terça-feira, 18 de maio de 2010

O CRISTO DE PAU PRETO

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O hotel dos sul-africanos, rodesianos e laurentinos endinheirados regozijava na noite morna. Luzes de cenário furavam as sombras das palmeiras de luxo que as pobres estavam no mato misturadas com os cajueiros e as imbilas. Carros espelhantes entravam e saíam em ritmo de recepção oficial. Negros de libré salamalecavam de um lado para o outro. No tecto, lustres prateados desenhavam figuras de cera. Os sussurros das vozes sugeriam futilidades e alguns risos tilintavam hipocrisias. O calor desfibrava o cacimbo e o ar flutuava de lubricidade. As fardas brancas, número um, de peitos medalhados, pareciam disfarces de corso e as piscinas espelhos polidos em que se reflectia a lua.

Uma névoa de leite descia para o Índico, um cargueiro apontava a proa para o Cabo, almadias diligenciavam marisco, a cidade adormecia embrulhada na indolência.

João deixara o Norte, muito para lá do Zambeze, os fornilhos dos atalhos de pé descalço, as minas dissimuladas na terra vermelha das picadas, o estalar das culatras das armas sem religião. Os homens que combatiam tinham coração e um Deus, mas disso se esqueciam quando os indicadores puxavam os gatilhos e as balas explodiam a morte. Agora, estava ali, embasbacado diante dos portões do hotel rico, espia da curiosidade a deambular sem mapa, pensando que, enquanto uns andavam de camuflados desbotados pelo suor, o sangue e a poeira, sujeitos a levar com um tiro ou um estilhaço nos cornos, cá em baixo, na capital provincial, os que gizavam nos mapas, em gabinetes climatizados, as operações de grande envergadura, escreviam sitrepes e perintrepes, comunicados para a Imprensa e convites para repórteres vendidos, desfrutavam as delícias do requinte colonial.

A guerra parecia-lhe uma função dividida entre fazedores de lixo e os que o recolhiam, ou, para não ser tão prosaico, um jogo de xadrez em que os peões são sempre as primeiras vítimas e os bispos, na sua obliquidade, os defensores do rei, com a rainha debaixo de olho, sem descurar os saltos dos cavalos ou a rectilínea das torres.

Sentiu uma saudade desculpável, que mais não era do que um desconforto perante o fausto que o agredia. Lembrou-se das noites de petrolina, das escâncaras do céu, do silêncio falante para lá do arame farpado, do calor gorduroso a derreter-se sob a orvalhada que crescia entre as copas do matagal, da espera do grupo que, à volta de Nangololo, pediria para que as armas não gritassem; recordou o Silva, a sua alegria para sempre perdida; o medo tão físico e manifesto que se cruzava nos olhares, misturava-se com o cheiro a urina das latrinas no canto mais afastado do polígono; a angústia dosanoiteceres - porque se o dia mostrava as formas que aquietavam os espíritos, a escuridão inquietava-os - que aumentava a espera dos sitiados. Percebeu-se necessitado de alguém que lhe falasse, um abraço sem factura, um beijo de uma boca que nunca mais visse, uns olhos que não lhe lembrassem raiva, nem loucura, nem teimosia; alguém que o entendesse sem lhe perguntar quem era, donde vinha, nada lhe impusesse nem exigisse, lhe murmurasse apenas que estava ao seu lado. Não era amor que ele pedia, só fraternidade, aquela ajuda que nunca se recusa a uns olhos aflitos, aquele preenchimento do vazio do egoísmo do mundo. Olhou as luzes embaciadas da cidade numa respiração de chafurda lacustre, os guindastes do cais do Gorjão como espectros dum filme de docas secas, um ar de desamparo que lhe exagerava a clausura.

Desceu por ruas sem passeios, ornadas de árvores, absorvendo aquele odor único de humidade e catinga, com as buganvíleas trepando pelos muros das casas e os cães despertados pelos seus passos. Tentaria um machimbombo para o levar ao centro, à avenida em que desfilara pela última vez. Depois, retrocederia para o porto e, nos botequins da rua Araújo, esperaria o amanhecer.

