sábado, 3 de abril de 2010

No Centenário da República - Um fogo esquecido no Asilo José Vasques

O incêndio que deflagrou no Asilo José Vasques Osório, uma casa de beneficência às crianças pobres e desprotegidas, na madrugada do dia 14 de Fevereiro de 1919, é um dos que merece especial relevo na história dos bombeiros da Régua, pelo heroísmo e a abnegação revelada pelos seus homens.

Este fogo esquecido está apagado nas memórias das pessoas. A Régua ainda não fez a história do acontecimento que lhe deu origem. Pouco se sabe e, esse pouco, encontra-se apenas relatado nas notícias dos jornais da época e nas evocações dos bombeiros.

A sua origem do fogo no Asilo José Vasques Osório está relacionada com um acontecimento que marcou a vida política nacional após o derrube da Monarquia. Depois de 5 de Outubro de 1910, os monárquicos procuraram restaurar a Monarquia, através de movimentos de insurreição, em incursões monárquicas, para devolverem o trono ao Rei D. Manuel.

Na última incursão monárquica, o capitão Paiva Couceiro declarou a restauração da Monarquia, no dia 19 de Janeiro de 1919, na cidade do Porto. Aí nomeou um governo provisório que, durante 25 dias, vai administrar o norte do país, num regime efémero conhecido por “Monarquia do Norte” ou como os republicanos lhe chamavam o “Reino da Traulitânia”.

O triunfo vitorioso das forças monárquicas – chamados de trauliteiros ou talassas - depressa se alargou às principais cidades e vilas do norte do país. Em quase todas derrubam o regime republicano, pela força das armas. Num interessante estudo dessa época, a historiadora Helena Moreira da Silva, dá conta que “em várias localidades esse acontecimento é assinalado com o hastear de bandeiras azuis e brancas nos mastros dos edifícios públicos, o Hino da Carta, o repicar dos sinos, procissões e com o enceramento de serviços públicos…As populações davam largas ao seu contentamento, rebentando foguetes e prendendo democratas republicanos da terra. Convictos de que com a Monarquia seria possível ter novamente a paz e prosperidade…”

A vila Régua foi uma das tomadas pelas tropas monárquicas. Conseguiram sem grande oposição mas com atrocidades, perseguições e detenções a algumas pessoas partidárias de regime republicano, restaurar a Monarquia, ao içarem nos mastros do edifício dos paços do concelho, uma bandeira azul e branca.
Os excessos dos trauliteiros contra algumas pessoas são conhecidos. Quem quiser saber mais pode ler, nos jornais da época, um depoimento impressionante do Sr. Joaquim Pinto Barbosa, preso nos arredores da Régua e barbaramente agredido. Na Régua, para garantir o poder, mantiveram um improvisado quartel-general numas das dependências do Asilo José Vasques Osório, por ficar no centro da vila e perto da estação dos caminhos-de-ferro.

Esta situação manteve-se por alguns dias, até o legítimo governo da República reagir e mandar esmagar este movimento monárquico através de uma grande ofensiva militar para restabelecer a ordem pública nas cidades e nas vilas dominadas pelos monárquicos

Na vila da Régua, as operações de combate as tropas monárquicas aconteceram durante o dia 13 de Fevereiro de 1919 e prolongaram-se pela madrugada do dia seguinte.

A população reguense passou momentos de inquietude e de alarme. Os revoltosos não se renderam e dificultaram, com a destruição do tabuleiro da ponte rodoviária, o acesso de Lamego à Régua. Travou-se, então, um combate com um forte tiroteio de artilharia. As tropas monárquicas encontravam-se entrincheiradas no Asilo José Vasques Osório. Na margem esquerda do rio, estavam colocados os militares da 2ª Divisão do Exército, comandados pelo General Abel Hipólito, para atacarem e derrotarem os revoltosos. Pela madrugada, estes davam-se por vencidos e debandaram para a estação para fugirem num comboio que se encontrava da linha do Corgo, em direcção a Vila Real.

