quinta-feira, 25 de março de 2010

SELVA EM PAZ - Capítulo II


Capítulo II - Quando o dia nasceu, alguns ainda se voltaram para o outro lado, no cimento, qual cama fofa, como se apenas um despertar errado lhes interrompesse o sono. Os rumores do dia, derivativos dos usos e costumes que, em qualquer convivência, se decifram em sortilégio universal, iam tomando conta das gentes.

Ao fundo, a selva cerrada, sem visibilidades de caminhos ou uma aberta na espessura, fervia envolta em vaporação, tal uma manta acolchoada a tivesse coberto durante a noite; fazia lembrar uma vista de avião quando este, sobrevoando as nuvens, parece parado...É de manhã cedo que África nos transmite as fragrâncias telúricas da sua intimidade como uma vestal eternamente florada, uma glorificacão ontológica sob um céu tão claro e um ar tão fresco que até emociona; germinal ininterrupta de paixão alucinada, quase violenta, mas sem pressa de concretizar, suavidade de um amor constante, quase quimera, com os séculos para usufruir os aromas que há na terra; Primavera e Verão abraçados como se as eras fossem um só tempo e um só modo numa flutuação de arroubo.

O Chefe de Posto surgiu, bem disposto, com o seu caqui de ferro recente, calções de festos impecáveis, divisas bem salientes nas ombreiras, dando as últimas ordens aos sipaios, inspeccionando o Land-Rover.

- Quando quiser partimos. Tenho que chegar a tempo de dar o mata-bicho àquela malta que está no pontão nº 5 - disse ele, escorreito. – Não podemos ir muito de bala porque entorna-se tudo- acrescentou, explicativo.

Sossegados os estômagos com café, pão recesso e doce de bisnaga, arrancamos debaixo de uma estalaria de motores com o Goês e os seus homens à frente.

Por onde passávamos as reverências eram tantas que chegavam a incomodar: as mulheres, de filhos atados às costas, riam-se e gritavam um dialecto incompreensível a que, no entanto, o jovem do caqui - num alarde poliglota... - correspondia; os homens, menos efusivos, cautelosos quiçá, estremavam as saudações a ligeiros levantares de braços como quem diz «vai andando!»; a canalha, receosa, afastava-se para as bermas. O capim, as mangueiras, cajueiros, maúmas e lusares formavam um emaranhado por onde o sol entrava em serpentinas prateadas; as copas e os ramos abraçavam-se, desprendiam-se, agarra aqui, solta acolá, para, num espanto, surgir uma clareira de machamba e meia dúzia de palhotas; os murrambés, namurires e marriés, surpresos pelo barulho que lhes cortava a consonância, voavam para cantar nos esconsos da floresta; macacos guinchavam de galho em galho e, alguns, quedavam-se, fitando-nos ariscos; javalis, de rumo perdido, atravessavam-se sem saberem para onde atinar; feios e maus, os mabecos atiravam olhos esfomeados; de espaços a espaços, pequeníssimos trilhos de pés descalços segmentavam-se pelos flancos da picada; um cheiro acre, a mato queimado, lembrava fogos de eternidade.

O Chefe monhé – Suliman de seu nome- abrandou a marcha, sinalizou com o braço para pararmos, meteu-se num desvio e estacou de imediato. Envolveu-nos um marulho de suão que, em contraste com a inércia dos fragores anteriores, aparentava um sussurro de maré a esfriar o suor. A uns passos dados, num sobressalto infantil, surgiu uma represa de postal ilustrado. A água era tão transparente que se via o fundo lodoso. Os cívicos Macuas, às ordens do chefe, encheram jerricans. Era uma zona de penumbra, tal a densidade do arvoredo miombo de mbilas, jambires, pau-preto e sândalo.

- É para a brigada cozinhar. É pura como a selva... – respondeu-me Suliman, ao ver o meu olhar de surpresa.

- Parece um bebedouro...

- É a Lagoa Sagrada...

- Lagoa Sagrada?!

- É uma lenda. Esta gente diz que morreu aqui – ninguém sabe há quanto - um leão que perseguia um feiticheiro...

- ...

- Esta malta acredita nestas coisas... Quando o animal se ia mandar ao velho, este fez umas rezas, o leão parou e o quimbanda matou-o com uma punhada... Desde aí, nunca mais, nestas águas, um bicho meteu o focinho... Sempre que alguém aqui passa vai sempre carregado... É água santa!!!... – bradou irónico.

- Como a do Ganges...

- Isso é como comparar um chifre de rinoceronte a uma presa de elefante...- atirou a fingir-se melindrado.

Quando chegámos ao pontão, a meia dúzia de trabalhadores recebeu-nos em alvoroço, embora se percebesse alguma estranheza pela companhia dos camuflados. Havia duas míseras tendas colmadas, uma fogueira gigante com um panelão de igual tamanho em cima de umas pedras enegrecidas, alfaias dispersas e duas canoas na lama da margem. O rio era estreito, mas não se chegava ao outro lado numa braçada.

