segunda-feira, 22 de março de 2010

Visita do Ministro do Fomento ao Quartel dos Bombeiros

Hoje, é de dia de concentrar a atenção num interessante artigo publicado pela revista “Ilustração Portuguesa”, nº 541, de 3 de Julho de 1916, sobre visita do Dr. Fernandes Costa, Ministro do Fomento, ao quartel dos Bombeiros Voluntários da Régua, ainda ele se situava no Largo dos Aviadores, em edifício, por sinal, ainda existente.

Nesse artigo se divulgam duas fotografias do primeiro quartel que serviu os bombeiros da Régua até meados dos anos 20 do século passado. Dele não se conhecia mais do que a fachada principal, fotografada para ilustrar um postal de colecção editada por José Alves Barreto.

As duas fotografias permitem-nos recordar a fachada com a sua varanda espaçosa, onde uma larga placa anunciava o nome da associação, e também parte do interior, a famosa sala de reuniões dos associados e dos corpos directivos.

Uma visita de tão ilustre governante da primeira república e da não menos ilustre comitiva que o acompanhava, que integrava o Dr. Câmara Pestana, director geral da agricultura, o Dr. Nuno Simões, Governador Civil do Distrito de Vila Real, o senador Jerónimo de Matos e o jornalista reguense Camilo Guedes Castelo Branco, representou elevado significado social e promocional dos nossos bombeiros.

Sua Excelência, o Ministro do Fomento deslocara-se à Régua no âmbito de visita a toda a província de Trás-os-Montes, em apoio da exposição agrícola de produtos regionais, realizada em Agosto, integrada no programa das Festas do Socorro. Anunciava a revista que se tratava duma mostra “de produtos da região e uma parada em que figuravam os seus melhores exemplares pecuários”.

Na peça jornalística a que nos vimos referindo o Dr. Bernardino Zagalo era elogiosamente referido como “incansável em promover a prosperidade daquele empório dos vinhos portugueses”. Com razão o fazia, pois era o Dr. Zagalo um prestigiado advogado com escritório no Largo dos Aviadores, embora natural de Lamego, o autor da iniciativa e o principal responsável pela sua organização.
Para além de escritor, com obras publicadas, como a conhecida peça de teatro “Heitorzinho”, era uma figura respeitada e influente. Tinha grandes amizades entre as pessoas que constituíam os corpos gerentes e o corpo de comando dos bombeiros, algumas das quais integraram as comissões das Festas do Socorro.

Conhecedor das dificuldades locais para levar a bom porto um evento daquela envergadura, o Dr. Bernardino Zagalo tratou de congregar todos os apoios possíveis. A Câmara Municipal cedeu a espaço da Alameda para instalação das exposições, várias salas dos Paços do Concelho para a realização de conferências sobre temas agrícolas. As instituições sociais mais representativas e dinâmicas prestaram a sua colaboração de acordo com as suas possibilidades. As condições do edifício sede dos bombeiros no Largo dos Aviadores não eram famosas, mas tinha a particularidade de oferecer espaço para albergar um bom número de visitantes. Em espírito de colaboração e de defesa dos interesses da sua terra, a Direcção colocou generosamente as suas instalações, à disposição “dos visitantes de fora da região alojamentos e outras comodidades no edifício da sua sede”.

Este é mais um dos casos em que os bombeiros da Régua puseram em evidência o valor da sua intervenção junto das populações, para além dos fogos e dos desastres.

Sendo a sua principal missão prestar protecção e socorro a bens e vidas da população, nunca deixaram de colaborar com a comunidade em realizações culturais, recreativas, desportivas e de solidariedade social. É o traço marcante da sua matriz desde o momento da sua fundação. Quando é necessário, os bombeiros, como força social, nunca deixam de marcar a sua generosa presença na lida com as causas sociais que interferem na qualidade de vida e bem-estar das pessoas e no desenvolvimento sócioeconómico da sua região.

Em 1916, os bombeiros empenharam-se activamente na realização da primeira Parada Agrícola que se realizou na Régua. Compreenderam que estava em causa o futuro da sua terra e da prosperidade da comercialização dos seus vinhos ao chamar a atenção do país para as potencialidades económicas da região duriense, ao mesmo tempo que consagrava a Régua como lugar de excelência de actividades comerciais.

Se a feira agrícola da Régua ganhou importância e sucesso públicos, durante alguns anos, ao esforço do Dr. Bernardino Zagalo o deveu. Após a sua morte, os reguenses nunca mais realizaram uma feira agrícola igual à que ele idealizou e concretizou, vai para as proximidades dum século. Para bem se conhecer o Dr. Bernardino Zagalo é de toda a conveniência ler uma crónica de Joaquim Pires (pseudónimo do Dr. João de Araújo Correia), publicada em 1978 no jornal “O Arrais”, onde salienta a personalidade deste ilustre cidadão como o brilhante mentor da referida exposição agrícola. Lembra-nos o seguinte:
(Clique nas imagens acima para ampliar)
“Mas, não é por ter escrito livros, e dezenas de artigos de jornal, que o Dr. Bernardino Zagalo, merece ser recordado pelos reguenses. É que foi ele o maior propulsor, o maior animador das festas do Socorro. Com grande visão de artista cenográfico, tentou dar a essas festas um cariz que as distinguisse de festas similares. Quis que nas procissões figurassem, sem irrespeito à religião, elementos etnológicos tão graciosos como os bois mansos, que figuram nas procissões de Lamego. Quis, sobretudo, que o número principal das festas do Socorro fosse o seu sonho, aquilo a que chamou com alguma originalidade, Parada Agrícola. Quis que a Régua mostrasse, nessa exposição, tudo o que vale como centro produtor dos melhores frutos, nela incluindo os melhores vinhos do mundo – tanto generosos como de consumo. Quis que se mostrassem na Parada as colossais abóboras das nossas terras fundas, batatas comparáveis a cabeças de doutor obtuso e o mel virgem, desabrochado entre rosmaninhos, urzes e estevas do Viando e outras partes selvagens. Mas, tudo perfumado de notas folclóricas – flores de ao pé da porta e prodigiosas rendas e bordados de mão caseira.