Mas antes, descontrolados com a situação, mostravam a sua face mais violenta e trágica, ao cometerem atrocidades. Assim, para que as suas armas de artilharia e granadas não caíssem nas mãos dos republicanos, lançavam violento fogo ao Asilo e na estação do caminho-de-ferro, provocavam danos no edifício e a destruição dos

O fogo destruiu um edifício simbólico da vila, que havia sido doado por um ilustre benemérito, para acolhimento e educação de crianças pobres e abandonadas. Os seus prejuízos materiais foram incalculáveis A tragédia só não foi maior porque os bombeiros saíram aos primeiros sinais de incêndio, badalados pelo velho o sino da Capela do Cruzeiro. Não vacilaram nem temeram com medo de serem atingidos no combate das tropas, a única preocupação foi de combater o fogo, com zelo e coragem, impedindo as chamas de atingir o material de guerra.

Em 1919, os bombeiros da Régua entravam na história de um conturbado acontecimento da primeira república, que sem se envolverem como protagonistas activos, acabavam como anónimos heróis. Ignorando a realidade histórica associada a este fogo os bombeiros, como uma organização humanitária e da paz, souberam cumprir no melhor profissionalismo a sua missão de socorro e protecção de vidas e bens.
(Clique nas imagens acima para ampliar)

Evidenciando a valentia dos briosos bombeiros, Gaspar da Silva Monteiro, um dos fundadores da Associação, lembrava numa carta, datada de 20 de Agosto de 1928, dirigida ao Presidente do Ministério, o acontecimento assim:

“Na noite de 13 para 14 de Fevereiro de 1919, quando as forças realistas, que operava neste sítios, abandonaram o grande edifício do Asilo José Vasques Osório, onde tinham estabelecido quartel e a cujas dependências puseram fogo, a corporação dos bombeiros da Régua, não olhando aos perigos que corria de ser alcançada pelas balas trocadas entre essas tropas e aquelas que, lado oposto ao rio, se estavam combatendo, acorreu destemidamente a prestar serviços, evitando que fosse totalmente queimado aquele estabelecimento de caridade que dava abrigo, pão e ensino a dezenas de crianças pobres.”

Quando no centenário da implantação da República se evoca o passado dos bombeiros da Régua perspectiva-se o futuro, com a esperança que, pelos valores da igualdade, solidariedade e fraternidade, se continue a promover uma sociedade mais justa

Na verdade, o Asilo José Vasques Osório volta a renascer das cinzas daquele fogo, devido à generosidade humana, que acreditou sempre nesses ideais, para que continuasse a servir até aos nossos dias, como uma “Casa da Criança”.
- Peso da Régua, Abril de 2010, J. A. Almeida.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

SELVA EM PAZ - Capítulos III e IV

(Clique na imagem para ampliar. Imagem recolhida da net)


Capítulo III - Distinguem-se as feições dos homens ao redor do pequeno fogo em que se cozem as batatas para acompanhar as sardinhas de conserva. A lua vai nascendo encantada, mas medrosa. A vegetação é uma copa interminável onde os restos do sol se espalham como pinceladas de sangue de um artista desesperado, cinzas de um incêndio da imortalidade dos tempos. O escurecer, mais do que triste, é embriagador, algo insidioso, a proclama dum sufoco qual mortalha de uma inocência, um peso de agonia. De quando em quando, relâmpagos riscam o céu, grafites rápidos e secos descobrindo a prenhez das nuvens esbranquiçadas, os trovões ribombam quais monstros pré-históricos; é um tolher de espanto, um esmagamento que nos pendura nos fios da timidez. Sobe até o cimo da achada uma viração fria que revolve a folhagem e o pó como se aquela nascesse debaixo das nossas botas. Há quem sobreponha aos dolmens as esverdeadas camisolas de gola alta, se enrole apressadamente aos mosquiteiros e aos sacos de dormir. Há uma soledade de túmulo. Ouvem-se algumas pieiras de brônquios tabaqueiros ou debilitados pelo relento. As estrelas, pirilampos minúsculos, chegam aos poucos, a justificar a noite, mas os prenúncios de chuva não se concretizam. Para sul, uma queimada enorme elevasse num triunfo vermelho, aparentemente descontrolada, a toada das cigarras espalha lembranças de uma inocência perdida.