- Patrão, sô Firrera num dexou tronco. Tá tudo pronto, os riforço tão seco, falta tronco só – pormenorizou o que parecia ser o encarregado.

Suliman olhava em volta, semblante contrariado, enquanto a mandioca, o peixe seco, o vinho, o pão, o arroz, o milho e os jerricans da água eram retirados da caixa do Land-Rover.

- O senhor Ferreira vai ter milando comigo! Depois dizem que os pretos é que não fazem nada! – crocitou, fitando-me, intencionalmente, o indiano. – Vocês já matabicharam? – preocupou-se.

- Si, patrão.

Há acasos que prefiguram artifícios de escrita, a modos que coincidências adrede urdidas para remedeio narrativo. Não é o caso, porque – acreditem ou não – começou-se a ouvir, ao longe, um roncar de motores. Suliman esboçou, duvidoso, um alento; os assalariados, mais crentes, bateram palmas numa agitação de espera certa. Parecia um retumbo a rasgar a imensidão, um compacto tropel paquidérmico à medida que se achegava. Quando os dois camiões, quais quadrúpedes resfolegantes, destrambelharam na angra do rio, a griteira foi tanta que nem a chegada de um Governador Geral...

- Toca a descarregar este, depressinha, que ainda quero ver se chego hoje a Mocuba! – berrou o condutor branco, abrindo a porta, antes de qualquer cumprimento.

- Chi, patrão! Mocuba hoje?! Tão longe, num vai chegar não...- espanta-se um preto.

- Longe ou perto eu é que sei! E, além do mais, não quero ficar muito tempo a cheirar esta catinga toda! – brutalizou, enquanto distribuía mãozadas.

- Senhor Ferreira, não era para ter vindo ontem?... – beliscou Suliman.

- Por mim, era na semana passada, só que em Molivala não se desenrascaram, atasquei a meio, isto nem são picadas nem são nada! É só deste camião! – advertia para os trabalhadores negros. - Cambada de chimpazés!... – salpicava, dirigindo-se à cabine de onde retirou uma geladeira térmica, abriu-a e distribuiu bazukas. - Não chega para este maralhal todo, é um gole para cada! Que é que você – virando-se na minha direcção - anda aqui a fazer, ó Alferes? - acabou por perguntar, depois de limpar as beiças, o madeireiro, meio irónico, meio provocador.

- A passear...O nosso amigo Suliman convidou-me e eu aproveitei...

- Tempo perdido, meu amigo, tempo perdido. Aqui os turras são estes chatos de Chefes de Posto que se julgam sobas desta merda toda...

- ...

Via-se que o Ferreira era um modelo do amancebado com os nepotismos administrativos da interioridade selvática, aquele tipo tarimbado em que os anos de permanência e o desbocamento intestino assoldavam a grosseirice.

- Com essa conversa toda não sei quando lhe vou pagar...- ripostou Suliman.

- Não se preocupe que, em Pebane, há quem o obrigue ou pague na sua vez. Estes monhés são piores que judeus!... – prosseguiu Ferreira na ostentação ordinária.

- Já viu, Alferes, esta modalidade de terrorismo?... – interrogou Suliman, enquanto o Ferreira, virando costas, se afastava para verter águas junto de um pneu. – Está protegido por cima e pensa que pode falar com todos da mesma maneira. Se me quisesse aborrecer...

- Racismo...

- Pior, falta de educação...

O condutor do outro camião, um misto, provavelmente de segunda geração, com aspecto algo polido, permanecia, quedo e mudo, de sorriso ambíguo só interrompido quando levava o gargalo da cerveja à boca. Salientava-se pela cala, como se estivesse ali fora de cena. Tinha um rosto loução e, nos olhos, vestígios de aptidões. Era, naquele ambiente, uma antinomia que, sem forçar, suscitava uma discrição tão recatada que ninguém, até à partida, lhe escutou ou pediu uma palavra.

Foi com indisfarçável e geral prazer que, terminada a descarga, o Ferreira e o seu companheiro (que só, então, lançou um sorriso franco) abalaram.

O regresso da serenidade devolveu Suliman ao seu mando. Guardou, durante uns minutos, um propósito reservado a recuperar do desconcerto inesperado.

- Têm que almoçar? – perguntou. - Trouxe uns bifes de javali. – acrescentou.

- Há uns restos. A gente desenrasca-se. De qualquer modo, e já que oferece, há muitos candidatos...

Recolhemo-nos a uma sombra e comeu-se a reciprocidade que deu para alguns soldados meterem as mãos nas marmitas de mandioca perante a hilaridade dos assalariados.

- Sabe – retomou o Chefe de Posto -, às vezes apetece-me pedir a demissão de funcionário administrativo e ir para Lourenço Marques ajudar os meus pais no comércio. Eu gosto disto, mas estes milandos de brancos desgostam-me. A fingir brincadeira, dizem as coisas mesmo com ganas de ofender. Nem disfarçam.