Falecido o Dr. Zagalo, morreu a Parada Agrícola. Morreu a macaca, acabaram as pantominas – como diz o povo. Mas, não seria justo que a Régua recordasse, de qualquer modo, o fundador da Parada? Não se faz caso do escritor, se não se tiver curiosidade de ler o que escreveu. Mas, o grande amigo da Régua não deve ser esquecido”.
- Peso da Régua, Março de 2010, J A Almeida.

sexta-feira, 19 de março de 2010

SELVA EM PAZ - Capítulo I

Capítulo I - O borracha, motor fora de borda, em várias travessias, colocou o pelotão na ilha de Edugo orlada de palmeiras, na embocadura do Zambeze com o Índico. Poderia ser, num prospecto turístico, um apelo de viagens de sonho; um daqueles lugares que os nostálgicos de paragens ignoradas procuram a vida inteira; lembrava um atol a rir-se da tecnologia.

Após contactos com o Samaçôa, bivacámos no terreiro em frente da sua palhota, abrigados por uma desconforme mangueira. Antes que a noite chegasse, comemos os restos da ração do dia: concreto de fruta, doce de pêra em tubo de plástico, como o das pastas dentífricas, e fluido de chocolate. O céu estrelado distraiu-nos do desespero mosquitado e dispensou os turnos de vigia.

Aliviados pela chegada da manhã, levantámos a tenda e perdemo-nos no paraíso de mil almas que vivem da mandioca e de algum caju donde conseguem uma aguardente postiça que lhes amoina as horas. É uma extensão administrativa do Posto de Bajone e, para irem e virem, deslocam-se em almadias, manobradas por remos espalmados em forma de guitarra, cirandando como barquinhos de papel pela correnteza de manhas conhecidas. Respira-se uma atmosfera de comunhão, colorida e sem pecado, a que não falta, sequer, uma rudimentar escola com paredes de bambu e cobertura de macubares num impressionismo tosco. A ordem de patrulha fixava, nesta paragem, a indagação de hipotéticos esconderijos de armamento e, a existirem, a sua captura. O Samaçôa, plágio fisionómico dum Gungunhana cinematográfico, rira-se, sonoramente, exibindo uma invejável saúde dentária, quando lhe manifestámos tais desconfianças. Dispensado o seu acompanhamento, batemos toda a ilhota, com demorada minúcia os outeiros de espinheiros, revolvemos círculos arenosos, aproveitando para lavar os corpos na rebentação das ondas, e confirmámos que melhor seria procurar uma agulha num palheiro. Antes da retirada, com a benevolência sorridente do corpulento caudilho deste pergaminho geográfico e da ganapada da escola, o enfermeiro fartou-se de dar consultas e distribuir comprimidos LM para o paludismo...

Atroando a selva - essa contradição de medos assombrados e harmonias de Vivaldi -, com a bicharada a abandonar as bermas e repetidas proibições de apontar a guelengues destrambelhados, chegámos, motores a fumegar, às imediações de Mocubela envolta numa espantosa claridade a espreitar por entre as mucibes de uma chiteta. Demos conta de um mulola aprazível e, logo ali, lavámos as caras sem nos importarmos com alguns nemas que, na borda, pachorrentamente, matavam a sede. Um pouco adiante, abria-se uma pequena chana de capim rasteiro, atalhada por murilaondes e palmeiras de cinco andares nas quais cantavam chiricos e - pareceu aos mais entendidos em ornitologia tropical - alguns barucos de mau agoiro.

Entrámos por um trilho, anavalhado no sopé de um monte, a desembocar num amplo quimbo em que tumultuaram, repentinamente, crianças desnudas, com barrigas de fuba, gritando aiués, pedindo quinhentas e disputando-as entre alegres tatiés e makas inocentes, ante a benevolência sorridente de velhos que, debaixo de uma mulemba, fumavam macanha como sobas à espera de vassalagem. Depois de os cumprimentarmos, em obediência à psico, dirigimo-nos ao Posto Administrativo, onde nos recebeu um descendente indiano. Depois de saudações efusivas, «Ora viva a civilização!...», facilitou-nos um telheiro nas traseiras dos seus reduzidos aposentos. No meio da conversa informativa da situação no terreno, arremedo de briefing de tropa menor, o jovem Chefe de Posto não resistiu ao seu memento familiar: filho de goeses, fugidos à invasão indiana, vociferava o seu anti-Nehruismo com uma convicção tão profunda quanto a aversão - quase ódio - marcada nos olhos. Despedimo-nos até à noite.

Mocubela fica num elevado sobranceiro ao rio Muchode, encontro de rotas para Pebane, Mocuba, Bajone e Molivala. Talvez por isso, ou porque a ambição, muitas vezes, se gera no ventre da aventura e se sublima na desforra de um passado indigente, logo se nota, no bravio do lugarejo, uma cantina - sucedâneo de locanda metropolitana - em que tudo se mercadeja: mandioca, cigarros, cerveja, vinho desgraduado, chitas garridas, gingas, rádios a pilhas, castanha de caju, peixe seco, farinha, alpercatas, petróleo, levas de contratados para os mares de chá do Gurué ou para a construção civil de Blantyre e Quelimane, óculos de sol, balalaicas, um rol infindável de precisos e apelações que – aqui como em qualquer lugar - as barrigas dispensam mas os olhos comem. É uma daquelas terras em que se vive por desconhecimento de horizontes diferentes, fruição caciqueira ou voluntarismo solitário.