Come-se para enganar, um mastigar silencioso, uma formalidade obrigatória. Na contraluz, as gargantas têm os movimentos dos engolires contrafeitos. Há assobios, por entre cigarros, no canto do alpendre; olhares de vidro reflectidos nas brasas, esperando que elas se extingam; um portátil sintonizado no emissor regional do Rádio Clube de Moçambique a responder aos discos pedidos. Então ele, o Alferes desta história, sem nada para dizer ou fingir alentos, olha para a patina do horizonte onde umas nuvens metalizadas dão uma miragem de água; pergunta por que é o mundo assim, vigiando-se o que pertence a todos, como se houvesse feudos de teimosias, ganâncias de posses, disputas de glórias feitas razões de sobrevivência; pensa que todas as guerras são forjadas por eunucos esquizofrênicos, ditadores assexuados, estupores purulentos; e nós – nós que obedecemos - balimos, feitos carneiros do pasto, mas não gritamos como gente nem desfazemos essa escória do mando para vivermos livres e em paz.

Um cacimbo húmido começa a envolver a terra, uma espécie de moinha leitosa que embebe os camuflados. O pessoal está sujo, adormece com as côdeas, o óleo dos suores e o chumbo do cansaço. Ouvem-se, distantes, tambores de batuque: talvez se encomendem aos cazumbiris, se comemore a desfloração de uma cafusa, se implore Maomé numa morte desconsolada ou se espantem os espíritos de doença maligna. O piar ávido de um milhano lacera a noite e um calafrio estremece os corpos.

Enquanto os homens já dormem, ele sonha com um mundo onde o amor não seja uma paga mas uma dádiva, os barulhos das lutas sejam substituídos pelos esvoaçar das aves entre palmeiras, todos os homens caminhem de caras levantadas sem receios de serem cuspidos, as vinganças e as perseguições não existam nem nos corações nem nos dicionários. A lua, de um ouro de poesia, de paz e de reconciliação, beija-lhe o rosto.

Recosta-se no assento do Unimog. Fuma LM. Não tem sono. Manda acomodar os plantões. Ele substituí-los-á na atalaia. Agarra-se ao volante e imagina-o leme de avião. Puxa-o para si. A viatura levanta como um condor. Voa silenciosa sobre o mato, de bico-motor apontado à fita de zinco tangente à Terra, até pousar, com a leveza de uma pena, num quintal onde uma Mãe, de preto vestida, espera de braços e sorriso abertos.

Capítulo IV - Andávamos há cinco horas. O calor apertava, criando riachos aquosos. Dois furos, quase seguidos, arreliaram-nos a paciência. Os solavancos na picada obrigavam-nos a pulos marsupiais. Tínhamos que estar no acampamento antes da lua nascer. Lá arranjaríamos um pisteiro. Um javali destrambelhado obrigou-nos a nova paragem. Saltei da caixa do Land- Rover, levei a carabina à cara e apontei. O bicho, estacado, contemplou-me. Estremeci. Aquele deu meia volta e desatou à desfilada.

- Então, não atiraste? – gritou o Zulmiro.

- O tipo não deixou... – gaguejo.

Continuamos aos saltos. Ergui-me, oferecendo-me ao entardecer. De quando em vez, um preto desmontava da sua ginga para saudar. «Cuidado, agarrem-se!», gritou o condutor. Finquei-me, e passou-se o pontão só com um estrago: a garrafa termos do café partiu-se. Um bando de macacos guinchou sobre as nossas cabeças, pendurando-se nos braços das mangueiras.

Chegados ao acampamento, falámos e bebemos cerveja com um caçador profissional: baixote, entroncado, tez de chocolate, abundante calvície, falares e modos desembaraçados. Emprestou-nos um pneu sobresselente, agradecemos o acolhimento, mas, não nos arranjou um piloto.

A noite germinava. Apetecia ser filho daquele mundo e rebolar no capim aljofarado, chamar a bicharada e levantar com ela um salmo de glorificação. O condutor bateu com a mão na porta: «Leopardo!» Dois olhos amarelos, como anéis de médico, estavam hipnotizados. Tiraram-me a arma das mãos; nem me mexi, narcotizado por aquele olhar que, pareceu-me, no súbito, ter a frieza do hábito e o ímpeto do ódio. Um uivo cortante, um arrepio de neve, os pêlos eriçados, um sangue de pânico. O tiro falhara.

- O gajo levou chumbo - julgou Zulmiro, caçador fanático quando as contabilidades do algodão lhe davam uma folga.

