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quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O Primeiro Presidente da Direcção

Na primeira vez que entrei na casa da família Magalhães, na Quinta D. Leonor, na encosta de Remostias, encontrarei uma fotografia antiga, pendurada numa parede de uma confortável sala que despertou a minha atenção. De repente, quando olhei o rosto daquele homem sério, de barbas, de olhar algo melancólico e distante no tempo, que pressagiei ser José Braz Fernandes, o primeiro Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua.

Há muito que esperava ver o rosto do homem que considerada uma figura destacada na história da Associação dos Bombeiros da Régua. Até aquela data, verão de 2011, não tinha encontrado nenhum seu retrato, por mais que o procurasse aquele retrato de José Braz Fernandes surgia-me inesperadamente. Eu tinha ido àquela casa para conversar um pouco sobre António Rafael de Magalhães e a sua opereta “O Milagre do Cruzeiro”, que fora representada, pela primeira vez, nos anos 50, com enorme sucesso, no Quartel dos Bombeiros da Régua, que serviu como se fosse um Teatro.

Se a era uma boa razão para estar muito satisfeito, confesso que, sem contar, ter perto de mim o retrato do meu primeiro antecessor me fez sentir um tanto deslumbrado e bastante honrado com a sua companhia, que um pedaço de fio da história nos aproximava e nos unia.

À minha frente, sabia que estava o retrato bisavô do meu amigo, uma preciosidade de antepassado da família, da vida do qual pouco sabiam. No meu indisfarçado encanto, estava diante do meu olhar o retrato do Primeiro Presidente da Direcção.

Nessa tarde de Julho, entre José Braz Fernandes e mim, separava-nos mais de um século, precisamente cento e trinta e um anos, e naquele momento, nada sabia da sua via. Ignorava tudo da sua biografia, apesar de ter procurado alguns rastos de seu percurso pessoal, familiar e profissional. No cemitério municipal, onde sabíamos que jazem as cinzas do seu corpo, procuramos no jazigo da família uma lápide com o seu nome e a data do seu falecimento, mas dali só veio um silêncio profundo. Quando menos esperamos, o Arquivo Distrital de Vila Real dava-nos conhecimento que tinha o assento do seu óbito. Quisemos ter uma fotocópia desse documento que foi preenchido pela mão do Abade Miguel António da Fonseca e Sousa que, assistindo espiritualmente à sua morte, nele registou estes dados: “Aos 30 dias do mês de Septembro do ano de mil oitocentos e noventa e quatro, à uma hora da manhã, nas casas da morada no lugar de Remostias, desta freguesia de São Faustino do Peso da Regoa, concelho do Peso da Regoa, diocese de Lamego, falleceu, tendo recebido o Sacramento da Extrema Unção, um individuo do sexo masculino, por nome de Jose Braz Fernandes, de idade de cinquenta e oito anos, viúvo de Dona Maria da Natividade Candida (…)”.

Para a sua família, José Braz Fernandes era um antepassado longínquo, com quem não tinham havido nenhumas relações de intimidades. Lembravam-no apenas pelo que ouviram contar aos seus descendentes mais próximos. Tinham conhecimento que fora proprietário, dono de uma área extensa vinhas, algumas das quais fazem parte da Quinta D. Leonor. E que sempre viveu aí viveu e educou oito filhos que teve do seu casamento, a Leonor, a Felicidade, a Elisa, a Cândida – também ela uma ilustre benemérita dos Bombeiros da Régua -, o Augusto, o Joaquim, o Romão e o José.

Na única história da Régua, da autoria Afonso Soares, o seu nome está recordado como um cidadão empenhado activamente nas causas sociais, aparecendo ligado à primeira administração do Hospital da Régua e aos órgãos sociais da prestigiada Associação Comercial.

Mas, como o primeiro Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua, ninguém o tinha evocado, para o distinguir num cargo de relevo social. Uma falha que, até hoje me parecia, ser injusta para um cidadão que tinha dedicado, uma pequena parte da sua vida, a servir uma causa cívica e humanitária que, apesar de muitas vicissitudes, ser afirmara no seu tempo.

Ao lado do primeiro Comandante Manuel Maria de Magalhães, seu amigo pessoal, José Braz Fernandes, teve como espinhosa missão, a organização um corpo de bombeiros voluntários, com formação e material adequado. Sem quer fazer uma conjectura do seu trabalho nos quatro anos em que esteve à frente da Direcção, sabemos que concretizou muitos projectos, aqueles que na época eram o objectivo essencial e recebeu das mãos do Rei D. Luís I, uma honrosa distinção para Associação.
Nas entrelinhas das actas da sua Direcção, que chegaram intactas até nós, não ficaram assinalados os resultados do seu trabalho. Quem tiver atenção, ficou bem explícito o traço do seu carácter, a verticalidade e a sua determinação. O exemplo cívico de um homem que viveu uma espantosa experiência humana, a genuína causa do voluntariado.