Saltou-nos ao caminho um entroncado europeu de cara curtida pelo sol, olhos de eremita e sotaque das fragas transmontanas que a convivência autóctone não roubara. Tínhamos que o visitar no fim do dia, «desse para onde desse», para «bebermos umas cervejas e matar as barrigas de misérias, mas tem que ser o pessoal todo, ouviu?». Quando se confirmou a recíproca naturalidade regional quase nos esmagamos numamplexo de estremecimento: «Não percam muito tempo a andar por aí a gastar as botas e os canastros, aqui não há turras... Tomara Vila Real ter este sossego...»

A volta pelas Regedorias não escapou das regras. Em todos os pontos onde uma vida - uma só que fosse - pulsasse, distribuíamos panfletos apólogos, oferecíamos préstimos de curativos primários, transportávamos os que vinham das machambas distantes, interessávamo-nos pelas rotinas dos seus viveres, distribuíamos cigarros; os que, por desconfianças atávicas ou recusativos assumidos, esboçavam fugas à nossa chegada, erguíamos as armas, bem ao alto, bradando palavras de pazeamento; nem mesmo nos locais em que as coordenadas da carta conjecturavam esconsos e exigiam interrogatórios, as ameaças se esboçavam ou a prepotência se materializava.

Ao lusque-fusque, quando o sol levita num desmaio de paixão, as fogueiras inundam os terreiros, o mato se afunda num silêncio de justo, a bicharada se apronta para a caça da sobrevivênvia e os clamores irracionais do cio procuram respostas cevadas, o cantineiro transmontano, sob o alpendre da sua casa, distribuía Laurentinas geladas e sacos de amendoim.

- Não encham a barriga já! Depois não há lugar para o churrasco! – galhofava o Senhor Joaquim, seu nome de baptismo, mas conhecido por Vila Pouca. – Aqui toda a gente tem que me chamar por Vila Pouca, falta o Aguiar, mas era muito comprido e não calhava bem aos ouvidos desta cambada...

Abandonara a sua toca com carta de chamada de um primo estabelecido na Beira e enfeitiçara-se por uma mulata de corpo brasido. Como as servências familiares se cansam mais rapidamente que as estranhas, procurou um pouso em que fosse patrão. Tinha que ser um refúgio para, no desconhecimento, cumprir a sua felicidade, mas não um desterro sem poder desmaninhar o futuro. De fala em fala, pombos-correios verbais que vão tão longe que nem se percebe como chegam e não se perdem, andou por Mocuba onde já quase tudo estava desbravado. Tentou Pebane, com horizontes líquidos a abrir intentos, e cedo espertou que o seu assento deveria ser (re)criado na falta de concorrência... Descobriu, então, este lugar numa viagem de caçador, calculou necessidades de consumo e antecipou o prazer pelo espanto dos conhecidos.

- Chamaram-me de tudo: maluco, cafre, fugido da justiça e da mulher, eu que nunca casei, nem caso... Eu sei lá!... Até um parente afastado, a quem escrevera, me comunicou que constava, lá na terra, que eu matara o meu primo e andava fugido no mato!... Um riso!... Sabe, conterrâneo, as pessoas do puto são mais maliciosas que esta pretalhada...

Joaquim estava em África como se nunca tivesse sido de outro lugar. Bebeu água do coco, montou um arimbo, comprou umas bicuatas, arranjou um cabire para lhe espantar as invejas, mastigou muita ginguba, armou- se de maneliqueres e carabinas com que abateu fantasmas de ciúmes, caçou para a panela, perseguiu feras nos mangais e nos papiros de Marromeu, foi guia casual de safaris encomendados no Malawi, comeu cima com as mãos, encomendou-se a Nzambi, mandou ler os astros ao quimbanda mais afamado das redondezas, enfeitou-se de missangas, aprendeu o Macua e só não consultou os cuchcucheiros das lonjuras inóspitas, porque, já no chão natal, cimentara um ódio de estimação a todas as bruxarias desde que viu a Mãe matar galinhas e espalhar sal sobre o sangue para arredar maus olhados. A sua cantina e a lavra circundante, mais do que uma afirmação de posse, eram o seu entrelaçar africano, o seu pacto de sangue com aquela terra vermelha.

- Sabe, Alferes, já tenho o meu rectângulo para ficar. É no cemitério indígena, sou igual a eles... Só há uma diferença: quero uma cruz à cabeceira, e a minha mulatinha tem que rezar, todas as semanas, enquanto for viva, um padre-nosso e uma avé-maria que ela já se converteu à nossa religião, percebe?...

Lirila, a mulata do seu feitiço, de cabelos já brancos e barriga de alguns partos, ainda sinalizava, por entre as pregas do rosto de meia de leite escura, fagueiros antigos, engrandecidos por um riso que nenhum publicitário descobriria. Tinha o catitismo de uma matrona de favela brasileira ou de temba de coqueiros e a matiz da generosidade assimilada em comunhão de muitos anos. Pintara-se e aspergira-se para nos receber, distribuindo, de sorriso sempre feito, cervejas e pratos de mendubi como se quisesse quebrar acanhamentos. Domesticava a casa de alvenaria, construída junto à cubata antiga conservada como memorial, onde não faltava um gerador para iluminar as noites, alimentar a arca e o rádio, girar os discos e as ventoinhas de pé alto.