Continuámos a marcha e, deixando a picada, virámos à esquerda por um trilho que rasgava o mato denso a roçar o Land-Rover. Alguns ramos, mais inclinados, obrigavam nos a baixar as cabeças e os abanões eram maiores.

Ligou-se o farolim à bateria e apagaram-se os faróis.

- Agora nada de atirar ao calha! – advertiu o Chefe para quem uma caçada era um memória brasonada.

Procurei posição certa, juntamente com o Justino, de férias administrativas, e começamos a acompanhar, de um lado para o outro, o jacto do holofote. Ansiávamos a planície, «lá a caça é maningue!». A vegetação emaranhada não dava grandes esperanças. Ao bater cavo duma mão no tecto, a viatura estacou. O tiro partiu seco, tal uma chicotada, e o eco enrolou-se na lonjura. O Justino saltou e, guiado pelo foco e pelos gemidos de animal ferido, procurou, procurou, até, acabrunhado, regressar à caixa do jeep.

- Começo a não gostar desta merda! – verrinou o contabilista. - Primeiro um javali porque ele não deixou, depois um leopardo, e logo um LEOPARDO, a fazer pouco; agora um chango que vai à vida... Grande gaita... Mais valia ter vindo sozinho...

Ninguém lhe respondeu. Como um comboio saído de um túnel, entrámos na savana. Esmagadora! O céu - um arco majestoso tecido por nuvens de algodão em rama, tapando e destapando as estrelas – dava-nos a percepção de pequenez indescritível numa visão sem tamanho. A partir daqui já nada mais interessava. Podia o Zulmiro lançar os seus protestos à azelhice dos seus acompanhantes, matarem-se, ou não, alguns bravios, cobiçar troféus para demonstração futura. Com aquele arrebatamento da terra feito de odores húmidos e ferventes de vida, importava venerar a criação, deixar que a noite soltasse as suas insídias, mostrasse os seus duendes e aplacasse os impulsos humanos.

O chango, a quem, desta vez, a sorte não sorrira, em aflitivos estremeções, tentou erguer-se, remirou os olhos enevoados e tombou, finalmente, vencido. O ventre só deixou de latejar quando o corpo retezou. Senti um incómodo de traição, um remorso de desforço, uma inutilidade de ofensa. Içamo-lo para a caixa da viatura. Descarreguei a arma e segurei-a debaixo do seu corpo. Acenderam uma fogueira para corrigir hipotéticos erros de orientação. Sentei-me, encostado ao animal, e puxei de um cigarro. O cacimbo gelava-me os ossos. Vesti uma camisola grossa. O paludismo viria mais tarde e nem as pastilhas LM me salvariam da sezão. Deixei-me ir, envolvido por aquele assombro, pelo inexplicável do universo feito sobrenaturalidade que inutiliza as heresias. Aconcheguei-me mais ao chango até sentir o calor da sua penugem, o seu cheiro selvático de esterco e capim colado ao dorso, a quentura ainda recente do seu sangue; entorpecido por este apoio, em contraste com o rocio da madrugada, adormeci. Não sei quanto tempo assim estive. Acordei com os berros do Zulmiro por terem perdido outra pantera. Quando me soergui, a lua tinha uma turvação violácea e os olhos do chango continuavam abertos feitos dois espantos a perguntarem-me: «Porquê?»

Algumas queimadas dispersas pareciam destroços fumegantes de um exército vencido.
Fim.
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue

quarta-feira, 31 de março de 2010

Homenagem a João Pereira - Um reguense como nós

Se há reguenses do nosso tempo que merecem ser homenageados, um deles, é o senhor João Pereira.

Em boa hora, a Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua tomou a decisão de evocar a sua memória. A ideia é de homenageá-lo como um seu distinto provedor e como um insigne cidadão reguense com méritos reconhecidos na vida pública.

Aplaudo quem decidiu esta iniciativa. Sensibiliza-me este reconhecimento que lhe vai ser feito. Como seu amigo sinto-me honrado por me deixarem associar à sua homenagem. Faço-o com todo o gosto e, não apenas num gesto de amizade, mas pelo que represento como presidente da direcção dos bombeiros da Régua.

