sábado, 31 de julho de 2010

Recordações de Barro - Os bombeiros

Por João de Araújo Correia

Meu pai tinha sido bombeiro voluntário. Mas, dotado por aí de lenta agilidade, sempre meticulosamente pausado, é crível que as obrigações de bombeiro, subir e descer escadas, de agulheta em punho, em cima de um telhado, fossem incompatíveis com o seu o seu eu, isto é, com físico e o seu moral. Sei que pouco tempo foi bombeiro. Desertou do apito, mas continuou ou fez-se contribuinte. Foi-o até à hora da morte.

Da actividade bombeiril do meu pai, ficou em minha casa, durante algum tempo, uma recordação. Foram os botões, as charlateiras e umas insígnias do uniforme. O que brinquei, com estas maravilhas amarelas, meio oxidadas, só eu sei… O que não sei é como se perderam. Sei que foram, uma após, imitando o soldadinho de chumbo do conto prodigioso. Mas, se o soldadinho de chumbo regressou, para fazer das suas, elas coitadinhas, não regressaram. Vivem apenas na minha memória, isto é, no passado, que se faz presente quando eu o chamo.

Sempre que brincasse com os botões, as charlateiras da farda do meu pai, dizia entre mim: o papá foi bombeiro. Dizia-o como se o tivesse visto fardado, em dia de grande gala, numa formatura resplandecente. Dizia-o por intuição das charlateiras, insígnias e botões meio oxidados, mas ainda áureos bastantes para suscitarem orgulhoso no cérebro infantil. Se tivesse visto o papá numa parada, com o capacete a arder, numa fogueira de sol, com certeza que a minha vaidade se teria tornado insuportável. Um homem de luvas brancas, com machado de prata às ordens e a cabeça adornada com um elmo de ouro, não é um homem. É um semi-deus.

Perdi a ocasião de ver os bombeiros formados quando morreu o Padre Manuel Lacerda. Passou à minha porta o acompanhamento, caminho do Cruzeiro, mas não o vi. Se passou de manhã, estaria eu ainda na cama ou andaria para o quintal, onde era vivo e morto nas horas forras das primeiras letras -tinha eu sete anos.

Quem me descreveu o enterro foi minha irmã mais velha, imediata de minha mãe na minha iniciação em espectáculos novos. Disse-me como tinha sido, mas só o fixei, de mo dizer muitas vezes, que o Borrajo levava a bandeira e ia a chorar.

O Padre Manuel Lacerda. Foi, de todos, o mais benquisto dos reguenses. Morreu de repente, enlutando num pronto a Régua toda. Lembro-me do o ver conversar com meu pai. Que fisionomia! Era uma espécie de coração visto por fora para melhor se adorar. Meu pai, que não era homem de muitas lágrimas, nunca o recordou, pela vida fora, com os olhos absolutamente secos.
Não se pode dizer que o Padre Manuel Lacerda, como padre, tenha sido talhado pelo figurino que os cânones exigem. Mas, como homem, foi um santo homem, um homem alegre, que não podia ver pessoas mal dispostas nem arrenegadas umas com as outras. Onde soubesse que havia desavindos, fazia uma festa, promovia um banquete, fosse lá o que fosse, para os congregar. Deixou, na Régua, essa tradição benigna.

O Padre Manuel Lacerda foi capelão dos bombeiros. Por isso o acompanharam, de bandeira enlutada, no último passeio. O Borrajo, porta-estandarte, ia a chorar…


Notas:
  1. Esta magnífica crónica de João de Araújo Correia teve a sua primeira publicação no jornal da Associação, o “Vida por Vida”, em Novembro de 1957, mas o escritor reguense veio a incluída num dos seus livros de crónicas e memórias.
  2. Estas fotografias são dos anos 50 do último século. Pode ver-se na primeira duas ilustres figuras dos bombeiros da Régua: Jaime Guedes Castelo Branco, distinto director e um dos melhores presidentes de direcção da Associação e ainda o “delicado” Comandante Lourenço de Almeida Medeiros (1949-1959). Elas assinalam uma importante cerimónia em memória dos bombeiros e directores falecidos que se realiza, em cada aniversário da Associação (28 de Novembro), nos cemitérios do Peso e de Godim, onde se prestam as honras e continências em homenagem e se deixa em cada sepultura uma flor vermelha… e de eterna saudade. Temos muita pena de não saber onde está sepultado o corpo do padre Manuel Lacerda, o primeiro capelão dos bombeiros da Régua… Apesar de nunca o esquecermos, pelo que fez em nome dos bombeiros da Régua, da nossa parte, bem merecia uma humilde homenagem…!
- Colaboração de José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Julho de 2010.
  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua de onde é natural e de figuras marcantes do Douro.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Recortes: Caldas do Moledo em 1919

Clique nas imagens para ampliar. - Imagens acima cedidas por José Alfredo Almeida - Peso da Régua,  para "Escritos do Douro".