Desde a fundação, os Bombeiros da Régua mudaram muito. Apoiados numa Associação modelar, que evoluiu e se transformou num sector em mudança permanente, é actualmente uma organização social e de socorro moderna. Para aqui chegar, ser uma instituição sólida e grande, precisou que ele erguesse os primeiros pilares. Quando tudo começou, no dia em tomou posse, o património da Associação era pouco mais que as duas bombas de incêndios pela autarquia. Os sócios contribuintes e os beneméritos, como a famosa viticultora Ferreirinha, contribuíram para comprar as fardas e pagar as rendas da casa que, no Lago da Chafarica, serviu de instalar a sede, a biblioteca e, como se chamava ao quartel, a Estação das Bombas.

Como actual Presidente da Direcção dos Bombeiros da Régua, com cinco mandatos feitos, tenho o dever, mesmo a obrigação, de preservar a memória colectiva da Associação e de todos os cidadãos, bombeiros, directores, associados e beneméritos – que a ela e à sociedade reguense deram muito das suas vidas.

Conhecer o que foi o passado de José Braz Fernandes estimula-me a persistir no engrandecimento da Associação e do Corpo de Bombeiros. Orgulho-me do que foi legado, um empreendimento social, benemérito, generoso e abnegado que continua a existir para proteger as pessoas e bens, assente no associativismo, cidadania e voluntariado.

Em 28 de Novembro de 1880, os Bombeiros da Régua foram pioneiros no distrito de Vila Real. A sua Associação foi a primeira a ser fundada. E, a única, a quem foi atribuído o título honorífico de Real Associação.

Por isso, fiquei contente quando o olhar mesmo distante de José Braz Fernandes, naquele retrato, se cruzou com o meu, quase de um presidente para outro presidente, voltou a pairar – eu penso que com admiração e orgulho - pelo presente da nossa Associação e do Corpo de Bombeiros que, há mais de um século, persistem em ser uma referência ética, cívica e cultural da sociedade reguense.
- José Alfredo Almeida*, 
Peso da Régua, Outubro de 2012



PS - A partir de agora, por gentileza da família Magalhães, uma cópia daquele retrato de José Braz Fernandes está exposto numa galeria do Quartel Delfim Ferreira.
*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também cronicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.

Clique nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Outubro de 2012. Também publicado no semanário regional "O ARRAIS" edição de 18 de Outubro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. É permitido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue desde que mencionados a origem/autores/créditos.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O CEGUINHO E O DEMÓNIO

Por João de Araújo Correia


Tal ceguinho era religioso por vocação e por necessidade. Gostava de assistir às missas, rezar pelos benfeitores, ouvir a palavra de Deus orada do púlpito pelos melhores jesuítas e de adormecer à noite com as camândulas presas entre os dedos magros – de tísico... A religião dava-lhe prazer e rendia-lhe coroas. Vendo-o tão pio, as beatas ricas fartavam-no de esmolas e até lhe inventaram o vício de fumar para ele se entreter – as santas criaturas.

Morava numa casa térrea ao rés do adro e tinha por costume sentar-se nos degraus de um cruzeiro levantado diante da igreja. Ali vivia – preso àquelas pedras com mais amor do que ao buraco da casa. Dali espreitava tudo – se é que os cegos espreitam. Não espreitava, mas ouvia. Dava relação de quantos passos feriam a testada do templo. Passos apressados de homens que não tiram o chapéu a ninguém – menos a uma cruz. Passos frívolos de senhorinhas que fazem vénia, mas ligeira, a Nossa Senhora. Passos doentios de senhoras de
idade, cuja reverência ao Santíssimo é meiga e prolongada. Passinhos de criança sobre o saibro, tic, tic, davam ao ceguinho a impressão do primeiro granizo que pinga na areia.

Afeito àqueles ruídos, conhecia-os todos, identificava-os, sabia o nome aos pés que os produziam. Tinha que fazer, contando-os e nomeando-os, porque o adro era aberto e muita gente o atravessava para ir mais depressa à sua vida.

O cego não pedia esmola. Cumprimentava e recebia. Quando, no meio daquele perpassar de pés e pernas, reconhecia amigo ou devota, dizia:

– Senhor E, o dia está bonito.