O senhor João Pereira, como nós, fez parte dos órgãos sociais da briosa associação humanitária. Exerceu vários cargos directivos com relevo para o lugar de vice-presidente da direcção. Em 1967/68 fez parte da Direcção liderada pelo Dr. José Viera de Castro e em 1984/87 integrou Direcção presidida pelo Dr. José Luís Soveral Andrade. Em qualquer uma dessas passagens pelo quartel Delfim Ferreira ele trabalhou e deixou obra feita para o engrandecimento dos Soldados da Paz.

Conheci o senhor João Pereira, na idade de homem maduro, nas bancadas do velho Campo Artur Vasques Osório, a assistir a um jogo de futebol do Sport Clube da Régua. Segundo me contaram, nesse ano, pertencia à sua direcção. Para mim, ainda só era o competente chefe da Estação dos Correios, onde o meu pai trabalhava. Nessa primeira vez, testemunhei o seu entusiasmo pelo desporto e pelas cores da equipa da nossa terra. A partir daí, fiquei a admirá-lo pela sua amabilidade e simpatia.
Não sei dizer ao certo, mas tempos depois, encontrei-o nos estúdios da antiga Rádio Alto-Douro, a fazer brilhantes relatos e comentários de jogos de futebol. Sentia-se que havia conhecimento e paixão nessa matéria desportiva, e era um comunicador simpático e entusiasmante com os ouvintes. Em Agosto, muito antes de começarem as grandiosas Festas do Socorro habituei-me a vê-lo nas comissões que organizavam as majestosas procissões e os brilhantes arraiais do rio. Em fase mais recente, lembro-me de seguir a sua actividade cívica e política como autarca do nosso concelho. Chegou por mérito próprio ao executivo da Autarquia. Competente como era, como seu vereador, dirigiu pelouros de importância e de responsabilidade. Quis o destino que pertencêssemos, representando partidos diferentes, à mesma vereação da Câmara Municipal. Conheci-lhe, assim, de perto as suas ideias e os seus sonhos que procurava concretizar: fazer as obras necessárias para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Se todos os vereadores tivessem, como ele tinha, esta visão…!

O senhor João Pereira viveu sempre para si, sua família e para a Régua. É como quem diz, ele pertenceu a quase todas as principais instituições sociais, culturais e desportivas da Régua. Devem ser mais, mas pelo menos esteve de corpo e alma na Santa Casa Misericórdia, Associação Humanitária dos Bombeiros, Clube Caça e Pesca do Alto-Douro, Casa do Benfica e o Sport Clube da Régua. Com uma paixão pela Régua, igual à sua, deve ser difícil encontra-se, cá no nosso meio, mais alguém.

O Senhor João Pereira, em tudo o que fez não precisou de ostentar superioridades para com o seu semelhante, fosse do que fosse, bastou-lhe ser que era: um homem simples, bom e justo. Temos razões, até para pensar e o dizer, que o senhor João Pereira deve ter o último e genuíno reguense.

Lembro-me da última vez que estive com o senhor João Pereira, já a doença o tinha enfraquecido, numa tarde, em Vila Real. Ao lado de um seu amigo, o Dr. José Alberto Marques, falou-me das coisas simples que o faziam sonhar e ter um sorriso permanente no rosto. Uma dela, era a sua vontade de voltar, logo que recuperasse, à Régua para estar com os seus amigos. Com tristeza para mim, não muito tempo depois, ele regressou para a Régua. Definitivamente... e pelo caminho último caminho da sua vida, aquele que o fez chegar à Eternidade.

Para os crentes, o senhor João estará certamente no céu – no inferno, ele nunca poderia estar, como nos disse o senhor Padre Luís! Eu acredito que ele esteja ainda entre nós com o seu exemplo de generosidade e cidadania.

Os homens como o senhor João Pereira nunca passam em vão na vida. Eternizam-se na memória do tempo como exemplo para as gerações vindouras. Se queremos mostrar uma fidelidade à sua memória, devemos saber manter vivos os seus valores e os seus generosos ideais.
(Clique nas imagens para ampliar)

Nos bombeiros da Régua, o seu nome será perpetuado com admiração, respeito e gratidão, nunca esquecendo o seu trabalho pela causa do voluntariado e do associativismo.

