das vindimas do Douro de há algumas décadas.
E hoje… tudo mudou. Os tempos são outros.
As estradas que passaram a serpentear toda e qualquer vinha, as máquinas de vinificação que, na maior parte das situações, dispensam a pisa humana, a rapidez das comunicações, a nova sistematização do terreno, e mesmo, os novos sistemas de embardamento. A técnica fez evoluir a apanha, o transporte e a vinificação. Tudo mais fácil, mais cómodo e digamos, mesmo, mais rentável. Empregadores e empregados têm hoje a tarefa mais facilitada.
Mas… hoje é tudo mais frio e diferente. As rogas foram substituídas por empreiteiros agrícolas. A presença do pessoal circunscreve-se a 8 horas de trabalho. Não há animação, as refeições são curtas e frugais, a relação com o proprietário é ligeira ou inexistente. Tudo se resume a uma máquina de trabalho produtiva e quase impessoal. Quase não há nomes, muito menos famílias e outras referências.
E ao fim da tarde, comprimidos em carros, carrinhas e carretas, eles aí vão, apressados e desconsolados, tristes e sorumbáticos, com ganas de estrada, ansiosos por chegar a suas terras, e porventura ressonar com mais uma novela da TV.
Clique nas imagens para ampliar. Imagem acima retirada e editada da net via http://dourovintagefotos.fotosblogue.com/25/. Texto/recorte do jornal "Notícias de Vila Real", edição de 17/10/2012. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.
O rogador marcava o passo e o ritmo daquele encontro, daquele trabalho anual, daquele teatro de vida sem guião, daquele contrato com o sagrado. O tocador de concertina alegrava a malta, fazia bailar a mocidade, aligeirava o peso dos cestos de verga cheios até ao cimo.
Ainda as moçoilas mal cantarolavam as primeiras modinhas serranas ao ritmo das tesouradas, já os homens preparavam as suas trouxas para acartar as preciosas uvas por caminhos e veredas, por longas distâncias, até ao armazém. Filas de 15-20 homens com o tocador à cabeça e o rogador na retaguarda, palmilhavam muito até ao lagar, as vezes que fossem necessárias, para que a lagarada se realizasse nesse mesmo dia.
Homens e mulheres devotados a um trabalho ritualizado, como se fosse uma compulsão, como se fosse um destino, como se fosse um chamamento divino. A Rosa, a Toninha, a sra. Amélia, bem como o sr. Rui e o Faustino nunca falhavam. Vinham todos os anos e prometiam fidelidade para os próximos. Com o sr. António Borgas, o rogador, vieram sempre. E incentivam o sr. Zé do Rancho a juntar-se ao grupo, esse grande tocador de concertina. Com ele, era uma alegria. Todo o dia a cantarolar.
À noite, a voz de comando tudo dominava. Esquerdo, direito, um, dois, esquerdo, direito, um, dois, como um disco riscado e prolongado, até ao esmagamento total das uvas e o ondular do mosto, sinal do lagar estar completamente cortado. Era então dada a voz da liberdade e, mais uma vez ao som da melodiosa concertina, homens e mulheres davam largas à sua alegria, dançavam e confraternizavam com mais um pé de dança, desta vez bem imerso no divino mosto.
E, mais tarde…. corpos cansados, entorpecidos e quase sonâmbulos, precipitavam-se para os cardenhos, onde do real se fazia fantasia, onde os sonhos se encarregavam de renovar a esperança de corpos martirizados, e onde o imaginário projetava um outro dia, com menos sofrimento e menos exploração.
Dias de sol a sol, calendários sem domingos e feriados, céus sem borrasca ou tempestade. O palco das vindimas do Douro de há algumas décadas.
E hoje… tudo mudou. Os tempos são outros.
As estradas que passaram a serpentear toda e qualquer vinha, as máquinas de vinificação que, na maior parte das situações, dispensam a pisa humana, a rapidez das comunicações, a nova sistematização do terreno, e mesmo, os novos sistemas de embardamento. A técnica fez evoluir a apanha, o transporte e a vinificação. Tudo mais fácil, mais cómodo e digamos, mesmo, mais rentável. Empregadores e empregados têm hoje a tarefa mais facilitada.
Mas… hoje é tudo mais frio e diferente. As rogas foram substituídas por empreiteiros agrícolas. A presença do pessoal circunscreve-se a 8 horas de trabalho. Não há animação, as refeições são curtas e frugais, a relação com o proprietário é ligeira ou inexistente. Tudo se resume a uma máquina de trabalho produtiva e quase impessoal. Quase não há nomes, muito menos famílias e outras referências.
E ao fim da tarde, comprimidos em carros, carrinhas e carretas, eles aí vão, apressados e desconsolados, tristes e sorumbáticos, com ganas de estrada, ansiosos por chegar a suas terras, e porventura ressonar com mais uma novela da TV.
Clique nas imagens para ampliar. Imagem acima retirada e editada da net via http://dourovintagefotos.fotosblogue.com/25/. Texto/recorte do jornal "Notícias de Vila Real", edição de 17/10/2012. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.
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