A arte de contar do escritor, do médico-Amigo, do cidadão do Douro e da literatura portuguesa contemporânea Camilo de Araújo Correia:
Crónica - O cimo da Régua
Hoje em dia, já não se usa muito entre nós a designação toponímica de Cimo da Régua.
Como foi com ela que me criei, ainda hoje me sabe bem ouvi-la ou vê-la escrita.
O Cimo da Régua ia, mais ou menos, do Valente Novo à Casa da Fortuna, de um lado. Do outro, estendia-se da Valente Velho às lojas de ferragens do João Guerra e Domingos Figueiredo. Perpendicularmente, na Rua Serpa Pinto, chegava à loja do Antão, frente a frente com a Associação Comercial.
Pelo seu intenso e variado comércio, o Cimo da Régua era, pode dizer-se, a nossa "Baixa".
Toda a gente se via, toda a gente comprava isto e aquilo no Cimo da Régua.
O ponto nevrálgico desta nossa "Baixa" era a loja do Zé Pinto, onde se podia comprar do melhor arroz ao melhor café, do melhor papel de carta à melhor escova. Também se podiam engraixar os sapatos em cadeirão episcopal montado num pequeno estrado. O "Vintecinco", mesmo com um grãozinho na asa, engraixava a preceito, dava as novidades e vendia as cautelas delicadamente. Era na loja do Zé Pinto que se encontravam os figurões da Régua para longas cigarradas e longas conversas, a que não faltava uma pontinha de má língua local e nacional. O Zé Pinto, dentro do balcão, saía da conversa para atender os fregueses. Mesmo aos que apertava a mão com efusiva fraternidade, não deixava de apertar os preços do que viessem comprar. Implacável até ao tostão !
Fora da loja o Zé Pinto era a pessoa mais magnânima do mundo. Num passeio de amigos gostava de pagar tudo a toda a gente.
Muito perto do Zé Pinto, ficava o Quartel dos Bombeiros. Aí se reuniam estudantes, empregados e artífices. Além de mesas de jogo, havia um bilhar e uma grande estante de bons livros. As instalações eram de tal maneira exíguas que os carros se viam e desejavam para sair e entrar. Quando tocava o fogo, toda a gente que andasse por ali se juntava para assistir às manobras. O globo de entrada era tão baixo que o Justino Nogueira, garboso porta-estandarte, o partiu algumas vezes com a ponta do mastro.
- Ó Justino! Ó Justino... agacha-te! - avisavam os companheiros.
Junto dos Bombeiros ficava a oficina do João Latas. A oficina era de latoaria, mas tinha uns prateleirões até ao teto, onde adormeciam os mais variados artigos de ferragem.
Pelo seu temperamento e pela sua longa história de estranhas atitudes, o João Latas era, como então se dizia, um maduro. Foi das primeiras pessoas da Régua a lidar com automóveis, dando pelas escabrosas estradas de então grandes passeios com as pessoas gradas da terra. Chegavam a ir à Galiza o que, na altura, era longe e arriscado como ir ao fim do mundo. São muitas e pitorescas as aventuras que se contavam do Joâo Latas ao volante.
De tão maduro que era, tanto podia responder como não corresponder aos cumprimentos de quem lhe entrasse na oficina. Também podia ter toda ou nenhuma paciência com os fregueses:
- Boa tarde, senhor João!
- ... ...
- Tem desandadores assim, assim...?
- Tenho... tenho... Faltam-me ele desandadores desses! Olhe, estão lá em cima a ouvi-lo...
E apontava uma prateleira lá do alto.
- Faça o favor de me dar um...
- Disso está você bem livre! Tenho o escadote lá para trás... não estou para o ir buscar - respondia, continuando o tam-tam na lata que estava a afeiçoar.
E o freguês lá ia embora a resmungar, lamentando não ter ido ao João Latas em melhores dias...
....
- Bom dia, senhor João!
- Bom dia, ora viva o meu amigo! Que o traz por cá?
- Ando, desde o Porto, à procura de uma navalha espanhola, de duas lâminas e...
- Tenho ainda umas ou duas... - cortava o João Latas.
- Quero uma.
- Se tiver dinheiro para a levar!
- Ó senhor João... então não hei-de ter!?