Ou

– Minha Senhora! A missinha amanhã é mais cedo. A Senhora sabe... Disse o Senhor Abade...

Estas frases eram a salva estendida à mão caritativa. Caíam nela moedas de prata e de cobre, que o cego apartava em saquitéis. Era muito metódico.

O trato devoto com senhoras e senhores finos dera ao ceguinho modos adamados.

– Por este não vem mal ao mundo, dizia um fidalgote pálido que tomava o Senhor todos os dias.

Tinha o ceguinho voz monocórdica e não fazia gestos violentos como pessoa ordinária. Era comedido, quase amputado no que representasse força, ousadia, sinal de vida.

– Por este não vem mal ao mundo, anuíam baixinho, dando topetadas, as beatas velhas.

Não, pelo ceguinho não vinha mal ao mundo. Todavia, ele não era insensível à aproximação da carne feminina, principalmente a carne perfumada. Distinguia as senhoras, não só pelo passo leve e curto, mas também pelo cheiro. Havia uma, cujo aroma o inebriava. Mal vinha à esquina do templo, já a sentia como perdigueiro que dá tento de caça. Dilatava as narinas, mas... imediatamente as coçava, disfarçando, e dispunha-se a falar à aparecida com unção.

– Minha Senhora, amanhã a missinha é um pouco mais cedo.

– Já sei, Fernando. Pega lá, olha, para rebuçados.

A senhora afastava-se, e ele seguia-lhe o rasto com a ponta do nariz afilada para o aroma.

Dentro da igreja, identificava os perfumes com as vozes.

– Aquela, a que canta alto, é a que cheira a cravo.

– A de voz rouca espalha um cheiro grosso que me enjoa.

– Esta, sim, tem voz de pintainho, mas é desenjoada. Cheira às ervas do monte.

Os pecados do ceguinho, como se vê, eram latentes, ocultos.

No entanto, mordia às vezes os lábios para os não revelar.

– Ah! Minha Senhora, que lin... Sim, minha Senhora, amanhã a missinha é um pouco mais cedo.

– Obrigado a Vossa Excelência. O ceguinho nunca se esquece de pedir a Nosso Senhor pela saudinha de Vossa Excelência. Que lin...

Seguia-a com o nariz como de costume. Olfacto terrível!

Mas, não só o olfacto. O ouvido também... Era de um apuro! Cativava-se de todo o som, próximo ou longínquo, e guardava de memória para sempre o som harmonioso.

– Muito bem cantou o Veni aquela que cheira à erva do monte! Parece impossível!

Dizia isto no degrau do cruzeiro quando recordava passos de festividade. Mas, dizia-o sem falar. Mexendo os beiços, mal articulava as sílabas. Não descobria o peito.

Um dia, sem mais nem menos, pediu a um irmão, com quem vivia, que lhe comprasse uma guitarra até cem mil réis.

– Pago-ta às migalhinhas... Vê se ma compras. Se ma comprares, és bom irmão. Se ma não comprares, mereces ser ajudado de Deus, mas é à moda... Oxalá que todos os cegos do mundo te amaldiçoem entre a Hóstia e o Cálice.

– Carago! És mau como as cobras...

 –Agora sou! Sou ceguinho.

Dias depois, tinha a guitarra. Não se sabe como o irmão se houve para a conseguir. Era pobre como Job. Comprou-a por milagre para evitar a praga rogada entre a Hóstia e o Cálice.

Com a guitarra nas unhas, o cego desforrou-se da tristeza e humilhação a que votara corpo e alma durante uns poucos de anos. Rompeu a capa que o cobria – capa feita do aniquilamento de todas as vontades. Pôs-se a tocar pedaços de amor musical, notas quentes trazidas pelo vento desde a cidade ruidosa até o adro silencioso.

–Não deves tocar isso, dizia-lhe uma senhora.

Ele porém não a ouvia. Erguia-se do sopé da cruz, metia-se no cardenho e iluminava-o todo com um zangarrear feito de sol.

– A guitarra deu cabo do ceguinho. Oxalá não seja a sua perdição, temia outra senhora.

Como de facto. A guitarra deu cabo do ceguinho. Deu-lhe cabo da compostura, do arranjo com que se sentava nas escadas da cruz, e até lhe deu cabo da voz monocórdica. Era com altos e baixos que proferia:

– Minha Senhora, amanhã a missinha é um pouco mais cedo. Disse o Senhor Abade.

– Está bem, está bem.