- Uma ou outra má criação. No geral andam aqui para ganhar a vida. Será que o cacimbo transtorna alguns?...

- Não me diga que acredita nessa história dos cacimbados...

- O clima altera as pessoas... Uma torreira de dia e um arrefecimento à noite que até entra nos ossos....E, depois, este isolamento...

- Ora... Ora... Esta gente já está aqui há mais anos do que eu tenho de vida. As cacimbadelas são um alibi para os destrambelhamentos... O que mata é andar por aí muita gente que ficou rica – não tenho inveja nenhuma, atenção -, criou relações de confiança, comprou poderosos que já partiram e outros que vieram de novo, julgam que fazem o que lhes apetece e a impunidade é tamanha que se transforma numa natureza, entende? – acentuou. – Para ganhar a vida não é preciso afrontar a honestidade – sentenciou.

- Mas olhe – interrompi -, tenha cuidado, as cumplicidades são mais que muitas. Confesso-lhe a minha incomodidade com conversas deste tipo porque nunca sabemos onde elas vão ecoar. E, para lhe ser franco, acho que os brancos de cá são como os de lá. Nunca foi à Metrópole? Deixe-se andar. Não me diga que a boçalidade do Ferreira o perturbou? Ele é só exemplo dele próprio.

- Gosto sempre de falar com a malta que passa por aqui na psico. Vocês parecem todos iguais, obrigados mas vieram, com caras de franqueza e receosos de tudo...

- ...

- No mato não há disso, meu caro... Isto é tão grande, tão sagrado e tão livre que até ficava mal uma denúncia... Refiro-me a esta zona, claro... Sabe que a Frelimo está a abrir uma frente em Tete? - perguntou Suliman, interrompendo a marcha da conversa

- Sei, sei...

- Nas outras, onde nunca estive, já não sei como é...

- É a contra informação militar e o que importa é que as perdas sejam poucas...

- Cabo Delgado?

- Montepuez, Macomia, Miteda, Mueda, por aí. Mas tudo bem que o império é uno e indivisível…

- Vocês são mesmo tirados a stencil...

- ...

- Não quer provar uma chamuça?

- Obrigado, são muito picantes, fazem-me mal.

- Tenho lá um cozinheiro, no Posto, que as faz melhor do que na Índia...

- Quando achar bem, podemos regressar, não queria chegar de noite.

- Já estou a ver que não vou ter sesta...

O regresso teve a moleza que a modorra impunha. A flora destilava e a fauna esticava a preguiça no aconchego das sombras. Só o eco dos motores desflorava aquela calmaria que tinha tanto de sagrado quanto de profano.
Continua.
- Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue!

segunda-feira, 22 de março de 2010

Visita do Ministro do Fomento ao Quartel dos Bombeiros

Hoje, é de dia de concentrar a atenção num interessante artigo publicado pela revista “Ilustração Portuguesa”, nº 541, de 3 de Julho de 1916, sobre visita do Dr. Fernandes Costa, Ministro do Fomento, ao quartel dos Bombeiros Voluntários da Régua, ainda ele se situava no Largo dos Aviadores, em edifício, por sinal, ainda existente.

Nesse artigo se divulgam duas fotografias do primeiro quartel que serviu os bombeiros da Régua até meados dos anos 20 do século passado. Dele não se conhecia mais do que a fachada principal, fotografada para ilustrar um postal de colecção editada por José Alves Barreto.

As duas fotografias permitem-nos recordar a fachada com a sua varanda espaçosa, onde uma larga placa anunciava o nome da associação, e também parte do interior, a famosa sala de reuniões dos associados e dos corpos directivos.

Uma visita de tão ilustre governante da primeira república e da não menos ilustre comitiva que o acompanhava, que integrava o Dr. Câmara Pestana, director geral da agricultura, o Dr. Nuno Simões, Governador Civil do Distrito de Vila Real, o senador Jerónimo de Matos e o jornalista reguense Camilo Guedes Castelo Branco, representou elevado significado social e promocional dos nossos bombeiros.

Sua Excelência, o Ministro do Fomento deslocara-se à Régua no âmbito de visita a toda a província de Trás-os-Montes, em apoio da exposição agrícola de produtos regionais, realizada em Agosto, integrada no programa das Festas do Socorro. Anunciava a revista que se tratava duma mostra “de produtos da região e uma parada em que figuravam os seus melhores exemplares pecuários”.

Na peça jornalística a que nos vimos referindo o Dr. Bernardino Zagalo era elogiosamente referido como “incansável em promover a prosperidade daquele empório dos vinhos portugueses”. Com razão o fazia, pois era o Dr. Zagalo um prestigiado advogado com escritório no Largo dos Aviadores, embora natural de Lamego, o autor da iniciativa e o principal responsável pela sua organização.
Para além de escritor, com obras publicadas, como a conhecida peça de teatro “Heitorzinho”, era uma figura respeitada e influente. Tinha grandes amizades entre as pessoas que constituíam os corpos gerentes e o corpo de comando dos bombeiros, algumas das quais integraram as comissões das Festas do Socorro.