A terminar, como conselho, sugiro a quem de direito, que o seu nome devia ficar bem lembrado numa rua, gravado assim para todo o sempre: Rua de João Pereira – um reguense como nós. Para não dizer, melhor!
- Peso da Régua, Março de 2010, J. A. Almeida.

quinta-feira, 25 de março de 2010

SELVA EM PAZ - Capítulo II


Capítulo II - Quando o dia nasceu, alguns ainda se voltaram para o outro lado, no cimento, qual cama fofa, como se apenas um despertar errado lhes interrompesse o sono. Os rumores do dia, derivativos dos usos e costumes que, em qualquer convivência, se decifram em sortilégio universal, iam tomando conta das gentes.

Ao fundo, a selva cerrada, sem visibilidades de caminhos ou uma aberta na espessura, fervia envolta em vaporação, tal uma manta acolchoada a tivesse coberto durante a noite; fazia lembrar uma vista de avião quando este, sobrevoando as nuvens, parece parado...É de manhã cedo que África nos transmite as fragrâncias telúricas da sua intimidade como uma vestal eternamente florada, uma glorificacão ontológica sob um céu tão claro e um ar tão fresco que até emociona; germinal ininterrupta de paixão alucinada, quase violenta, mas sem pressa de concretizar, suavidade de um amor constante, quase quimera, com os séculos para usufruir os aromas que há na terra; Primavera e Verão abraçados como se as eras fossem um só tempo e um só modo numa flutuação de arroubo.

O Chefe de Posto surgiu, bem disposto, com o seu caqui de ferro recente, calções de festos impecáveis, divisas bem salientes nas ombreiras, dando as últimas ordens aos sipaios, inspeccionando o Land-Rover.

- Quando quiser partimos. Tenho que chegar a tempo de dar o mata-bicho àquela malta que está no pontão nº 5 - disse ele, escorreito. – Não podemos ir muito de bala porque entorna-se tudo- acrescentou, explicativo.

Sossegados os estômagos com café, pão recesso e doce de bisnaga, arrancamos debaixo de uma estalaria de motores com o Goês e os seus homens à frente.

Por onde passávamos as reverências eram tantas que chegavam a incomodar: as mulheres, de filhos atados às costas, riam-se e gritavam um dialecto incompreensível a que, no entanto, o jovem do caqui - num alarde poliglota... - correspondia; os homens, menos efusivos, cautelosos quiçá, estremavam as saudações a ligeiros levantares de braços como quem diz «vai andando!»; a canalha, receosa, afastava-se para as bermas. O capim, as mangueiras, cajueiros, maúmas e lusares formavam um emaranhado por onde o sol entrava em serpentinas prateadas; as copas e os ramos abraçavam-se, desprendiam-se, agarra aqui, solta acolá, para, num espanto, surgir uma clareira de machamba e meia dúzia de palhotas; os murrambés, namurires e marriés, surpresos pelo barulho que lhes cortava a consonância, voavam para cantar nos esconsos da floresta; macacos guinchavam de galho em galho e, alguns, quedavam-se, fitando-nos ariscos; javalis, de rumo perdido, atravessavam-se sem saberem para onde atinar; feios e maus, os mabecos atiravam olhos esfomeados; de espaços a espaços, pequeníssimos trilhos de pés descalços segmentavam-se pelos flancos da picada; um cheiro acre, a mato queimado, lembrava fogos de eternidade.

O Chefe monhé – Suliman de seu nome- abrandou a marcha, sinalizou com o braço para pararmos, meteu-se num desvio e estacou de imediato. Envolveu-nos um marulho de suão que, em contraste com a inércia dos fragores anteriores, aparentava um sussurro de maré a esfriar o suor. A uns passos dados, num sobressalto infantil, surgiu uma represa de postal ilustrado. A água era tão transparente que se via o fundo lodoso. Os cívicos Macuas, às ordens do chefe, encheram jerricans. Era uma zona de penumbra, tal a densidade do arvoredo miombo de mbilas, jambires, pau-preto e sândalo.

- É para a brigada cozinhar. É pura como a selva... – respondeu-me Suliman, ao ver o meu olhar de surpresa.

- Parece um bebedouro...

- É a Lagoa Sagrada...

- Lagoa Sagrada?!

- É uma lenda. Esta gente diz que morreu aqui – ninguém sabe há quanto - um leão que perseguia um feiticheiro...

