Capítulo I - O borracha, motor fora de borda, em várias travessias, colocou o pelotão na ilha de Edugo orlada de palmeiras, na embocadura do Zambeze com o Índico. Poderia ser, num prospecto turístico, um apelo de viagens de sonho; um daqueles lugares que os nostálgicos de paragens ignoradas procuram a vida inteira; lembrava um atol a rir-se da tecnologia.
Após contactos com o Samaçôa, bivacámos no terreiro em frente da sua palhota, abrigados por uma desconforme mangueira. Antes que a noite chegasse, comemos os restos da ração do dia: concreto de fruta, doce de pêra em tubo de plástico, como o das pastas dentífricas, e fluido de chocolate. O céu estrelado distraiu-nos do desespero mosquitado e dispensou os turnos de vigia.
Aliviados pela chegada da manhã, levantámos a tenda e perdemo-nos no paraíso de mil almas que vivem da mandioca e de algum caju donde conseguem uma aguardente postiça que lhes amoina as horas. É uma extensão administrativa do Posto de Bajone e, para irem e virem, deslocam-se em almadias, manobradas por remos espalmados em forma de guitarra, cirandando como barquinhos de papel pela correnteza de manhas conhecidas. Respira-se uma atmosfera de comunhão, colorida e sem pecado, a que não falta, sequer, uma rudimentar escola com paredes de bambu e cobertura de macubares num impressionismo tosco. A ordem de patrulha fixava, nesta paragem, a indagação de hipotéticos esconderijos de armamento e, a existirem, a sua captura. O Samaçôa, plágio fisionómico dum Gungunhana cinematográfico, rira-se, sonoramente, exibindo uma invejável saúde dentária, quando lhe manifestámos tais desconfianças. Dispensado o seu acompanhamento, batemos toda a ilhota, com demorada minúcia os outeiros de espinheiros, revolvemos círculos arenosos, aproveitando para lavar os corpos na rebentação das ondas, e confirmámos que melhor seria procurar uma agulha num palheiro. Antes da retirada, com a benevolência sorridente do corpulento caudilho deste pergaminho geográfico e da ganapada da escola, o enfermeiro fartou-se de dar consultas e distribuir comprimidos LM para o paludismo...
Atroando a selva - essa contradição de medos assombrados e harmonias de Vivaldi -, com a bicharada a abandonar as bermas e repetidas proibições de apontar a guelengues destrambelhados, chegámos, motores a fumegar, às imediações de Mocubela envolta numa espantosa claridade a espreitar por entre as mucibes de uma chiteta. Demos conta de um mulola aprazível e, logo ali, lavámos as caras sem nos importarmos com alguns nemas que, na borda, pachorrentamente, matavam a sede. Um pouco adiante, abria-se uma pequena chana de capim rasteiro, atalhada por murilaondes e palmeiras de cinco andares nas quais cantavam chiricos e - pareceu aos mais entendidos em ornitologia tropical - alguns barucos de mau agoiro.
Entrámos por um trilho, anavalhado no sopé de um monte, a desembocar num amplo quimbo em que tumultuaram, repentinamente, crianças desnudas, com barrigas de fuba, gritando aiués, pedindo quinhentas e disputando-as entre alegres tatiés e makas inocentes, ante a benevolência sorridente de velhos que, debaixo de uma mulemba, fumavam macanha como sobas à espera de vassalagem. Depois de os cumprimentarmos, em obediência à psico, dirigimo-nos ao Posto Administrativo, onde nos recebeu um descendente indiano. Depois de saudações efusivas, «Ora viva a civilização!...», facilitou-nos um telheiro nas traseiras dos seus reduzidos aposentos. No meio da conversa informativa da situação no terreno, arremedo de briefing de tropa menor, o jovem Chefe de Posto não resistiu ao seu memento familiar: filho de goeses, fugidos à invasão indiana, vociferava o seu anti-Nehruismo com uma convicção tão profunda quanto a aversão - quase ódio - marcada nos olhos. Despedimo-nos até à noite.