Conhecedor das dificuldades locais para levar a bom porto um evento daquela envergadura, o Dr. Bernardino Zagalo tratou de congregar todos os apoios possíveis. A Câmara Municipal cedeu a espaço da Alameda para instalação das exposições, várias salas dos Paços do Concelho para a realização de conferências sobre temas agrícolas. As instituições sociais mais representativas e dinâmicas prestaram a sua colaboração de acordo com as suas possibilidades. As condições do edifício sede dos bombeiros no Largo dos Aviadores não eram famosas, mas tinha a particularidade de oferecer espaço para albergar um bom número de visitantes. Em espírito de colaboração e de defesa dos interesses da sua terra, a Direcção colocou generosamente as suas instalações, à disposição “dos visitantes de fora da região alojamentos e outras comodidades no edifício da sua sede”.

Este é mais um dos casos em que os bombeiros da Régua puseram em evidência o valor da sua intervenção junto das populações, para além dos fogos e dos desastres.

Sendo a sua principal missão prestar protecção e socorro a bens e vidas da população, nunca deixaram de colaborar com a comunidade em realizações culturais, recreativas, desportivas e de solidariedade social. É o traço marcante da sua matriz desde o momento da sua fundação. Quando é necessário, os bombeiros, como força social, nunca deixam de marcar a sua generosa presença na lida com as causas sociais que interferem na qualidade de vida e bem-estar das pessoas e no desenvolvimento sócioeconómico da sua região.

Em 1916, os bombeiros empenharam-se activamente na realização da primeira Parada Agrícola que se realizou na Régua. Compreenderam que estava em causa o futuro da sua terra e da prosperidade da comercialização dos seus vinhos ao chamar a atenção do país para as potencialidades económicas da região duriense, ao mesmo tempo que consagrava a Régua como lugar de excelência de actividades comerciais.

Se a feira agrícola da Régua ganhou importância e sucesso públicos, durante alguns anos, ao esforço do Dr. Bernardino Zagalo o deveu. Após a sua morte, os reguenses nunca mais realizaram uma feira agrícola igual à que ele idealizou e concretizou, vai para as proximidades dum século. Para bem se conhecer o Dr. Bernardino Zagalo é de toda a conveniência ler uma crónica de Joaquim Pires (pseudónimo do Dr. João de Araújo Correia), publicada em 1978 no jornal “O Arrais”, onde salienta a personalidade deste ilustre cidadão como o brilhante mentor da referida exposição agrícola. Lembra-nos o seguinte:
(Clique nas imagens acima para ampliar)
“Mas, não é por ter escrito livros, e dezenas de artigos de jornal, que o Dr. Bernardino Zagalo, merece ser recordado pelos reguenses. É que foi ele o maior propulsor, o maior animador das festas do Socorro. Com grande visão de artista cenográfico, tentou dar a essas festas um cariz que as distinguisse de festas similares. Quis que nas procissões figurassem, sem irrespeito à religião, elementos etnológicos tão graciosos como os bois mansos, que figuram nas procissões de Lamego. Quis, sobretudo, que o número principal das festas do Socorro fosse o seu sonho, aquilo a que chamou com alguma originalidade, Parada Agrícola. Quis que a Régua mostrasse, nessa exposição, tudo o que vale como centro produtor dos melhores frutos, nela incluindo os melhores vinhos do mundo – tanto generosos como de consumo. Quis que se mostrassem na Parada as colossais abóboras das nossas terras fundas, batatas comparáveis a cabeças de doutor obtuso e o mel virgem, desabrochado entre rosmaninhos, urzes e estevas do Viando e outras partes selvagens. Mas, tudo perfumado de notas folclóricas – flores de ao pé da porta e prodigiosas rendas e bordados de mão caseira.

Falecido o Dr. Zagalo, morreu a Parada Agrícola. Morreu a macaca, acabaram as pantominas – como diz o povo. Mas, não seria justo que a Régua recordasse, de qualquer modo, o fundador da Parada? Não se faz caso do escritor, se não se tiver curiosidade de ler o que escreveu. Mas, o grande amigo da Régua não deve ser esquecido”.
- Peso da Régua, Março de 2010, J A Almeida.

sexta-feira, 19 de março de 2010

SELVA EM PAZ - Capítulo I

Capítulo I - O borracha, motor fora de borda, em várias travessias, colocou o pelotão na ilha de Edugo orlada de palmeiras, na embocadura do Zambeze com o Índico. Poderia ser, num prospecto turístico, um apelo de viagens de sonho; um daqueles lugares que os nostálgicos de paragens ignoradas procuram a vida inteira; lembrava um atol a rir-se da tecnologia.