As senhoras, estranhando-lhe o modo novo de pronunciar a frase, fugiam dele. Davam à fuga, endireitando o busto, o tom particular da ira amordaçada. Só elas sabem como se faz isto.

A escarcela do cego, outrora pingue de coroas, começava a ressentir-se da metamorfose do dono. Passava dias sem se estrear com um tostão.

– Paciência. Não matei a cabra. Mato-a amanhã.

O homenzinho, que tinha sido anjo no âmbito da igreja, passara a falar calão de motorista. Adquirira desenvoltura feia em cego. Parecia maluco. Tinha febre e tosse.

Muito magrinho, cada vez mais magrinho, começou a ficar pela cama dias seguidos. Para se entreter, pedia à cunhada o favor de lhe chegar a guitarra e tocava. E até cantava!

– Bossemecê está doido de todo. Rais me parta se lhe torno a chegar às unhas esse diabo dessa biola.

O cego ria-se como perdido. Fazia-lhe cócegas a zanga pitoresca de Tomásia – sua cunhada.

– Ai, Tomasinha, a menina é um anjo. Fazia lá essa desfeita a um cego!

– Um cego que não tem juízo... Sabe que está um chato? Bom tempo, em que as coroas luziam nesta casa.

– Hão-de tornar a luzir, Tomasinha!

– Quando?

– Sabe o que me lembrou, Tomasinha? Arranjar um rapaz que cante e ir ver mundo, tocar por aí fora.

– Habia de fazê-las frescas, tísico de todo...

O cego amuou, mas, daí a pouco, em voz meio sumida, confusa, como se estivesse a sonhar, ia dizendo:

– A Tomasinha é um anjo. Parece a senhora que canta mal e cheira às ervinhas do monte.

– Doido assim!, exclamou a cunhada.

O cego estava a morrer ou fingia que estava a morrer. Não tocava guitarra, nem pegava em comida. Mas, lembrando-lhe a cunhada o dever de se reconciliar com Deus, disse que era cedo.

– Quando for altura, concluiu.

– Quando for altura, está bossemecê a contas. Lembre-se que já daí se não alebanta.

O cego respondeu como se a não ouvisse:

– A menina é um anjo...

Passaram-se dias sem que o cego pegasse em comida ou pedisse a guitarra para zangarrear. Até que uma tarde, quando o sol lhe varria a cama com um rebotalho de luz amarela, o cego implorou:

Deixe-ma ver agora. Quero despedir-me dela para sempre.

A cunhada aproximou-se do leito condoída.

– Está aqui, tataranha! Aqui!

Neste momento, o cego subjugou os pulsos da mulher e beijou-lhe à pressa as mãos, a face e os cabelos.

– De vossemecê foi que eu me quis despedir. A guitarra? Que a leve o Diabo!

– Seu porco, seu ladrão! O Quim há-de sabê-lo!

No dia seguinte, o Quim, a escumar pelos cantos da boca, intimou o ceguinho a sair de casa.

– Perdoa-me, Quim. Foi o Demónio que me atentou.

– Bai-te embora. Cego seja eu como tu se te não mato. Ou te mato ou te amaldiçoo entre a Hóstia e o Cálice. A ti e a todos os cegos do mundo. Oubiste, alicréu?

– Mata-me, que eu não saio daqui. Chama o Senhor Abade. Quero-me confessar. Por alma da nossa mãe, perdoa-me. Foi o Demónio que me atentou.

– O Demónio dou-to eu. Confessa-te na igreja, bíbora! Aqui tens as calças. Ou as enfias ou te corto o pescoço.

Daí a menos de um ai, o ceguinho estava na rua com a guitarra suspensa do pescoço.

Não se soube mais dele. Ou anda de terra em terra, tocando e cantando novos desesperos, ou, tísico no fim, o vento lhe deu no peito e o levou até um valo como faz às folhas mortas.

- In Terra Ingrata, Editorial Estampa
Clique na imagem para ampliar. Matéria transcrita e editada. Sugestão de JASA. Edição de J. L. Gabão - "Escritos do Douro" em  Janeiro de 2012.