- ...

- Esta malta acredita nestas coisas... Quando o animal se ia mandar ao velho, este fez umas rezas, o leão parou e o quimbanda matou-o com uma punhada... Desde aí, nunca mais, nestas águas, um bicho meteu o focinho... Sempre que alguém aqui passa vai sempre carregado... É água santa!!!... – bradou irónico.

- Como a do Ganges...

- Isso é como comparar um chifre de rinoceronte a uma presa de elefante...- atirou a fingir-se melindrado.

Quando chegámos ao pontão, a meia dúzia de trabalhadores recebeu-nos em alvoroço, embora se percebesse alguma estranheza pela companhia dos camuflados. Havia duas míseras tendas colmadas, uma fogueira gigante com um panelão de igual tamanho em cima de umas pedras enegrecidas, alfaias dispersas e duas canoas na lama da margem. O rio era estreito, mas não se chegava ao outro lado numa braçada.

- Patrão, sô Firrera num dexou tronco. Tá tudo pronto, os riforço tão seco, falta tronco só – pormenorizou o que parecia ser o encarregado.

Suliman olhava em volta, semblante contrariado, enquanto a mandioca, o peixe seco, o vinho, o pão, o arroz, o milho e os jerricans da água eram retirados da caixa do Land-Rover.

- O senhor Ferreira vai ter milando comigo! Depois dizem que os pretos é que não fazem nada! – crocitou, fitando-me, intencionalmente, o indiano. – Vocês já matabicharam? – preocupou-se.

- Si, patrão.

Há acasos que prefiguram artifícios de escrita, a modos que coincidências adrede urdidas para remedeio narrativo. Não é o caso, porque – acreditem ou não – começou-se a ouvir, ao longe, um roncar de motores. Suliman esboçou, duvidoso, um alento; os assalariados, mais crentes, bateram palmas numa agitação de espera certa. Parecia um retumbo a rasgar a imensidão, um compacto tropel paquidérmico à medida que se achegava. Quando os dois camiões, quais quadrúpedes resfolegantes, destrambelharam na angra do rio, a griteira foi tanta que nem a chegada de um Governador Geral...

- Toca a descarregar este, depressinha, que ainda quero ver se chego hoje a Mocuba! – berrou o condutor branco, abrindo a porta, antes de qualquer cumprimento.

- Chi, patrão! Mocuba hoje?! Tão longe, num vai chegar não...- espanta-se um preto.

- Longe ou perto eu é que sei! E, além do mais, não quero ficar muito tempo a cheirar esta catinga toda! – brutalizou, enquanto distribuía mãozadas.

- Senhor Ferreira, não era para ter vindo ontem?... – beliscou Suliman.

- Por mim, era na semana passada, só que em Molivala não se desenrascaram, atasquei a meio, isto nem são picadas nem são nada! É só deste camião! – advertia para os trabalhadores negros. - Cambada de chimpazés!... – salpicava, dirigindo-se à cabine de onde retirou uma geladeira térmica, abriu-a e distribuiu bazukas. - Não chega para este maralhal todo, é um gole para cada! Que é que você – virando-se na minha direcção - anda aqui a fazer, ó Alferes? - acabou por perguntar, depois de limpar as beiças, o madeireiro, meio irónico, meio provocador.

- A passear...O nosso amigo Suliman convidou-me e eu aproveitei...

- Tempo perdido, meu amigo, tempo perdido. Aqui os turras são estes chatos de Chefes de Posto que se julgam sobas desta merda toda...

- ...

Via-se que o Ferreira era um modelo do amancebado com os nepotismos administrativos da interioridade selvática, aquele tipo tarimbado em que os anos de permanência e o desbocamento intestino assoldavam a grosseirice.

- Com essa conversa toda não sei quando lhe vou pagar...- ripostou Suliman.

- Não se preocupe que, em Pebane, há quem o obrigue ou pague na sua vez. Estes monhés são piores que judeus!... – prosseguiu Ferreira na ostentação ordinária.

- Já viu, Alferes, esta modalidade de terrorismo?... – interrogou Suliman, enquanto o Ferreira, virando costas, se afastava para verter águas junto de um pneu. – Está protegido por cima e pensa que pode falar com todos da mesma maneira. Se me quisesse aborrecer...