- Pode não ter... pode não ter... eu lhe digo... estas navalhas são de antes da guerra... feitas as contas ao preço actual...
O João Latas caía, então, numa folha de costaneira, a fazer contas sobre contas, até afirmar, peremptório:
- A navalha está-lhe em 200$00 e pico.
- Ó senhor João... mas isso é uma fortuna!
- É pegar ou largar !
O freguês largava, com o fogo no rabo, sem a desejada navalha e sem compreender tamanho desconchavo.
O João Latas era também um caso único a mandar as contas aos seus fregueses. Tanto as mandava logo, com a solda ainda quente, como depois de muita insistência de quem lhas pedia.
Uma vez, mandou à Senhora D. Branca Martinho, por quem, como toda a gente, tinha o maior respeito, a seguinte conta:
- Um fundo novo numa cafeteira de litro - grátis.
- Um pingo numa panela - grátis.
- Soldar a asa de um funil - grátis.
- Mão nova num regador velho - grátis.
- Total: 4 serviços grátis a 2$50 - 10$00.
...Aquele Cimo da Régua... ... ...
- Por Camilo de Araújo Correia - Villa Regula de Março de 1999.
Crónica - o Douro de anteontem
O nosso rio era caudaloso no Inverno e sereno do findar da Primavera ao findar do Outono. Sempre alegre e corredio, o Douro era um potro à solta entre as margens. Vieram depois as barragens meter-lhe o freio e o bridão. Fizeram dele um amestrado e pachorrento cavalo de circo.
Muito lucramos com esta sucessão de enormes espelhos de água, permitindo um desporto e um turismo impensáveis no lombo de um potro irrequieto. Mas também muito perdemos...
O estrujão, o sável e a lampreia, de tanto marrarem contra o cimento das barragens, acabaram por desistir de procurar para a desova os rios ainda abertos às suas imperiosas condições de procriação.
Entre nós conhecido por solho, o estrujão foi-se extinguindo. Dele ficou apenas um dito, de que muita gente já não saberá a origem. Dormir como um solho quer dizer dormir profunda e serenamente. A imagem vem do tempo em que esses grandes peixes do nosso rio se deixavam levar pela corrente, muito quietos, como se dormissem à flor da água.
As lampreias também deixaram de se vender pelas ruas da Régua, oferecidas em regadores, ainda vivas, num desespero de pouca água e pouco espaço. Meu pai, médico de muitas caridades, recebia em abundância os mimos de cada época do ano. As lampreias eram, por vezes, tantas que era preciso largá-las no tanque do quintal, para lhes dar vazão. Agarrá-las era depois um alvoroço de gritinhos e fugas precipitadas.
O sável era ainda mais abundante que a lampreia. Por toda a Régua passavam homens e mulheres a apregoá-lo com dois ou três enfiados num vime. O saboroso peixe chegava a todas as casas, à boca do rico e do pobre, frito ou de escabeche.
O Dr. Júlio Vilela falava, a lamber o beiço, de um sável na telha arranjado pelos homens do rio. E descrevia:
- O sável, bem temperado com azeite, alho, pimenta e loureiro, entala-se entre duas telhas. Depois, é só ir virando sobre uma fogueirinha de lenha. Além de ficar delicioso, a espinha desembainha-se como uma espada.
O Dr. Júlio e os seus petiscos...
Um ano, o sável foi tão abundante que chegou a exaltar o homem mais sereno da Régua - José Afonso de Oliveira Soares.
Pintor e poeta de grande mérito, veio a merecer um busto no jardinzinho bem perto da casa onde morou.
Diz, assim, o pedestal:
Talento e bondade
Flor de simpatia
Que nos merecia
Esta saudade.
Também mereceu da Câmara Municipal uma segunda edição da sua História da Vila e Concelho do Peso da Régua.
Pois, um dia, o nosso sereníssimo Afonso Soares, cheio de sável até ao simpático bigode, largou de casa a esbracejar, ao ver que a esposa se preparava para lhe servir ao almoço, mais uma vez, umas postas de sável frito.
Foi do Cruzeiro para os lados da estação a remoer vinganças num grande nuvem de tabaco. Entrou na Pensão Borges e foi sentar-se à mesa mais recolhida. Logo se aproximou, todo mesureiro, o Adelino Gomes.