Mocubela fica num elevado sobranceiro ao rio Muchode, encontro de rotas para Pebane, Mocuba, Bajone e Molivala. Talvez por isso, ou porque a ambição, muitas vezes, se gera no ventre da aventura e se sublima na desforra de um passado indigente, logo se nota, no bravio do lugarejo, uma cantina - sucedâneo de locanda metropolitana - em que tudo se mercadeja: mandioca, cigarros, cerveja, vinho desgraduado, chitas garridas, gingas, rádios a pilhas, castanha de caju, peixe seco, farinha, alpercatas, petróleo, levas de contratados para os mares de chá do Gurué ou para a construção civil de Blantyre e Quelimane, óculos de sol, balalaicas, um rol infindável de precisos e apelações que – aqui como em qualquer lugar - as barrigas dispensam mas os olhos comem. É uma daquelas terras em que se vive por desconhecimento de horizontes diferentes, fruição caciqueira ou voluntarismo solitário.
Saltou-nos ao caminho um entroncado europeu de cara curtida pelo sol, olhos de eremita e sotaque das fragas transmontanas que a convivência autóctone não roubara. Tínhamos que o visitar no fim do dia, «desse para onde desse», para «bebermos umas cervejas e matar as barrigas de misérias, mas tem que ser o pessoal todo, ouviu?». Quando se confirmou a recíproca naturalidade regional quase nos esmagamos numamplexo de estremecimento: «Não percam muito tempo a andar por aí a gastar as botas e os canastros, aqui não há turras... Tomara Vila Real ter este sossego...»
A volta pelas Regedorias não escapou das regras. Em todos os pontos onde uma vida - uma só que fosse - pulsasse, distribuíamos panfletos apólogos, oferecíamos préstimos de curativos primários, transportávamos os que vinham das machambas distantes, interessávamo-nos pelas rotinas dos seus viveres, distribuíamos cigarros; os que, por desconfianças atávicas ou recusativos assumidos, esboçavam fugas à nossa chegada, erguíamos as armas, bem ao alto, bradando palavras de pazeamento; nem mesmo nos locais em que as coordenadas da carta conjecturavam esconsos e exigiam interrogatórios, as ameaças se esboçavam ou a prepotência se materializava.
Ao lusque-fusque, quando o sol levita num desmaio de paixão, as fogueiras inundam os terreiros, o mato se afunda num silêncio de justo, a bicharada se apronta para a caça da sobrevivênvia e os clamores irracionais do cio procuram respostas cevadas, o cantineiro transmontano, sob o alpendre da sua casa, distribuía Laurentinas geladas e sacos de amendoim.
- Não encham a barriga já! Depois não há lugar para o churrasco! – galhofava o Senhor Joaquim, seu nome de baptismo, mas conhecido por Vila Pouca. – Aqui toda a gente tem que me chamar por Vila Pouca, falta o Aguiar, mas era muito comprido e não calhava bem aos ouvidos desta cambada...
Abandonara a sua toca com carta de chamada de um primo estabelecido na Beira e enfeitiçara-se por uma mulata de corpo brasido. Como as servências familiares se cansam mais rapidamente que as estranhas, procurou um pouso em que fosse patrão. Tinha que ser um refúgio para, no desconhecimento, cumprir a sua felicidade, mas não um desterro sem poder desmaninhar o futuro. De fala em fala, pombos-correios verbais que vão tão longe que nem se percebe como chegam e não se perdem, andou por Mocuba onde já quase tudo estava desbravado. Tentou Pebane, com horizontes líquidos a abrir intentos, e cedo espertou que o seu assento deveria ser (re)criado na falta de concorrência... Descobriu, então, este lugar numa viagem de caçador, calculou necessidades de consumo e antecipou o prazer pelo espanto dos conhecidos.