Após contactos com o Samaçôa, bivacámos no terreiro em frente da sua palhota, abrigados por uma desconforme mangueira. Antes que a noite chegasse, comemos os restos da ração do dia: concreto de fruta, doce de pêra em tubo de plástico, como o das pastas dentífricas, e fluido de chocolate. O céu estrelado distraiu-nos do desespero mosquitado e dispensou os turnos de vigia.

Aliviados pela chegada da manhã, levantámos a tenda e perdemo-nos no paraíso de mil almas que vivem da mandioca e de algum caju donde conseguem uma aguardente postiça que lhes amoina as horas. É uma extensão administrativa do Posto de Bajone e, para irem e virem, deslocam-se em almadias, manobradas por remos espalmados em forma de guitarra, cirandando como barquinhos de papel pela correnteza de manhas conhecidas. Respira-se uma atmosfera de comunhão, colorida e sem pecado, a que não falta, sequer, uma rudimentar escola com paredes de bambu e cobertura de macubares num impressionismo tosco. A ordem de patrulha fixava, nesta paragem, a indagação de hipotéticos esconderijos de armamento e, a existirem, a sua captura. O Samaçôa, plágio fisionómico dum Gungunhana cinematográfico, rira-se, sonoramente, exibindo uma invejável saúde dentária, quando lhe manifestámos tais desconfianças. Dispensado o seu acompanhamento, batemos toda a ilhota, com demorada minúcia os outeiros de espinheiros, revolvemos círculos arenosos, aproveitando para lavar os corpos na rebentação das ondas, e confirmámos que melhor seria procurar uma agulha num palheiro. Antes da retirada, com a benevolência sorridente do corpulento caudilho deste pergaminho geográfico e da ganapada da escola, o enfermeiro fartou-se de dar consultas e distribuir comprimidos LM para o paludismo...

Atroando a selva - essa contradição de medos assombrados e harmonias de Vivaldi -, com a bicharada a abandonar as bermas e repetidas proibições de apontar a guelengues destrambelhados, chegámos, motores a fumegar, às imediações de Mocubela envolta numa espantosa claridade a espreitar por entre as mucibes de uma chiteta. Demos conta de um mulola aprazível e, logo ali, lavámos as caras sem nos importarmos com alguns nemas que, na borda, pachorrentamente, matavam a sede. Um pouco adiante, abria-se uma pequena chana de capim rasteiro, atalhada por murilaondes e palmeiras de cinco andares nas quais cantavam chiricos e - pareceu aos mais entendidos em ornitologia tropical - alguns barucos de mau agoiro.

Entrámos por um trilho, anavalhado no sopé de um monte, a desembocar num amplo quimbo em que tumultuaram, repentinamente, crianças desnudas, com barrigas de fuba, gritando aiués, pedindo quinhentas e disputando-as entre alegres tatiés e makas inocentes, ante a benevolência sorridente de velhos que, debaixo de uma mulemba, fumavam macanha como sobas à espera de vassalagem. Depois de os cumprimentarmos, em obediência à psico, dirigimo-nos ao Posto Administrativo, onde nos recebeu um descendente indiano. Depois de saudações efusivas, «Ora viva a civilização!...», facilitou-nos um telheiro nas traseiras dos seus reduzidos aposentos. No meio da conversa informativa da situação no terreno, arremedo de briefing de tropa menor, o jovem Chefe de Posto não resistiu ao seu memento familiar: filho de goeses, fugidos à invasão indiana, vociferava o seu anti-Nehruismo com uma convicção tão profunda quanto a aversão - quase ódio - marcada nos olhos. Despedimo-nos até à noite.

Mocubela fica num elevado sobranceiro ao rio Muchode, encontro de rotas para Pebane, Mocuba, Bajone e Molivala. Talvez por isso, ou porque a ambição, muitas vezes, se gera no ventre da aventura e se sublima na desforra de um passado indigente, logo se nota, no bravio do lugarejo, uma cantina - sucedâneo de locanda metropolitana - em que tudo se mercadeja: mandioca, cigarros, cerveja, vinho desgraduado, chitas garridas, gingas, rádios a pilhas, castanha de caju, peixe seco, farinha, alpercatas, petróleo, levas de contratados para os mares de chá do Gurué ou para a construção civil de Blantyre e Quelimane, óculos de sol, balalaicas, um rol infindável de precisos e apelações que – aqui como em qualquer lugar - as barrigas dispensam mas os olhos comem. É uma daquelas terras em que se vive por desconhecimento de horizontes diferentes, fruição caciqueira ou voluntarismo solitário.

Saltou-nos ao caminho um entroncado europeu de cara curtida pelo sol, olhos de eremita e sotaque das fragas transmontanas que a convivência autóctone não roubara. Tínhamos que o visitar no fim do dia, «desse para onde desse», para «bebermos umas cervejas e matar as barrigas de misérias, mas tem que ser o pessoal todo, ouviu?». Quando se confirmou a recíproca naturalidade regional quase nos esmagamos numamplexo de estremecimento: «Não percam muito tempo a andar por aí a gastar as botas e os canastros, aqui não há turras... Tomara Vila Real ter este sossego...»