- Tem filhos, Senhor Joaquim?

- Cinco! – atirou sorridente. - Estão todos fora. O mais velho trabalha no chitengo da Gorongosa, anda lá a ensinar ricaços a caçar; dois estão em Lourenço Marques, um no comércio, tem um estabelecimento de roupas ali para os lados do Alto Maé, outro é escriturário no Polana. Os dois restantes, mais novos, um está nos serviços de terra da Deta, na Beira, e o mais novo de todos em Lisboa a estudar para advogado, vem cá uma vez por ano, de Julho a Setembro, quando são lá as férias grandes, mas o gajo já não está afeiçoado a isto, já me disse que, se calhar, ficava na Metrópole. Sabe como é, você para lá vai, os filhos só estão connosco quando lhes mudamos os fundilhos, depois querem andar à sua maneira, só servimos para calar as suas exigências. É a puta da vida, a gente cria-os e a mais não tem direito. Ó Mulher, então essas frangas nunca mais se comem? – rematou Joaquim, olhando-me matreiramente.

Ao fundo do quintal, dois mainatos, que manobravam as brasas sempre alimentadas com repetidas doses de carvão, como se a pergunta fosse para eles, espevitaram pressas, «tá cási patrão!», e deram mais umas voltas aos galináceos espalmados na grelha.

- Não acredito que o senhor fique aqui. Quando isto azedar vai até à terra.

- À terra?!... – exclamou por entre uma trovoada de gargalhadas. – A minha terra é esta! Julga que estou a armar-me em fazendeiro rico? Não tenho sisal, nem algodão, nem copra, nem chá, nem gado. A minha fortuna é isto que aqui vê – apontando, displicente, para as paredes que nos albergavam.

- A sua família...

- A minha família está toda em Moçambique, Alferes! Os meus Pais já morreram, o casebre onde viviam voltou ao dono, aquilo era arrendado. Ia voltar para onde? Para a serra guardar cabras? Para as minas de Jales? Para a lavoura, andar com uma besta a lavrar campos? E, depois, aquilo em Portugal não interessa nem ao Menino Jesus. Aquele velho de Santa Comba pôs o País à fome. Aqui há tudo: carne é só pegar na arma, mandioca e fruta é só apanhá-la, ninguém me aborrece. Sabe há quantos anos não vou a Portugal? Desde que saí de lá!...

- E se a Frelimo toma conta disto?

- E qual é o problema? Estou convencido de que, quando o velho morrer, que o tipo não é eterno, isto vai logo parar às mãos deles. Os americanos já se ofereceram para resolver isto, e nós, os brancos, também resolvíamos, mas o Ultramar é uma mina para os ricalhaços de lá. Não tenho medo nenhum da independência, pergunte aí se alguém tem razão de queixa de mim, só a malandragem...

- Então, a tropa que anda aqui a fazer?

- Você quis vir? Vocês andam todos obrigados ou não será verdade? Estão aqui porque os mamões de lá, que têm interesses cá, é que mandam nisto. Isto é tudo uma questão de massa, mais nada, o dinheiro não tem cor nem pátria. – Batendo-me paternalista nas costas: - Não quero desanimá-lo, homem! Deram-vos cabo da vida, andam aqui pelos cabelos, e dizem-vos que é para defender a Pátria, não é? A Pátria fazemo-la nós, a Pátria somos nós, a liberdade dum sítio, a fome na grande puta que a pariu, as invejas no raio que as parta, o sossego, o sono santo de portas abertas, a miséria no caralho que a foda... Desculpe lá, ó Alferes, você é da minha terra, porra!

- Nunca o chatearam?

- Chatearam como?

- O senhor fala sempre assim com as pessoas que não conhece, que nunca viu de lado...

- Ah! Já estou a perceber!... – cortou sorridente. - Mas quem é que sabe que eu existo?... Eu entendo o que diz... O meu amigo não tem cara desses... Há quantos anos – levantando-se de sorriso escancarado e braços abertos - não vejo um transmontano!!! Dê cá mais abraço! A Pide, aqui, sabe, anda entretida com os turras.

- Mas olhe que há muita tropa convencida de que está a defender a Pátria, não acredita nisso? Há muitas pessoas que pensam como o Senhor e isso soa-lhes a ingratidão.

- Alferes, não me leve a mal, isto são desabafos de um cacimbado... O meu filho mais novo, qualquer dia, também vai para uma frente e então é que vai ser...

Houve um mútuo descargo quando os mainatos anunciaram que estava tudo pronto. O senhor Joaquim gritou para o pessoal: «Toca a comer, malta! Se não chegar, assa-se mais, nem que esgote o galinheiro! Quem quiser com mais picante é só pedir!»

O Joaquim era, indiscutivelmente, um inconsútil transmontano: tinha um sorriso espontâneo como as montanhas da nascença e uma generosidade larga como os vales que aquelas defendem.

Quando abandonámos a sua quitanda já havia sombras dormindo nas caixas das viaturas e algumas nem se mexeram até chegarmos ao alpendre que o Chefe de Posto disponibilizara. Aqui, esperávamo-nos o jovem administrativo, sentado à soleira, a sugerir-nos uma visita, no dia seguinte, aos pontões da zona, mal o sol se levantasse.