- Racismo...

- Pior, falta de educação...

O condutor do outro camião, um misto, provavelmente de segunda geração, com aspecto algo polido, permanecia, quedo e mudo, de sorriso ambíguo só interrompido quando levava o gargalo da cerveja à boca. Salientava-se pela cala, como se estivesse ali fora de cena. Tinha um rosto loução e, nos olhos, vestígios de aptidões. Era, naquele ambiente, uma antinomia que, sem forçar, suscitava uma discrição tão recatada que ninguém, até à partida, lhe escutou ou pediu uma palavra.

Foi com indisfarçável e geral prazer que, terminada a descarga, o Ferreira e o seu companheiro (que só, então, lançou um sorriso franco) abalaram.

O regresso da serenidade devolveu Suliman ao seu mando. Guardou, durante uns minutos, um propósito reservado a recuperar do desconcerto inesperado.

- Têm que almoçar? – perguntou. - Trouxe uns bifes de javali. – acrescentou.

- Há uns restos. A gente desenrasca-se. De qualquer modo, e já que oferece, há muitos candidatos...

Recolhemo-nos a uma sombra e comeu-se a reciprocidade que deu para alguns soldados meterem as mãos nas marmitas de mandioca perante a hilaridade dos assalariados.

- Sabe – retomou o Chefe de Posto -, às vezes apetece-me pedir a demissão de funcionário administrativo e ir para Lourenço Marques ajudar os meus pais no comércio. Eu gosto disto, mas estes milandos de brancos desgostam-me. A fingir brincadeira, dizem as coisas mesmo com ganas de ofender. Nem disfarçam.

- Uma ou outra má criação. No geral andam aqui para ganhar a vida. Será que o cacimbo transtorna alguns?...

- Não me diga que acredita nessa história dos cacimbados...

- O clima altera as pessoas... Uma torreira de dia e um arrefecimento à noite que até entra nos ossos....E, depois, este isolamento...

- Ora... Ora... Esta gente já está aqui há mais anos do que eu tenho de vida. As cacimbadelas são um alibi para os destrambelhamentos... O que mata é andar por aí muita gente que ficou rica – não tenho inveja nenhuma, atenção -, criou relações de confiança, comprou poderosos que já partiram e outros que vieram de novo, julgam que fazem o que lhes apetece e a impunidade é tamanha que se transforma numa natureza, entende? – acentuou. – Para ganhar a vida não é preciso afrontar a honestidade – sentenciou.

- Mas olhe – interrompi -, tenha cuidado, as cumplicidades são mais que muitas. Confesso-lhe a minha incomodidade com conversas deste tipo porque nunca sabemos onde elas vão ecoar. E, para lhe ser franco, acho que os brancos de cá são como os de lá. Nunca foi à Metrópole? Deixe-se andar. Não me diga que a boçalidade do Ferreira o perturbou? Ele é só exemplo dele próprio.

- Gosto sempre de falar com a malta que passa por aqui na psico. Vocês parecem todos iguais, obrigados mas vieram, com caras de franqueza e receosos de tudo...

- ...

- No mato não há disso, meu caro... Isto é tão grande, tão sagrado e tão livre que até ficava mal uma denúncia... Refiro-me a esta zona, claro... Sabe que a Frelimo está a abrir uma frente em Tete? - perguntou Suliman, interrompendo a marcha da conversa

- Sei, sei...

- Nas outras, onde nunca estive, já não sei como é...

- É a contra informação militar e o que importa é que as perdas sejam poucas...

- Cabo Delgado?

- Montepuez, Macomia, Miteda, Mueda, por aí. Mas tudo bem que o império é uno e indivisível…

- Vocês são mesmo tirados a stencil...

- ...

- Não quer provar uma chamuça?

- Obrigado, são muito picantes, fazem-me mal.

- Tenho lá um cozinheiro, no Posto, que as faz melhor do que na Índia...

- Quando achar bem, podemos regressar, não queria chegar de noite.

- Já estou a ver que não vou ter sesta...

O regresso teve a moleza que a modorra impunha. A flora destilava e a fauna esticava a preguiça no aconchego das sombras. Só o eco dos motores desflorava aquela calmaria que tinha tanto de sagrado quanto de profano.
Continua.
- Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
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