À porta, negros, em riso de folga, balouçavam ao ritmo do rádio que um deles segurava em cima do ombro. Não seriam macondes nem ajauas, talvez senas. Ao fundo, um cocuane, de cigarro ao contrário, avivou-lhe a memória de um maconde de cabelos brancos que lhe vendera um Cristo em pau preto: «Chi! É caro cem escudo? Arranja mais barato no Lisboa? Patrão, faz favorzinho, num diz qué caro!» Comprou e deu vinte de mata-bicho.

Negras, brancas, mulatas e algumas de ascendências asiática tinham o mesmo objectivo: a venda do corpo, a chantagem das privações dos meses a armazenar esperma, o acicate das bebidas com percentagens acertadas. A música de ritmos acelerados não deixava escutar ninguém, o suor rançoso não separava perfumes, os corpos meios desnudos alvoraçavam desejos, a promiscuidade não respeitava educações, reinava a avidez pelos que ostentavam mais dinheiro, não subsistiam fronteiras, uma desordem venial acotovelava-se e apalpava-se por entre gargalhadas e tonturas de bebidas falsificadas.

Cá fora, a balbúrdia não tinha tons nem modos, a rua era um esgoto de detritos, vómitos de misturas, escarros de bronquites relentadas, um metralhar de palavrões, «Estou farto deles! Só mandam vir e não fazem nada! Vou pró Puto e quero que se fodam todos!», uma náusea de sombras desconfiadas e gonorreias mal curadas. A bruma de algodão penetrava as roupas e adivinhava as formas. Era a neblina das noitesafricanas que manchava as ilusões dos poetas sem editores, feitos guerrilheiros à força  pelos facínoras do Terreiro do Paço. Os barcos, fundeados, simbolizavam rumos velhos traçados pelo leme de uma Pátria que, entre a liberdade e a mordaça, sempre andara fora de casa a engrandecer ou a desbaratar o seu futuro.

Acima do Zambeze ficariam as suas pegadas, diluir-se-iam as lágrimas das saudades dos seus mortos. Olharia de frente, sem medalhas, a sua história. Em Mafra haviam-lhe dito que «o Rei não manda chover, manda marchar!» Marchou. O Cristo de pau preto, numa mesa de cabeceira da casa onde nascera, seria o grito refreado da memória desses dias.
- Por M. Nogueira Borges in Lagar da Memória.
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sábado, 15 de maio de 2010

Largo do Cruzeiro

Se não são inéditas, pelo menos são desconhecidas para muitos estas fotografias de António Teixeira, que assinalam o 38º aniversário da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, comemorado em 28 de Novembro de 1918, com a realização de um exercício de fogo e salvamento, no jardim do Largo do Cruzeiro, publicadas pela prestigiada revista “Ilustração Portuguesa”.

São fotografias raras que completam uma informação escassa e sem documentos nos seus arquivos, mas que despertam a atenção para um período interessante da história dos bombeiros da Régua.

Sabe-se, contudo, que para os bombeiros da Régua, os primeiros anos da sua afirmação não foram fáceis. Conhecem-se as dificuldades para manterem em actividade um corpo de bombeiros, não pela falta de voluntários, mas sobretudo devido à falta de apoios dos poderes públicos. O dinheiro era escasso, não chegava para pagar as rendas do quartel, nem tão pouco para a reparação das bombas de incêndio. Os bombeiros tinham de comprar as suas fardas e acessórios de trabalho e, quando algum tinha de abandonar, a direcção da associação adquiria esses equipamentos por um valor simbólico. Mas, apesar das constantes adversidades que enfrentaram, esses homens persistiram em levar em frente o sonho do Comandante Manuel Maria de Magalhães e o decorrer do tempo, trouxe-lhes a coroação de todo o esforço e dedicação em vitórias e glórias. Esses generosos homens nunca deixaram de mostrar a sua determinação e de afirmar a importância de uma organização de socorro que a população reguense admirava e a que dava o seu prestimoso auxílio.