A volta pelas Regedorias não escapou das regras. Em todos os pontos onde uma vida - uma só que fosse - pulsasse, distribuíamos panfletos apólogos, oferecíamos préstimos de curativos primários, transportávamos os que vinham das machambas distantes, interessávamo-nos pelas rotinas dos seus viveres, distribuíamos cigarros; os que, por desconfianças atávicas ou recusativos assumidos, esboçavam fugas à nossa chegada, erguíamos as armas, bem ao alto, bradando palavras de pazeamento; nem mesmo nos locais em que as coordenadas da carta conjecturavam esconsos e exigiam interrogatórios, as ameaças se esboçavam ou a prepotência se materializava.

Ao lusque-fusque, quando o sol levita num desmaio de paixão, as fogueiras inundam os terreiros, o mato se afunda num silêncio de justo, a bicharada se apronta para a caça da sobrevivênvia e os clamores irracionais do cio procuram respostas cevadas, o cantineiro transmontano, sob o alpendre da sua casa, distribuía Laurentinas geladas e sacos de amendoim.

- Não encham a barriga já! Depois não há lugar para o churrasco! – galhofava o Senhor Joaquim, seu nome de baptismo, mas conhecido por Vila Pouca. – Aqui toda a gente tem que me chamar por Vila Pouca, falta o Aguiar, mas era muito comprido e não calhava bem aos ouvidos desta cambada...

Abandonara a sua toca com carta de chamada de um primo estabelecido na Beira e enfeitiçara-se por uma mulata de corpo brasido. Como as servências familiares se cansam mais rapidamente que as estranhas, procurou um pouso em que fosse patrão. Tinha que ser um refúgio para, no desconhecimento, cumprir a sua felicidade, mas não um desterro sem poder desmaninhar o futuro. De fala em fala, pombos-correios verbais que vão tão longe que nem se percebe como chegam e não se perdem, andou por Mocuba onde já quase tudo estava desbravado. Tentou Pebane, com horizontes líquidos a abrir intentos, e cedo espertou que o seu assento deveria ser (re)criado na falta de concorrência... Descobriu, então, este lugar numa viagem de caçador, calculou necessidades de consumo e antecipou o prazer pelo espanto dos conhecidos.

- Chamaram-me de tudo: maluco, cafre, fugido da justiça e da mulher, eu que nunca casei, nem caso... Eu sei lá!... Até um parente afastado, a quem escrevera, me comunicou que constava, lá na terra, que eu matara o meu primo e andava fugido no mato!... Um riso!... Sabe, conterrâneo, as pessoas do puto são mais maliciosas que esta pretalhada...

Joaquim estava em África como se nunca tivesse sido de outro lugar. Bebeu água do coco, montou um arimbo, comprou umas bicuatas, arranjou um cabire para lhe espantar as invejas, mastigou muita ginguba, armou- se de maneliqueres e carabinas com que abateu fantasmas de ciúmes, caçou para a panela, perseguiu feras nos mangais e nos papiros de Marromeu, foi guia casual de safaris encomendados no Malawi, comeu cima com as mãos, encomendou-se a Nzambi, mandou ler os astros ao quimbanda mais afamado das redondezas, enfeitou-se de missangas, aprendeu o Macua e só não consultou os cuchcucheiros das lonjuras inóspitas, porque, já no chão natal, cimentara um ódio de estimação a todas as bruxarias desde que viu a Mãe matar galinhas e espalhar sal sobre o sangue para arredar maus olhados. A sua cantina e a lavra circundante, mais do que uma afirmação de posse, eram o seu entrelaçar africano, o seu pacto de sangue com aquela terra vermelha.

- Sabe, Alferes, já tenho o meu rectângulo para ficar. É no cemitério indígena, sou igual a eles... Só há uma diferença: quero uma cruz à cabeceira, e a minha mulatinha tem que rezar, todas as semanas, enquanto for viva, um padre-nosso e uma avé-maria que ela já se converteu à nossa religião, percebe?...

Lirila, a mulata do seu feitiço, de cabelos já brancos e barriga de alguns partos, ainda sinalizava, por entre as pregas do rosto de meia de leite escura, fagueiros antigos, engrandecidos por um riso que nenhum publicitário descobriria. Tinha o catitismo de uma matrona de favela brasileira ou de temba de coqueiros e a matiz da generosidade assimilada em comunhão de muitos anos. Pintara-se e aspergira-se para nos receber, distribuindo, de sorriso sempre feito, cervejas e pratos de mendubi como se quisesse quebrar acanhamentos. Domesticava a casa de alvenaria, construída junto à cubata antiga conservada como memorial, onde não faltava um gerador para iluminar as noites, alimentar a arca e o rádio, girar os discos e as ventoinhas de pé alto.