GERAÇÃO ESQUECIDA

(Clique na imagem para ampliar)

O mato é verde como a esperança,
denso e forte como a paixão,
cheira a catinga e a feitiçaria,
a queimadas vermelhas na escuridão.
O mato é um céu aberto,
uma prisão com canos escondidos,
o limite de quem não se sente liberto,
um poema de gritos e gemidos.
O mato é música e sensualidade,
negra desnudada num banho de sol,
cabelo enrolado como um caracol,
a gritar e a correr em liberdade.
O mato é o medo que se escapa pelos trilhos,
a desconfiança aos camuflados que chegam,
a fera com cio vagueando desvairada,
suor da arte maconde ainda não prostituída,
O mato é o silêncio duma espera
a angústia sofredora de quem desespera,
tiroteio rasgando em carne viva.
O mato é a castanha de cajú,
água do coco e papaias do desejo,
caçadas de reis sem roque e sem reino,
armas em brasa na guerra sem leis.

E em África jovens se gastaram,
em tempo dobrado esperaram,
que não fosse preciso matar e morrer
para que os homens se entendessem.
Choravam pelos filhos que nasciam
pelos amigos que morriam,
e eles matando e sobrevivendo
e eles ferindo-se e morrendo.
Tinham na Alemanha próteses à espera,
na pele o sol e a chuva,
na alma uma fartura de mato,
nas mãos o cheiro do capim,
nos dedos os calos do gatilho,
nos olhos a lonjura da savana,
na saudade a viagem do regresso,
no coração a surpresa da cilada,
nos ouvidos os assobios das balas,
em Alcoitão cadeiras de rodas,
em Artilharia Um o desalento triste,
nos cemitérios valas já prontas,
nos pés arrastavam o cansaço,
no pensamento silenciavam PORQUÊ?
no corpo o desejo de amar da idade,
conforme o sorriso dos lábios e a vontade
de abraçar a mulher tão longe, tão distante.

Geração esquecida pelo antigo mando,
silenciada pelo novo mando,
por todos os mandos imprestáveis,
por todos os mandos sem orgulho,
sem raiva e sem mãos limpas.

Continuaremos a ser a geração
Sem diamantes nos dedos
e sem presas na arrecadação.

- M. Nogueira Borges*, Porto. Escrito em junho de 1978.
  • *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. Pode ler também os textos deste autor no blog ForEver PEMBA. Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

sábado, 24 de julho de 2010

A Corporação dos Bombeiros Voluntários na recepção a Nossa Senhora de Fátima Peregrina


Texto do Reverendo José Pinto de Miranda Guedes - Arcipreste do Peso da Régua.
A digna Direcção da briosa Corporação dos Bombeiros Voluntários desta vila pede-me para colaborar na publicação o editar nas Bodas de Diamante, pondo em destaque a acção dessa Corporação aquando da vinda de Nossa Senhora Peregrina à Régua.

Missão difícil esta pela grandiosidade do assunto. Missão difícil para a minha pobre pena, pouco habituada aos trabalhos literários.

Pobre companheira de 46 anos, ela está mais habituada aos trabalhos de instituir processos do que a burilar frases, a escrever artigos de responsabilidade. Porque eu entendo que escrever para o público se deve fazer depois de muito estudo, de muita ponderação, de muito alinhar períodos, de burilar frases.

É tão seria a missão do jornalista, que é o orientador das multidões… Ele deveria escrever com punhos de renda… Depois de reflectir sobre a responsabilidade do seu sacerdócio a alimentar o publico com o pão do espírito.

Mas – ai de mim! – sempre numa vida ocupadíssima, sempre em efervescência, sempre o espírito ocupado com os meus encargos, que são tantos… que são tão complexos…

E depois… falar nessa grandiosa manifestação de Fé em honra de Nossa Senhora…

Diz-se que Frei Anjelico pintava os seus quadros admiráveis de joelhos. Diz-se que o Cura d`Ars escrevia os seus sermões junto do sacrário.