Com as barrigas cheias, alguma etilização e disputa dos melhores turnos de plantão, o sono foi tão pesado que nem o silêncio nos acordou...
- Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
Continua...
  • Outros textos de Manuel Coutinho Nogueira Borges neste blogue! M. Coutinho Nogueira Borges é natural da cidade de Peso da Régua e cumpriu serviço militar em Moçambique no tempo em que o país era colónia de Portugal.

terça-feira, 9 de março de 2010

AGUARELA ALDEÃ

(Clique na imagem para ampliar)

A gata, indolentemente, baloiça-se nas pernas retezadas, roça-se pelo chão e estira-se, preguiçosa, na sombra de um degrau. Três gatinhos, gemendo miaus aflitos, acolhem-se, submissos, ao aconchego materno. Ela estende-se, ainda mais, e as bocas, esfomeadas, ocupam-lhe o ventre.

As folhas dos limoeiros e das macieiras, para lá do poço, revolvem-se, em suave concordância, à aragem da tarde. O jardim, debruado de buxo, não escapa à suavidade. No alto, flocos de nuvens de um azul claro, evolucionam lentas, quase paradas. O sol, rutilante, trespassa-as, desenhando reverberações líquidas. Ouvem-se risos desencontrados com choros de crianças.

- Mãe, quero broa...
- Já vai!... Olha!... Credo!... Nem me deixais pousar o caneco!... Minha Nossa Senhora!...

Nas lajes do quelho, polidas pelos passos dos séculos, ressoam tamancos. Estacam junto ao portão; desfiam-se conversas de faina.

- A novidade até nem vai mal... Umas pingas de auga não era pior... Inda há bocado, ali no S. Pedro, vi uma malvasia aganadinha de todo... Não vamos a um copinho para amaciar?!...
- Venho de lá, mas mais um não faz diferença....

Os socos e a conversa abafam-se no serrim do chão da taberna do Zulmiro.

Negros abelhões voam e pousam na busca do néctar das flores. Um pássaro, entontecido pelo lumaréu, ziguezagueia, espadanando as asas, até se quedar num galho da ramada, olhando à volta a confirmar a segurança do lugar.

Vem-me o monodiar dos melros e dos pintassilgos presos nas gaiolas, esvoaçando irritados, debicando painço, chapinhando na água, metendo os bicos por entre os arames, gritando pela liberdade, fartos da prisão preventiva sem culpa formada. Na casota, o Leão ladra, forçando o cadeado, e os melros e os pintassilgos agitam-se mais. Tanta clausura nesta tarde de paz...

Um pobre, sem ser sexta-feira, pede uma esmola «pela alminha de quem lá tem». A Fernanda enche os recipientes das gaiolas com água e dá um jeito aos ovos de choco. O Silvério vem regar as laranjeiras; aproveito para saber do Zé.

- Lá está... Diz ele que a França é outra loiça... Ganha bem, mas dorme num barraco. Anda na apanha dos morangos. Aquilo são extensões que só visto, diz que aquela em que anda tem p´raí, à segurança, uns cinco quilómetros de comprimanto!
- Qualquer dia lá vai você...
- Tá queto ó preto! Nã... Já num tenho idade para francesices...

O Silvério, camisa e barba de sete dias, calças remendadas e olhar de saudade, puxa a corda do poço, enche a cova em volta dos troncos das laranjeiras, puxa de um Definitivo, acende-o no isqueiro de morrão, dá as boas tardes, bate o portão, volta a abri-lo; diz-me adeus.

- Um dia destes há-de-me ajudar a escrever uma carta ao meu Zé, ´stá bem? – pergunta, virando-se para mim no cimo da rampa.
- Mas, ó Senhor Silvério, uma carta é uma coisa muito pessoal, bem vê...
- Eu não tenho segredos... É que eu num atino bem com as letras e assim...
- Pronto, está bem, quando quiser diga...

O Silvério lá vai, portão fora, dissipar as lembranças no balcão do Zulmiro.

No fundo do quintal, empoleiro-me no muro e relanço o olhar pelo vale que desce, por entre montes rendilhados de cepas, até o rio que, desde Espanha, retém vestígios de melusinas e estende cansaços de tensões. O céu é tão limpo e o ar tão puro que atordoam. Desejo que a eternidade seja assim, envolta num silêncio igual, uma imponderabilidade de limbo, um sossego que se tacteia, um aroma a roseiras, broa, giestas e laranjeiras como uma Páscoa permanente...

Quando o sol se despede, contrito pelo estigma do ciclo, no cerro de Avões, não é o fatalismo que cai, é a esperança que permanece como as flores que criam os frutos de amanhã.
- Porto, M. Nogueira Borges - do livro "Lagar da Memória".
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quinta-feira, 4 de março de 2010

Recordar o Comandante Afonso Soares

Por: José Alfredo Almeida
José Afonso de Oliveira Soares, filho de João de Oliveira Soares e de Josefa Joaquina Macedo, nasceu na freguesia e concelho do Peso da Régua, em 26 de Novembro de 1852 e faleceu de velhice, conforme consta da certidão de óbito, no estado de viúvo de Teresa Bernardes Pereira, em 21 de Outubro de 1939, na rua Marquês de Pombal, onde sempre viveu, com a idade quase completa de 87 anos.

Segundo o escritor João de Araújo Correia, que lhe traçou um breve retrato na crónica “Configurações”, do seu livro “Horas Mortas” este homem cuja vida atravessou três regimes políticos - a monarquia, a república e a ditadura salazarista - foi um “ notável entre vizinhos – ele, que foi artista”, salientado que a “barba branca e cachimbo simbolizaram a sua distinção, anos e anos, porque o Senhor Soares, à parte os talentos, tinha o dom da bonomia inalterável”.