- Chamaram-me de tudo: maluco, cafre, fugido da justiça e da mulher, eu que nunca casei, nem caso... Eu sei lá!... Até um parente afastado, a quem escrevera, me comunicou que constava, lá na terra, que eu matara o meu primo e andava fugido no mato!... Um riso!... Sabe, conterrâneo, as pessoas do puto são mais maliciosas que esta pretalhada...
Joaquim estava em África como se nunca tivesse sido de outro lugar. Bebeu água do coco, montou um arimbo, comprou umas bicuatas, arranjou um cabire para lhe espantar as invejas, mastigou muita ginguba, armou- se de maneliqueres e carabinas com que abateu fantasmas de ciúmes, caçou para a panela, perseguiu feras nos mangais e nos papiros de Marromeu, foi guia casual de safaris encomendados no Malawi, comeu cima com as mãos, encomendou-se a Nzambi, mandou ler os astros ao quimbanda mais afamado das redondezas, enfeitou-se de missangas, aprendeu o Macua e só não consultou os cuchcucheiros das lonjuras inóspitas, porque, já no chão natal, cimentara um ódio de estimação a todas as bruxarias desde que viu a Mãe matar galinhas e espalhar sal sobre o sangue para arredar maus olhados. A sua cantina e a lavra circundante, mais do que uma afirmação de posse, eram o seu entrelaçar africano, o seu pacto de sangue com aquela terra vermelha.
- Sabe, Alferes, já tenho o meu rectângulo para ficar. É no cemitério indígena, sou igual a eles... Só há uma diferença: quero uma cruz à cabeceira, e a minha mulatinha tem que rezar, todas as semanas, enquanto for viva, um padre-nosso e uma avé-maria que ela já se converteu à nossa religião, percebe?...
Lirila, a mulata do seu feitiço, de cabelos já brancos e barriga de alguns partos, ainda sinalizava, por entre as pregas do rosto de meia de leite escura, fagueiros antigos, engrandecidos por um riso que nenhum publicitário descobriria. Tinha o catitismo de uma matrona de favela brasileira ou de temba de coqueiros e a matiz da generosidade assimilada em comunhão de muitos anos. Pintara-se e aspergira-se para nos receber, distribuindo, de sorriso sempre feito, cervejas e pratos de mendubi como se quisesse quebrar acanhamentos. Domesticava a casa de alvenaria, construída junto à cubata antiga conservada como memorial, onde não faltava um gerador para iluminar as noites, alimentar a arca e o rádio, girar os discos e as ventoinhas de pé alto.
- Tem filhos, Senhor Joaquim?
- Cinco! – atirou sorridente. - Estão todos fora. O mais velho trabalha no chitengo da Gorongosa, anda lá a ensinar ricaços a caçar; dois estão em Lourenço Marques, um no comércio, tem um estabelecimento de roupas ali para os lados do Alto Maé, outro é escriturário no Polana. Os dois restantes, mais novos, um está nos serviços de terra da Deta, na Beira, e o mais novo de todos em Lisboa a estudar para advogado, vem cá uma vez por ano, de Julho a Setembro, quando são lá as férias grandes, mas o gajo já não está afeiçoado a isto, já me disse que, se calhar, ficava na Metrópole. Sabe como é, você para lá vai, os filhos só estão connosco quando lhes mudamos os fundilhos, depois querem andar à sua maneira, só servimos para calar as suas exigências. É a puta da vida, a gente cria-os e a mais não tem direito. Ó Mulher, então essas frangas nunca mais se comem? – rematou Joaquim, olhando-me matreiramente.
Ao fundo do quintal, dois mainatos, que manobravam as brasas sempre alimentadas com repetidas doses de carvão, como se a pergunta fosse para eles, espevitaram pressas, «tá cási patrão!», e deram mais umas voltas aos galináceos espalmados na grelha.
- Não acredito que o senhor fique aqui. Quando isto azedar vai até à terra.
- À terra?!... – exclamou por entre uma trovoada de gargalhadas. – A minha terra é esta! Julga que estou a armar-me em fazendeiro rico? Não tenho sisal, nem algodão, nem copra, nem chá, nem gado. A minha fortuna é isto que aqui vê – apontando, displicente, para as paredes que nos albergavam.