Em 28 de Novembro de 1918, a população reguense mostrava que estava ao lado dos seus bombeiros voluntários, em quem acreditavam e com quem sabia poder contar nos momentos de tragédia. Não surpreenderá ninguém que, nessa altura, estivesse uma grande multidão no Jardim do Largo do Cruzeiro, a assistir ao exercícios dos bombeiros, que se encontravam a simular o combate a um incêndio urbano, com o material que possuíam, as escadas de lanços e de ganchos e, para o tornar mais real, levaram o carro de tracção humana, carregado com as mangueiras.
A escolha de um edifício com grande volumetria implicava maior abundância de pessoal e de material, para poder efectuar uma demonstração da capacidade operacional dos bombeiros de Peso da Régua. As escadas proporcionavam exercícios ritmados, orientados por comandos de voz ou por silvos de apito. Era momento privilegiado para evidenciar a destreza e a disciplina de execução, dando a conhecer à população a preparação dos seus homens e despertando a confiança que neles podia depositar. Aliás, era esse o objectivo pensado pelo comandante Afonso Soares.

Os bombeiros da Régua começavam a ter fama de corajosos. Desde a fundação da associação que homens competentes, inteligentes e dedicados à causa humanitária ambicionavam torná-la uma organização prestigiada, capaz de cumprir os seus objectivos de socorro e protecção, propostos nos primeiros estatutos.

Daí que a revista “Ilustração Portuguesa” tenha feito a notícia do evento em tom elogioso para os bombeiros voluntários da Régua: “É uma das melhores organizações de província a dos bombeiros voluntários da Régua, a cuja corporação pertencem indivíduos de todas as classes que só têm uma aspiração – arriscarem a sua vida para salvarem a alheia.

E disto tem dado inúmeras provas em muitos sinistros que têm acontecido, merecendo louvores de toda a população da vila, que lhes tributa admiração.”

Estas imagens são ainda um documento valioso que nos mostra o ambiente circundante de um lugar público da cidade, as memórias do Jardim do Largo Cruzeiro que, apesar das alterações profundas que fizeram no seu desenho, permanece como uma referência histórica e sentimental na paisagem urbana.

Elas testemunham também o carácter público do lugar de lazer, passeio e convívio de crianças e jovens, que deveria encher de gente nos dias de celebração religiosa, na Capela do Senhor do Cruzeiro, situada nas suas imediações.

O jardim do Largo Cruzeiro não passava de um modesto espaço, despido de adornos, povoado de pequenas árvores e servido de iluminação eléctrica. No conjunto, não aparece a Capela do Senhor do Cruzeiro, mas sobressai um edifício grande, austero, de fachada branca, varanda e janelas amplas. Durante muitos anos, funcionou nesse prédio um estabelecimento escolar para rapazes, o Colégio de Santa Teresinha. Até há pouco tempo, esteve aberto um moderno salão de chá, em estilo sóbrio, que conquistou fama e clientela nas últimas gerações de reguenses, por ser um espaço que proporcionava inesperados encontros, amores eternos e outros acontecimentos felizes e inesquecíveis.

Mas, o curioso da história é que o edifício que avistamos ao fundo do Jardim do Largo do Cruzeiro, que os bombeiros, em 1918, escolheram para fazer um exercício de demonstração das suas perícias e capacidades de combate ao fogo, acabou por ser destruído, em 2008, por um violento incêndio que deflagrou pela madrugada e os bombeiros não conseguiram dominar, ficando reduzido a cinzas e ruínas.
Em crónica intitulada “A flor (do Adro) desaparecida”, Manuel Igreja expressa as emoções que lhe causou a visão do monte de ruínas lavradas pelas labaredas. É ocasião de relermos as palavras conjugadas a quente:

“Numa destas últimas madrugadas de antes do Natal, a Régua foi sobressaltada com mais um incêndio no seu centro histórico. A sirene dos seus mais que centenários bombeiros voluntários tocou, porque o edifício do antigo colégio de Santa Teresinha tinha pegado fogo. Bem no âmago do seu centro mais antigo em termos de Régua propriamente dita, que Peso é lá encima, no prédio onde estavam instaladas as sedes partidárias e mais um dos mais emblemáticos e mais belos cafés da cidade, a celebre “Flor do Adro”, o lume fazia as suas, assumindo a natureza que lhe é própria, espalhando a destruição que lhe compete em casos semelhantes.

Quando me deparei, de manhã cedo, com o cenário dantesco e desolador, tive pena, senti consternação, e senti um nó na garganta. No tempo em que cheguei à Régua em termos definitivos, o café que está agora destruído estava a dar os seus primeiros passos, depois de instalado e decorado pelo senhor Germano, reguense já desaparecido, e um verdadeiro artista na arte da decoração. Aquele estabelecimento comercial era, vinte e tal anos depois de ter sido concebido, uma verdadeira ode ao bom gosto. O proprietário que poucos anos depois se lhe seguiu, teve igualmente o bom gosto e o bom senso de manter a decoração, e isso é igualmente de louvar. Fosse-se cliente ou frequentador do estabelecimento, o papel que este café teve na cidade é inegável, pois sendo um local público, à semelhança de qualquer outro, era, a seu modo, uma sala de visitas da Régua.

(…)

Mais parece que deu o tranglomango à Régua no que concerne às suas principais ruas, onde não faltam prédios em ruínas, e onde os dedos de uma mão não chegam, para já, para se contar aqueles que o fogo devorou (…). Começa a parecer-se um apetecível pasto para as chamas a Régua que os antigos edificaram.

(…)

Não podemos deixar de sentir que a Régua está a perder lentamente as flores que compõem o ramo da sua história. Desapareceu a “Flor do Adro”, mas essa foi a última. Evitar que a outras flores em forma de edificações aconteça o mesmo, é seguramente impossível. Esperemos contudo que das cinzas, como da Fénix mitológica, renasçam novas e vigorosas flores (…)”

A Régua, no início deste novo século, é uma cidade jovem para se descobrir nos encantos da paisagem dos socalcos das vinhas que a envolvem. Para a conhecer melhor é preciso caminhar pelas ruas principais até à zona alta, olhar as águas serenas do rio navegado por barcos turísticos e os imaginários rabelos, sentir os cheiros da flor das laranjeiras, da esteva e do rosmaninho que, nas vindimas, se misturam com o do mosto dos vinhos, ficar, enfim, até ao entardecer, no café do novo cais fluvial, nos dias cheios de luz e de silêncios que caem sobre o Vale Abraão. Em pensamento, adivinhar os contrastes entre o tradicional e o moderno, o mutável e o intemporal.

A cidade, com origens pombalinas, nasceu e cresceu com a fama e os negócios dos seus vinhos e o trabalho e o amor dos vareiros de Ovar e dos galegos, antepassados povoadores, que lhe deram identidade própria, como ainda nos lembra uma velha cantiga dos tempos dos bisavós: “A Régua era bonita/Se não tivesse dois erros/Passeada de vareiros/Ladrilhada de galegos”. Sem razão, estes erros são antes virtudes dos povos a que os reguenses devem estar agradecidos.
Acredito que não falta tempo para ainda passar pelo jardim do Largo do Cruzeiro. Com calma e tranquilidade, goze a presença dos testemunhos vivos do velho casario caiado de branco, com os beirais a servirem para as andorinhas construírem os ninhos, que faz daquele jardim um universo habitável e poético e, perto da estátua erguida em homenagem ao comandante Afonso Soares, insigne reguense que escreveu a única história da cidade, ouça contar mais evocações do passado dos gloriosos bombeiros da Régua.
- Peso da Régua, Maio de 2010, J. A. Almeida.