Da sua actividade profissional, sabe-se que começou por trabalhar com técnico e desenhador nas obras da construção da Linha do Douro do Marco de Canavezes até à estação da Régua. Depois ingressou nos quadros da câmara municipal onde exerceu as funções chefe da secretaria. Já na reforma, foi tesoureiro da filial do Porto do “Banco da Régua”. No regime monárquico ainda desempenhou, por algum tempo, as funções politicas de administrador do concelho do Peso da Régua, mas não foi a politica que o mais seduziu na sua actividade activa e cívica. Para o escritor reguense, que o conheceu e lhe admirou os seus talentos, “tinha merecido o título de decano dos jornalistas de província. Mas não foi, só jornalista. Foi desenhador, gravador, modelador e pintor.”

Na verdade, Afonso Soares destacou-se como jornalista na imprensa local, embora também se tenha dedicado à pintura, que ensinou gratuitamente numa escola e deixou vários quadros pintados, entre os quais uma colecção de retratos que se encontram na posse da Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua, à escultura e até à fotografia. Também escreveu e muito, poesia, folhetins e contos, publicados nos jornais, e dois livros, um ensaio sobre turismo e uma monografia da historia da Régua.

Como jornalista, foi director do “Jornal da Régua” (1930), onde publicou o folhetim “ Álvaro -Esboços da Vida Real”. Colaborou em vários jornais como “O Dissidente”, “Cinco de Outubro”, “O Marão” (1926), para o qual desenhou o cabeçalho, “O Transmontano” (1922), e a “A Região Duriense” (1930).

Neste último semanário, assinou um interessante artigo intitulado “A Capital do Douro”, a dar eco à questão duriense. Sobre esse assunto, eis o pensamento, ainda pleno de actualidade: “E enquanto o Douro for Douro não podem os seus filhos esperar outra vida que não seja a defender o seu vinho. Um desfalecimento tem consequências funestas. Ninguém deve esquecer que atrás de uma dificuldade, logo outra aparece. E todas elas se vêem reflectir na sua capital do Douro - a vila do Peso da Régua – a que se tem dado e com razão de “coração do Douro”. (…) A Régua foi, e será o centro desta região privilegiada. Já o era quando, pobre e triste povoação sertaneja, fez parte dos concelhos de Santa Marta e Godim e já era centro consagrado da região quando o governo de D. José criou a Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro (…). Em anotação ao texto, o director do jornal, Júlio Vasques agradecia-lhe a sua colaboração: “Honra este semanário este nosso amigo e decano dos jornalistas provincianos com vastíssima erudição que lhe provem do aturado estudo que se tem entregado nas investigações históricas do concelho do Peso da Régua. Os nossos leitores terão mais que uma vez de apreciar os seus artigos cheios de ensinamentos preciosos (…) expondo ao pais e ao estrangeiro a riqueza que o esforço do viticultor duriense soube arrancar das montanhas entre as quais corre tumultuoso o nosso rio Douro”.
Afonso Soares deixou publicadas três obras literárias: “Apontamentos para a História da Vila do Peso da Régua” (1907), o ensaio “Régua - Coração do Douro -Centro de Excursões e de Turismo” (1925) e a “História da Vila e Concelho do Peso da Régua” (1936-38), mandada elaborar pela Comissão Administrativa, em 1936, ao “brilhante jornalista reguense (…) de competência indiscutível desta natureza”. Em 1979, a Câmara Municipal da Régua promoveu uma 2ª edição do livro, que para o presidente Prof. Renato Aguiar significava “dar satisfação aos inúmeros pedidos para nova edição (…) mandou imprimir este brilhante trabalho elaborado por José Afonso de Oliveira Soares.”
 
A monografia “História da Vila e Concelho do Peso da Régua” é a sua obra mais conhecida. Começou por ser editada em fascículos, impressos na “Imprensa do Douro”. Num artigo publicado no “Noticias do Douro”, o reguense Dr. Sebastião Pinto de Gouveia, advogado no Porto, confirmava que esta sua obra tinha sido “ elaborada a pedido da vereação municipal instalada em 1936. Concluída em 1938, é um trabalho de investigação extenso, e largo estudo, bem ordenado, profusamente documentado, de estilo sóbrio, preciso e elegante. Essas páginas dão-nos uma síntese perfeita da vasta capacidade, preparação e cultura do seu autor. Mais do que a história de um concelho, esse livro é um acto de dedicação e fé a uma causa nobre que soube servir e amar”.
 
Conhecendo-o por com ele ter convivido e partilhado a escrita nas páginas dos jornais, o escritor João de Araújo Correia, numa crónica publicada, em 1928, no “Jornal da Régua” fazia um retrato psicológico de Afonso Soares, a elucidar um retrato que o periódico trazia na primeira página, para assinalar o aniversário dos seus 82 anos, que pela sua lúcida e perspicaz análise, se transcreve esta parte:
 
“O retrato do senhor Soares só ficaria fiel pintado a óleo.
 
Perde-se um modelo digno de Columbano.
 