- Tem filhos, Senhor Joaquim?

- Cinco! – atirou sorridente. - Estão todos fora. O mais velho trabalha no chitengo da Gorongosa, anda lá a ensinar ricaços a caçar; dois estão em Lourenço Marques, um no comércio, tem um estabelecimento de roupas ali para os lados do Alto Maé, outro é escriturário no Polana. Os dois restantes, mais novos, um está nos serviços de terra da Deta, na Beira, e o mais novo de todos em Lisboa a estudar para advogado, vem cá uma vez por ano, de Julho a Setembro, quando são lá as férias grandes, mas o gajo já não está afeiçoado a isto, já me disse que, se calhar, ficava na Metrópole. Sabe como é, você para lá vai, os filhos só estão connosco quando lhes mudamos os fundilhos, depois querem andar à sua maneira, só servimos para calar as suas exigências. É a puta da vida, a gente cria-os e a mais não tem direito. Ó Mulher, então essas frangas nunca mais se comem? – rematou Joaquim, olhando-me matreiramente.

Ao fundo do quintal, dois mainatos, que manobravam as brasas sempre alimentadas com repetidas doses de carvão, como se a pergunta fosse para eles, espevitaram pressas, «tá cási patrão!», e deram mais umas voltas aos galináceos espalmados na grelha.

- Não acredito que o senhor fique aqui. Quando isto azedar vai até à terra.

- À terra?!... – exclamou por entre uma trovoada de gargalhadas. – A minha terra é esta! Julga que estou a armar-me em fazendeiro rico? Não tenho sisal, nem algodão, nem copra, nem chá, nem gado. A minha fortuna é isto que aqui vê – apontando, displicente, para as paredes que nos albergavam.

- A sua família...

- A minha família está toda em Moçambique, Alferes! Os meus Pais já morreram, o casebre onde viviam voltou ao dono, aquilo era arrendado. Ia voltar para onde? Para a serra guardar cabras? Para as minas de Jales? Para a lavoura, andar com uma besta a lavrar campos? E, depois, aquilo em Portugal não interessa nem ao Menino Jesus. Aquele velho de Santa Comba pôs o País à fome. Aqui há tudo: carne é só pegar na arma, mandioca e fruta é só apanhá-la, ninguém me aborrece. Sabe há quantos anos não vou a Portugal? Desde que saí de lá!...

- E se a Frelimo toma conta disto?

- E qual é o problema? Estou convencido de que, quando o velho morrer, que o tipo não é eterno, isto vai logo parar às mãos deles. Os americanos já se ofereceram para resolver isto, e nós, os brancos, também resolvíamos, mas o Ultramar é uma mina para os ricalhaços de lá. Não tenho medo nenhum da independência, pergunte aí se alguém tem razão de queixa de mim, só a malandragem...

- Então, a tropa que anda aqui a fazer?

- Você quis vir? Vocês andam todos obrigados ou não será verdade? Estão aqui porque os mamões de lá, que têm interesses cá, é que mandam nisto. Isto é tudo uma questão de massa, mais nada, o dinheiro não tem cor nem pátria. – Batendo-me paternalista nas costas: - Não quero desanimá-lo, homem! Deram-vos cabo da vida, andam aqui pelos cabelos, e dizem-vos que é para defender a Pátria, não é? A Pátria fazemo-la nós, a Pátria somos nós, a liberdade dum sítio, a fome na grande puta que a pariu, as invejas no raio que as parta, o sossego, o sono santo de portas abertas, a miséria no caralho que a foda... Desculpe lá, ó Alferes, você é da minha terra, porra!

- Nunca o chatearam?

- Chatearam como?

- O senhor fala sempre assim com as pessoas que não conhece, que nunca viu de lado...

- Ah! Já estou a perceber!... – cortou sorridente. - Mas quem é que sabe que eu existo?... Eu entendo o que diz... O meu amigo não tem cara desses... Há quantos anos – levantando-se de sorriso escancarado e braços abertos - não vejo um transmontano!!! Dê cá mais abraço! A Pide, aqui, sabe, anda entretida com os turras.

- Mas olhe que há muita tropa convencida de que está a defender a Pátria, não acredita nisso? Há muitas pessoas que pensam como o Senhor e isso soa-lhes a ingratidão.

- Alferes, não me leve a mal, isto são desabafos de um cacimbado... O meu filho mais novo, qualquer dia, também vai para uma frente e então é que vai ser...

Houve um mútuo descargo quando os mainatos anunciaram que estava tudo pronto. O senhor Joaquim gritou para o pessoal: «Toca a comer, malta! Se não chegar, assa-se mais, nem que esgote o galinheiro! Quem quiser com mais picante é só pedir!»

O Joaquim era, indiscutivelmente, um inconsútil transmontano: tinha um sorriso espontâneo como as montanhas da nascença e uma generosidade larga como os vales que aquelas defendem.