- Que temos para o almoço, Adelino?
- Para o senhor Soares arranjam-se umas postinhas de sável...
Ao virar do segundo para o terceiro milénio o Douro de anteontem acordou estremunhado do sono telúrico. Tomou o freio nos dentes, soltou-se da corrente e largou à desfilada pelas margens, galgando-as até onde lhe chegou o fôlego. Por quatro vezes, casas e vinhedos lhe sofreram a fúria. A Princesa do Douro ficou irreconhecível por uns dias. Mas, ao sol de Março pôde mirar-se ao espelho do seu rio, outra vez vaidosa e conformada.
- Camilo de Araújo Correia, Villa Regula de Março de 2001.
Crónica - O Pecador
O senhor Valentim era um homem triste e de poucas falas. Dizia-se, até, que fôra para aquela aldeia remoer grandes pecados da cidade.
Passava o ano em redor da vinha e da horta que granjeava com exemplar esmero. As árvores e o cão, que sempre tinha, eram a sua família e o seu único convívio.
Quando alguém o abordava ou quando aparecia na venda a fazer compras, era agradável de falas e de modos. Mas parecia sempre morto por regressar à sua tristeza, ao seu pequeno mundo de silêncio.
Ninguém lhe conheceu mulher legítima ou devaneio de ocasião. Eu próprio, quando o visitei na única doença que teve, não vi por toda a casa retrato ou sinal de família desfeita. Chamou-me a atenção uma litogravura de Nossa Senhora do Socorro colada na parede, como um selo, por cima da barra da cama.
Depois de o auscultar, olhei para a gravura e disse-lhe, sorrindo:
- Não o fazia religioso, senhor Valentim...
- E não sou. Essa gravura que aí vê comprei-a no ano em que resolvi não voltar à procissão do Socorro.
- Mas porquê? Fazia-lhe bem ir à festa, sempre se distraia um pouco...
- Eu sou enjeitado, senhor doutor; e sempre me senti enjeitado por onde andei, até me fixar aqui.
- Mas... as pessoas parecem estimá-lo...
- Estimam, sim... mas foi Nossa Senhora do Socorro que me fez sentir calor humano pela primeira vez na vida.
- Mais uma razão para não deixar de a visitar! Dizem-me que nem à Régua vai...
- Ia todos os anos... mas, a certa altura, senti que andava a pecar...
- A pecar?!
- Sim... a pecar. O senhor doutor não compreende... É preciso ser enjeitado para sentir toda a bondade e beleza de Nossa Senhora do Socorro. Muitos anos a olhei, da beira do passeio, como se visse a mãe que nunca tive. Depois... depois dei comigo a olhá-la como se ela fosse a mulher que nunca reparou em mim...
Viveu ainda muitos anos. Era um homem só, com a sua vinha, o seu cão e o seu pecado.
- Camilo de Araújo Correia - Extraído da brochura das festas de Nossa Senhora do Socorro de Agosto de 1982.
Camilo de Araújo Correia - Filho de peixe sabe nadar
Camilo de Araújo Correia, filho do escritor João de Araújo Correia, nasceu no Porto em 1925, mas vive na Régua desde os três anos. Aí fez a instrução primária na escola oficial e o 1º ciclo do liceu no extinto Colégio Reguense. Completou o curso nos liceus de Lamego e Vila Real. Frequentou depois a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, onde viria a formar-se em 1953.Enquanto estudante de Coimbra, viveu sempre em república (o Palácio da Loucura) e despertou para a literatura, colaborando nos jornais académicos da época - A via latina, A Briosa e o Pagode. Em 1961 foi mobilizado para Moçambique, integrado como anestesista no Hospital Militar 338, destinado a Porto Amélia. Ajudou a formar e a dinamizar o “Grupo Cénico de Porto Amélia”. Além de ter sido ensaiador, escreveu para um dos espectáculos daquele grupo a revista Atracou o "Troça Nova". Mantém no Arrais uma coluna semanal, desde 1978. Publicou entre outros: Histórias na Palma da Mão; Coimbra Minha; Livro de Andanças; Na Rota do Sal; Médicos, Doentes e Outras Gentes; Coimbra, Outra Vez. - Entrevista completa em:
http://www.trasosmontes.com/eitofora/numero11/entrevista2.html
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