(…)
 
O retrato é mal tirado. Mas a nossa adoração espiritualiza-o. Aos olhos dos devotos não escorrem sangue as feridas mal pintadas dos crucificados? À nossa vista, o Senhor Soares gravado é o Senhor Soares vivo. O fenómeno do riso no octogenário ensilveirado de barbas é um dos encantos do homem que vem, às tardes sentar-se no banco do Zé Pinto, do esteta que procura uma mercearia para espairecer, como há enxovedos que procuram os museus para ressoar. O riso é o triunfo do homem sobre as trivialidades que o circundam. A beleza e fealdade das coisas são reacções interiores. Por isso vemos o Senhor Soares deliciado quando o Afonso Henriques Morrão pesa bacalhau ou o Zé Pinto se põe a esculpir estátuas impressionistas de oiro, com manteiga. Se o amor preleva o senso estético no descobrir em prosa poesia num pelo defumado do cachimbo do Senhor Afonso Soares, veremos o singular indivíduo que vive oitenta anos à sombra de sertanejo campanário, sem prejuízo da harmonia do seu vestir ou pensar. A gravura que encima, esta coluna e, por consequência uma maravilha. Na sua dureza evocamos a ternura, a serenidade, a inteligência, o talento, as armas com que o Senhor Soares tem defendido a epiderme da sujidade mundana. Imediatamente nos evoca também o caminho que a nossa terra polida lhe tributa. A Régua tem coração. Não é verdade que ela se curva para agasalhar, mais do que para cumprimentar, as mãos esguias do Senhor Soares? Na própria ausência do querido pintor e homem de letras, dizemos todos: o Senhor Soares. Consoante o costume local, há quem diga: Senhor Zezinho Soares.
 
Há muita beleza nisto…
 
Não é exacto valerem os homens somente pela obra executada. Os homens valem pelo mundo íntimo que abrigam e vem transparecer à flor do olhar, do gesto, da palavra, que é a maneira de pôr a gravata ou o chapéu. O Senhor Soares vale um tesoiro.Com aquelas barbas chamuscadas de fumo, a moeda romana que lhe orna o peito, vale tanto como se houvesse despedido do lar aos vinte anos, com a sua habilidade e seus pincéis e regressasse pelos oitenta, coroado de espinhos loiros, bem granjeado o nome pomposo de Mestre José Afonso”.
 
No mesmo sentido, o Dr. Sebastião Pinto de Gouveia no seu citado artigo valorizou as qualidades de artista de Afonso Soares: “a sua extraordinária aptidão, ao maravilhoso talento, tudo era fácil. Quadros como a cópia maravilhosa do “Santo Estevão de Van Dick”, a “Cabeça de Cristo”, de tão quente e dolorosa expressão - “ A volta do Salgueiral” – a “ Cabeça da Virgem” são, entre muitos outros, verdadeiros espelhos da alma de Afonso Soares, da sua extraordinária sensibilidade como do seu génio. Dá-los a um largo exame público e a uma demorada apreciação critica é consagrar o artista extraordinário que os produziu e, sobretudo, conceder a todos, numa visão de conjunto da sua obra, momentos de insubstituível prazer espiritual. Legou-nos também Afonso Soares algumas esculturas: o busto do Chico Doido, entre outras, exprime também a eloquência bastante a extraordinária aptidão de Afonso Soares para esta modalidade de arte. Infelizmente são exíguos os seus trabalhos de escultura e desenho”.
 
Dando realização aos seus princípios humanísticos, não deixou de participar civicamente no movimento associativo, em especial, o voluntariado nos bombeiros.
 
Afonso Soares não integrou a lista dos cidadãos fundadores que, reunidos numa “Comissão Instaladora”, elaboraram os estatutos e, em 28 de Novembro 1880, “inauguram” a Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários da Régua. Ele, só alguns anos mais tarde, se inscreveu como seu sócio contribuinte.
 
Como sócio contribuinte tudo fez para que os bombeiros tivessem, logo em 1885, uma pequena biblioteca no seu edifício-sede que ficava, como então se dizia, na “Chafarica”, hoje conhecido pelo Largo dos Aviadores. Muito embora, o escritor João de Araújo Correia, numa das suas crónicas escritas para o livro “Pátria Pequena” tenha afirmado que o anónimo impulsionador que a idealizou nunca foi conhecido, sabe-se agora que essa biblioteca que, não mais seria de uma estante com livros raros, se deveu à sua iniciativa e generosidade. Sendo um homem modesto, na sua monografia da história da Régua não quis revelar como sendo ele o benfeitor, mas num texto não assinado, que se supõe ser da sua autoria, já que o estilo e o conteúdo parecem semelhantes, publicado em 1930, no jornal “A Região Duriense”, está referenciado o seu nome como benemérito.
 
Em 1893, Afonso Soares foi eleito pelos associados como Comandante dos Bombeiros da Régua, cargo que vai ocupar até 1927, segundo o que está consagrado oficialmente na associação. Mas, essa data pode não coincidir com a realidade. Uma notícia publicada na revista “Ilustração Portuguesa” dá conta que, em 28 de Novembro 1923, nas comemorações do 43º aniversário da Associação, Afonso Soares não seria já o comandante dos bombeiros.
 
Afonso Soares tinha 40 anos quando os sócios reunidos em Assembleia-geral, realizada em 28 de Janeiro de 1893, o elegeram para ocupar vago pela morte súbita do Comandante Manuel Maria de Magalhães, ocorrida em 10 de Outubro de 1892.
 