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sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Memórias do Comandante Lourencinho

Num aditamento ao texto que escrevi há três ou quatro semanas e que aqui se publicou, eu disse que o mesmo ia ser escrito no português da minha escola. Pois o texto de hoje obedece aos mesmos princípios, seja pela idade que vou tendo, seja pelo respeito aos bons dicionários que tenho na biblioteca. Adiante…

Depois da escola que me ensinou a ler Camilo ou o sermonário do padre António Vieira, continuei os estudos na Faculdade de Medicina do Porto, rés-vés o hospital de Stº. António. Foi por esse tempo que conheci o senhor Lourenço Pinto Medeiros, o Lourencinho, de boa memória. Também por esse tempo, nas férias grandes ou pequenas, eu deixava para trás o casão da Faculdade e vinha para a casa paterna, ou avoenga, casa de quinta, no lugar de Remostias. No Porto ficavam os livros de estudo, anatomias, patologia geral, embriologia, obstetrícia, propedêuticas, e por aí fora, todos eles em repouso e entregues a si mesmos, como se cada qual fosse uma leira de terra em pousio.

Gostava de trazer comigo, a boa companhia do tratado de Fisiologia, só para continuar os estudos em dias feriados… O funcionamento do corpo humano, os seus segredos e interrogações, até alguns milagres, tudo isso me fascinava e tudo isso chegou a ser tema de amenas conversas com o Lourencinho, ali na tabacaria de meu pai, na rua de Serpa Pinto.

Era nas férias grandes, naquelas manhãs ou tardes de um verão canicular que muitas vezes eu deixava para trás a meia-encosta de Remostias, toda ela com sucessivos quadros de uma natureza aprimorada, e vinha por aí abaixo até ao centro da Régua, mesmo no Agosto que dia- a-dia se ia chegando às vindimas, já com tantos e tantos cachos aflorados de oiro e de pintor. Feito vádio, modo de dizer, vinha até à Régua, eu e o tratado de Fisiologia, a fazermos uma pousada na tabacaria de meu pai. Era ali que se encontrava quase sempre o Lourencinho, sempre bem vestido, fato de bom talhe, gravata a condizer, sapatos brilhantes de bom lustro.

Na tabacaria, no espaço destinado ao público, havia um banco corrido de três ou quatro lugares, encimado por um largo espelho de cristal e ladeado por duas estantes expositoras, coisa rara e talvez única em qualquer outro estabelecimento da Régua. Meu pai, um diletante, de mais a mais com um apurado sentido da cultura, entendeu que o comércio de tabacos por junto, era negócio de toma lá dá cá, negócio nada marralheiro e a pedir algum espaço de descanso e de convívio.

O banco, sendo corrido, naturalmente rectangular, passou a ser um círculo de diálogo e de cultura. Era o banco do Lourencinho, afora um ou outro freguês que nele descansasse de uma longa caminhada. Sentado no banco o Lourecinho fazia horas e fazia-as diariamente, cioso de algum sossego, sei lá se de alguma secreta solidão e a deitar contas à vida. Fumava cigarros atrás de cigarros e olhava a rua com olhos distantes, mesmo inexpressivos, como se a retina estivesse virada para dentro de si mesmo.

Tirando os dias de feira, o quotidiano da rua era o habitual, um sobe e desce de automóveis, carros de bois, carretas de mão e gente que ia à sua vida, novos e velhos, cada qual integrado no andamento do mundo.

Muitas vezes eu subia ao andar da Associação Comercial a estudar Fisiologia. Depois vinha fazer horas de espera junto do Lourencinho que logo me perguntava: - Então, já estudou? Continue… continue, não desista. Conversávamos então sobre vários aspectos da fisiologia humana, coisas que ele gostava de ouvir e que lhe ateavam um fogo de curiosidades. De espanto em espanto, como que se deslaçava nele uma qualquer timidez que, se não era medular era própria da sua postura intimista.

O bombeiro Lourencinho, já comandante da Corporação, não era atreito a exibicionismos nem a protagonismos, muito menos a fogo de vistas. Mas amava os bombeiros no seu todo e gostava de se sentar no banco da tabacaria a conversar com meu pai.

Assim enraizado, é crível que fosse o Lourencinho quem convenceu meu pai a escrever uma qualquer peça de teatro, peça que, levada à cena, poderia render dinheiro bastante para dar seguimento às obras do quartel.

E, de facto, meu pai escreveu a letra e a música da opereta O Milagre do Cruzeiro que, logo na estreia, foi um sucesso, um acontecimento artístico a despertar por aí além muito entusiasmo e muitos aplausos.

Foi uma sugestão do Lourencinho? Talvez… talvez... isto nos animosos tempos que já lá vão e nos bons propósitos de um espaço que já não é.
- Manuel Braz de Magalhães
Clique  nas imagens para ampliar. Texto e imagens originais cedidos pelo Dr. José Alfredo Almeida (JASA). Também publicado no semanário regional "O ARRAIS", edição de 7 de Novembro de 2012. Edição de imagens e texto de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Novembro de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.