Quando abandonámos a sua quitanda já havia sombras dormindo nas caixas das viaturas e algumas nem se mexeram até chegarmos ao alpendre que o Chefe de Posto disponibilizara. Aqui, esperávamo-nos o jovem administrativo, sentado à soleira, a sugerir-nos uma visita, no dia seguinte, aos pontões da zona, mal o sol se levantasse.

Com as barrigas cheias, alguma etilização e disputa dos melhores turnos de plantão, o sono foi tão pesado que nem o silêncio nos acordou...
- Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
Continua...
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue! M. Coutinho Nogueira Borges é natural da cidade de Peso da Régua e cumpriu serviço militar em Moçambique no tempo em que o país era colónia de Portugal.

terça-feira, 9 de março de 2010

AGUARELA ALDEÃ

(Clique na imagem para ampliar)

A gata, indolentemente, baloiça-se nas pernas retezadas, roça-se pelo chão e estira-se, preguiçosa, na sombra de um degrau. Três gatinhos, gemendo miaus aflitos, acolhem-se, submissos, ao aconchego materno. Ela estende-se, ainda mais, e as bocas, esfomeadas, ocupam-lhe o ventre.

As folhas dos limoeiros e das macieiras, para lá do poço, revolvem-se, em suave concordância, à aragem da tarde. O jardim, debruado de buxo, não escapa à suavidade. No alto, flocos de nuvens de um azul claro, evolucionam lentas, quase paradas. O sol, rutilante, trespassa-as, desenhando reverberações líquidas. Ouvem-se risos desencontrados com choros de crianças.

- Mãe, quero broa...
- Já vai!... Olha!... Credo!... Nem me deixais pousar o caneco!... Minha Nossa Senhora!...

Nas lajes do quelho, polidas pelos passos dos séculos, ressoam tamancos. Estacam junto ao portão; desfiam-se conversas de faina.

- A novidade até nem vai mal... Umas pingas de auga não era pior... Inda há bocado, ali no S. Pedro, vi uma malvasia aganadinha de todo... Não vamos a um copinho para amaciar?!...
- Venho de lá, mas mais um não faz diferença....

Os socos e a conversa abafam-se no serrim do chão da taberna do Zulmiro.

Negros abelhões voam e pousam na busca do néctar das flores. Um pássaro, entontecido pelo lumaréu, ziguezagueia, espadanando as asas, até se quedar num galho da ramada, olhando à volta a confirmar a segurança do lugar.

Vem-me o monodiar dos melros e dos pintassilgos presos nas gaiolas, esvoaçando irritados, debicando painço, chapinhando na água, metendo os bicos por entre os arames, gritando pela liberdade, fartos da prisão preventiva sem culpa formada. Na casota, o Leão ladra, forçando o cadeado, e os melros e os pintassilgos agitam-se mais. Tanta clausura nesta tarde de paz...

Um pobre, sem ser sexta-feira, pede uma esmola «pela alminha de quem lá tem». A Fernanda enche os recipientes das gaiolas com água e dá um jeito aos ovos de choco. O Silvério vem regar as laranjeiras; aproveito para saber do Zé.

- Lá está... Diz ele que a França é outra loiça... Ganha bem, mas dorme num barraco. Anda na apanha dos morangos. Aquilo são extensões que só visto, diz que aquela em que anda tem p´raí, à segurança, uns cinco quilómetros de comprimanto!
- Qualquer dia lá vai você...
- Tá queto ó preto! Nã... Já num tenho idade para francesices...

O Silvério, camisa e barba de sete dias, calças remendadas e olhar de saudade, puxa a corda do poço, enche a cova em volta dos troncos das laranjeiras, puxa de um Definitivo, acende-o no isqueiro de morrão, dá as boas tardes, bate o portão, volta a abri-lo; diz-me adeus.

- Um dia destes há-de-me ajudar a escrever uma carta ao meu Zé, ´stá bem? – pergunta, virando-se para mim no cimo da rampa.
- Mas, ó Senhor Silvério, uma carta é uma coisa muito pessoal, bem vê...
- Eu não tenho segredos... É que eu num atino bem com as letras e assim...
- Pronto, está bem, quando quiser diga...

O Silvério lá vai, portão fora, dissipar as lembranças no balcão do Zulmiro.

No fundo do quintal, empoleiro-me no muro e relanço o olhar pelo vale que desce, por entre montes rendilhados de cepas, até o rio que, desde Espanha, retém vestígios de melusinas e estende cansaços de tensões. O céu é tão limpo e o ar tão puro que atordoam. Desejo que a eternidade seja assim, envolta num silêncio igual, uma imponderabilidade de limbo, um sossego que se tacteia, um aroma a roseiras, broa, giestas e laranjeiras como uma Páscoa permanente...

Quando o sol se despede, contrito pelo estigma do ciclo, no cerro de Avões, não é o fatalismo que cai, é a esperança que permanece como as flores que criam os frutos de amanhã.
- Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
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