Falar de tal manifestação e da actuação dos Briosos Bombeiros nela, seria necessário ter em frente o Crucifixo que inspirava o São Boaventura, ao qual ele atribuía tudo o que nos deixou nas suas obras maravilhosas…

Eu confesso muito francamente que, quando tomei conta da freguesia (há 22 anos!…) as minhas impressões sobre a religiosidade da Associação dos Bombeiros eram más…

Uma instituição cujo problema religioso não contava… Mas agora, passados vinte e dois anos, o meu modo de pensar, quanto a ela e quanto à freguesia, é bem diverso, muito diverso mesmo. Radicalmente diverso…

Em contacto com essa Associação, em especial e em contacto com a freguesia em geral, a minha convicção é de que há sentimento religioso bem radicado.

A luta da vida, esta preocupação do material, por vezes faz esquecer a vida do espírito. Mas surge uma ocasião dessas ocasiões extraordinárias, e essa Fé, essa Religiosidade, aparece com todo o seu vigor.

Foi o que se deu com a imagem de Nossa Senhora de Fátima Peregrina.

Como se dá (digamos de passagem) quando Nossa Senhora do Socorro sai na Sua Festa.

A Régua ressurge com a sua Fé e Religiosidade.

Agora, considerada a distância essa grandiosa manifestação de Fé, em honra de Nossa Senhora de Fátima, pareceu-nos maior, pareceu-nos um sonho lindo.

A Régua parecia uma grande catedral, onde quase só se rezava.

Oh! A Régua não é, não é essa freguesia que diziam. É uma freguesia talvez de pouca persistência nos seus anos. Com a facilidade que as aguas do Douro correm para o mar, assim ela deixa que se esvaia uma resolução tomada. Mas, na ocasião propícia mostra o que é…

E assim deixou-se possuir do entusiasmo comunicativo. A crença não havia perdido o domínio sobre as almas – na frase de Le Bom… Era uma enorme labareda de Fé, de amor à Virgem.
…Se se tratava de labaredas… de um incêndio, embora espiritual, os Bombeiros não podiam faltar… Eles nunca faltavam ao seu dever… A rir, marcham para os perigos como heróis que são…

Agora o incêndio era de maneira diversa. Não incendiava as casas, incendiava os corações, e por isso eles apareceram com a sua Fé, com o seu entusiasmo, de machados em punho (símbolos do seu heroísmo) eles lá estiveram toda a noite, revezando-se, aprumados, a pé firme, como firme é a sua Fé.

Não cansaram… Não hesitaram, como não hesitarão perante o perigo. Enquanto a Virgem Peregrina esteve na Régua, seguiram-na sempre a seu lado como que a protege-la, como dizendo-lhe – aqui estamos para vos defender se tanto fosse preciso…

A Imagem Peregrina e os Bombeiros não mereciam uma, pobre pena como a minha. Não mereciam um pobre artigo como o meu. Mereciam mais. Muito mais…

Mereciam ficar arquivados nos factos históricos da vila a letras de ouro. Mereciam ficar perpetuamente gravadas no granito das nossas montanhas, que na sua altura nos apontam para o que é imorredouro… para o Céu…

Eu, se fora artista, terá assim perpetuado o facto histórico da vinda de Nossa Senhora Peregrina à Régua: em uma coluna artisticamente trabalhada, alta, muito alta, terminada em agudíssima flecha, em estilo gótico, como mãos erguidas para o Céu. E, ao meio da coluna, um escudo, onde, em letras de ouro, se perpetuasse a data, escudo que seria colocado entre dois machados cruzados.

Onde melhor estariam os machados do que ali, ladeando essa data histórica, como os heróicos bombeiros, soldados aprumados, cheios de Fé, rodearam a Imagem de Nossa Senhora Peregrina?
- Colaboração de José Alfredo Almeida*, Peso da Régua, Julho de 2010.

NOTAS:
  1. Este texto foi publicado na revista do 75º Aniversário da Associação – Bodas de Diamante - publicada em 28 de Novembro de 1955.
  2. A primeira fotografia ilustrou o presente texto com a seguinte legenda: ”Guarda de honra ao andor de N. S. de Fátima, quando na sua viagem peregrina em Maio de 1954”.
  3. A segunda fotografia é da autoria do fotógrafo António Monteiro Júnior, que foi colega de outro grande fotógrafo amador, Noel de Magalhães, na Casa do Douro, e foi-nos oferecida por reguense que tem em seu coração os bombeiros da Régua.