- A sua família...
- A minha família está toda em Moçambique, Alferes! Os meus Pais já morreram, o casebre onde viviam voltou ao dono, aquilo era arrendado. Ia voltar para onde? Para a serra guardar cabras? Para as minas de Jales? Para a lavoura, andar com uma besta a lavrar campos? E, depois, aquilo em Portugal não interessa nem ao Menino Jesus. Aquele velho de Santa Comba pôs o País à fome. Aqui há tudo: carne é só pegar na arma, mandioca e fruta é só apanhá-la, ninguém me aborrece. Sabe há quantos anos não vou a Portugal? Desde que saí de lá!...
- E se a Frelimo toma conta disto?
- E qual é o problema? Estou convencido de que, quando o velho morrer, que o tipo não é eterno, isto vai logo parar às mãos deles. Os americanos já se ofereceram para resolver isto, e nós, os brancos, também resolvíamos, mas o Ultramar é uma mina para os ricalhaços de lá. Não tenho medo nenhum da independência, pergunte aí se alguém tem razão de queixa de mim, só a malandragem...
- Então, a tropa que anda aqui a fazer?
- Você quis vir? Vocês andam todos obrigados ou não será verdade? Estão aqui porque os mamões de lá, que têm interesses cá, é que mandam nisto. Isto é tudo uma questão de massa, mais nada, o dinheiro não tem cor nem pátria. – Batendo-me paternalista nas costas: - Não quero desanimá-lo, homem! Deram-vos cabo da vida, andam aqui pelos cabelos, e dizem-vos que é para defender a Pátria, não é? A Pátria fazemo-la nós, a Pátria somos nós, a liberdade dum sítio, a fome na grande puta que a pariu, as invejas no raio que as parta, o sossego, o sono santo de portas abertas, a miséria no caralho que a foda... Desculpe lá, ó Alferes, você é da minha terra, porra!
- Nunca o chatearam?
- Chatearam como?
- O senhor fala sempre assim com as pessoas que não conhece, que nunca viu de lado...
- Ah! Já estou a perceber!... – cortou sorridente. - Mas quem é que sabe que eu existo?... Eu entendo o que diz... O meu amigo não tem cara desses... Há quantos anos – levantando-se de sorriso escancarado e braços abertos - não vejo um transmontano!!! Dê cá mais abraço! A Pide, aqui, sabe, anda entretida com os turras.
- Mas olhe que há muita tropa convencida de que está a defender a Pátria, não acredita nisso? Há muitas pessoas que pensam como o Senhor e isso soa-lhes a ingratidão.
- Alferes, não me leve a mal, isto são desabafos de um cacimbado... O meu filho mais novo, qualquer dia, também vai para uma frente e então é que vai ser...
Houve um mútuo descargo quando os mainatos anunciaram que estava tudo pronto. O senhor Joaquim gritou para o pessoal: «Toca a comer, malta! Se não chegar, assa-se mais, nem que esgote o galinheiro! Quem quiser com mais picante é só pedir!»
O Joaquim era, indiscutivelmente, um inconsútil transmontano: tinha um sorriso espontâneo como as montanhas da nascença e uma generosidade larga como os vales que aquelas defendem.
Quando abandonámos a sua quitanda já havia sombras dormindo nas caixas das viaturas e algumas nem se mexeram até chegarmos ao alpendre que o Chefe de Posto disponibilizara. Aqui, esperávamo-nos o jovem administrativo, sentado à soleira, a sugerir-nos uma visita, no dia seguinte, aos pontões da zona, mal o sol se levantasse.
Com as barrigas cheias, alguma etilização e disputa dos melhores turnos de plantão, o sono foi tão pesado que nem o silêncio nos acordou...
- Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
Continua...
- Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue! M. Coutinho Nogueira Borges é natural da cidade de Peso da Régua e cumpriu serviço militar em Moçambique no tempo em que o país era colónia de Portugal.
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