Mas, a substituição do primeiro comandante dos bombeiros da Régua não deve ter sido nada pacífica, já que ficou marcada por um conflito entre os associados. Numa primeira eleições, não foi escolhido Afonso Soares, mas o sócio-activo e fundador Gaspar Henriques da Silva Monteiro, negociante influente que, durante a monarquia, integrou a primeira Comissão Municipal Republicana. Acontece que, de imediato, renunciou ao cargo de comandante para que havia sido eleito, através de uma carta dirigida ao presidente da direcção, “agradecendo aos seus colegas de direcção as provas de estima que lhe tinham dado”. Porque razão tomou esta inesperada decisão? Ao certo não se conhecem os motivos, mas da acta da reunião de direcção, o mais provável é que tenham sido os desentendimentos pessoais ou, eventualmente, divergências de carácter político entre os sócios activos. Abordado assunto em reunião de direcção, o seu presidente sugeriu um “voto de sentimento pela saída deste sócio, atendendo não só à leal camaradagem e aos serviços por ele prestados à Associação” e, com alguma diplomacia, aceitou o pedido de renúncia porque “conhecendo a direcção a atendidas razões de pormenor que motivaram a sua saída, abstinha-se de pedir-lhe, como desejava, de ficar nesta associação…”. Na sua intervenção, o director Joaquim Sousa Pinto, 2ª Comandante, ao pronunciar-se sobre a data da Assembleia – Geral para a eleição do novo comandante, denuncia a exigência de conflito, já que foi claro ao manifestar a opinião “que se demorasse por algum tempo a eleição daquele, visto que estando ainda bastante exaltados os espíritos dos sócios-activos, em virtude do conflito que determinara a saída do primeiro comandante, acrescentando que nenhum prejuízo adviria para a Companhia por esse facto”. O presidente da direcção, José Joaquim Pereira Soares dos Santos, mostrava-se incomodado com a situação, pedindo que “se registasse que alguns sócios contribuintes principiavam de ver com desagrado uns pequenos conflitos, sem importância, é certo, mas que pela sua qualidade mal abonavam o bom nome da Associação”. Entretanto, são eleitos novos directores para os órgãos sociais da Associação. O novo presidente da direcção Alberto Rolla, no dia 3 de Fevereiro de 1893, convoca Afonso Soares para prestar o juramento como Comandante dos Bombeiros. Depois de empossado, ele vai exercer o cargo durante um largo período de anos, conturbados para o país, a região duriense e o futuro da Associação. Não se sabe, com certeza e rigor, se abdicou de ser comandante em 1927 ou já, em 1923, para Camilo Guedes Castelo Branco, mas pensa-se que tenha sido antes dessa última data. A sua idade próxima dos 75 anos, e as limitações de saúde, já não lhe permitiam dirigir as missões de socorro.
 
No seu mandato, Afonso Soares manteve, apesar das limitações do quartel e da falta de material de combate de incêndios, um corpo de bombeiros de bombeiros operacional, composto por briosos cidadãos. Mas, não se pense que foi fácil a sua missão, já que enfrentou dificuldades económicas. Em 1902, a câmara municipal suprimiu a atribuição do subsídio para os bombeiros. Como se entende, esta atitude foi mal recebida e provocou uma contestação, que motivou a realização de uma Assembleia-Geral. Sem financiamento e sem receitas, a Associação atravessa uma crise. Nas suas memórias, o chefe António Guedes, então jovem bombeiro, recordou como os bombeiros a ultrapassaram. Confirma que, por volta de 1910-20, a Associação estava sem receitas para suportar as despesas do quartel. Alguns bombeiros, perante as dívidas que aumentavam, chegaram a propor que as chaves do quartel e o pouco material fossem entregues ao presidente do município. Mas, os velhos e apaixonados bombeiros entenderam não cruzar os braços e não permitiram que a associação se extinguisse. Começaram por se cotizarem com uma quantia dos seus salários, mas mesmo assim não obtinham o suficiente para as principais despesas. Surgiu, depois, a ideia de alguns bombeiros para como actores amadores realizar uns espectáculos de teatro. As peças atraíram a população que pagou o bilhete para assistir. Conseguiram assim, o dinheiro que precisavam para saldarem as dívidas acumuladas, já que câmara municipal, até 1930, atribuía um subsídio demasiado pequeno.
 
O Comandante Afonso Soares teve a determinação e o mérito de manter vivo o corpo de bombeiro que fazia falta à população reguense. Não descansou para arranjar as melhores condições de trabalho. Pediu à câmara municipal uma parcela de terreno para a construção de um quartel de raiz, mas ninguém o ajudou a realizar o seu sonho. Ele mesmo deu o seu contributo ao fazer o esboço de um projecto para construção do novo edifício. O desenho, felizmente, não se perdeu e está guardado no Museu dos Bombeiros. Nele pode ver-se como Afonso Soares evidencia o seu génio artístico, o rigor técnico e os traços originais de uma ornamentação primorosa.
 
A Régua, na década de 50, com alguma polémica pelo meio e até de vozes contrárias e discordantes, reconheceu os méritos pessoais, humanísticos, literários e artísticos de Afonso Soares. Nomeada uma comissão de figuras reconhecidas na sociedade reguenses que, com apoio da câmara, mandava erigir um busto, em sua memória, no jardim do Largo do Cruzeiro, próximo da casa onde morou. Esteve presente, para descerrar a placa, o seu bisneto José Afonso Suart-Torrie, ainda criança, e actualmente um negociante de vinhos, residente em França, onde em Rouen é Cônsul Honorário de Portugal.
No seu pedestal está inscrita em sua memória esta mensagem dirigida a todos nós e, em especial, às gerações mais novas: “Talento e bondade/Flor de simpatia/Que nos merecia/ Esta saudade”. Pode parecer pouco, mas esta estátua tem um significado importante: o justo reconhecimento de homem, um cidadão reguense generoso e talentoso que viveu de forma intensa e apaixonada a sua terra. Essa paixão à Régua, confessou-a num dos seus livros: “Mas porque amo a minha terra e me penaliza que as sua belezas continuem tão ignoradas, sem cantar as espalharei por toda a parte, ainda mesmo sem engenho e arte”. Engano seu para nos convencer da sua modéstia: engenho e arte nunca faltaram ao Comandante Afonso Soares!
- Peso da Régua, Março de 2010, J A Almeida. Atualizado em Julho de 2010.