quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos VIII, IX e X


Não Matem A Esperança - Capítulo VIII
O Verão ia quente. Nas obliquidades dos montes, a verdura fresca e saudável das vinhas desaparecia; iam amarelecendo sob as inclemências solares, os bagos dos cachos aganavam. O povo andava alarmado. Previa-se um ano seco. Os proprietários faziam contas de cabeça, multiplicando ou dividindo, somando ou subtraindo, e o resultado era sempre o mesmo: «Ao valha-nos Deus! Que desgraça a nossa!». A Casa do Povo nunca teve tanta assistência. As gentes queriam ouvir que dizia o «Boletim Meteorológico». Depois, nas ruas sem luz e cheias de buracos, discutiam e comentavam: «Ora vejam bem! Aqui, na Espanha, que é mesmo ao lado, a chover e nós a secar! Até nisto nos levam vantage!».

Em cada dia que nascia olhava-se Abões a ver se vinham nuvens escuras. Mas não havia meio. Os poucos trabalhos que antecediam as vindimas eram feitos às manhãs e, até mesmo assim, não se podia com aqueles calores: «Um home com estes escaldões até se lhe consomem os ossos.».

Os lavradores iam imaginando os salários que deviam dar aos trabalhadores, na iminência quase certa, por aquele andar, de fracas colheitas. Estes, adivinhando os intentos daqueles, lamentavam-se. A chuva, no Inverno, por vezes mal recebida, agora, porém, não era capaz de vir refrescar aquele estio tórrido, os vinhedos e os corações das gentes: «Raios partam esta vida! Quando se julga que endireita logo quebra!». E, tomando a fresca depois da malga de caldo, os pais contavam com os filhos ao colo, outros anos em que de vez de se vindimarem uvas se vindimaram passas: «Um ano, já lá vão sete cobre ele, é que foi. Quem colhia cem só tirou p'raí umas vinte. A desproporção!».

Baldadas as implorações à natureza, a plebe lançou os olhares e as suas preces para a capelinha da Nossa Senhora da Ermida. Lembraram-se d pedir ao pároco para que a santa fosse levada para a Igreja matriz numa procissão de velas. É que já num ano isso se fizera e a chuva caíra.

A aldeia movimentou-se. Ao longo dos caminhos e nas janelas das casas acenderam-se velas. Era estranho ver aquelas gentes de pavios a tremelicar na escuridão – pareciam figurantes de um filme histórico em desempenho de error. Em breve, a escultura da Senhora da Ermida, em cima dos ombros calejados, passava em seu andor repleto de flores. Os mistérios do terço eram rezados com fervor. O povo chorava. O povo que se embebedava e se anavalhava nas tabernas e nas esquinas, o povo que não pensava e fazia tudo que lhe mandavam fazer. Cânticos de louvor levavam à Senhora que sorria as esperanças dum povo que queria sobreviver e sorrir com ela, deitando para longe o enguiço da miséria.

E aquela, na Igreja, em altar mais rico do que o da sua humilde capela, quedava-se, de sorriso moldado pelas mãos do esculpidor, sob as arcadas silenciosas e frias que, aos domingos, as vozes das gentes, rezando, aqueciam.

E o povo, sempre devoto e fiel, continuava a acreditar no milagre da chuva.

Não Matem A Esperança - Capítulo IX
Indolentemente, baloiça-se nas suas pernas retezadas, roça o ventre no chão, e deita-se, preguiçosa, na sombra de um degrau. Três gatinhos, seus filhos, miando ansiosamente, acorrem, submissos, ao aconchego materno. Aquela estende-se ainda mais e as bocas esfomeadas ocupam-lhe o ventre. As folhas dos limoeiros e das macieiras revolvem-se sem destino à aragem da tarde. No alto, flocos de nuvens, umas metálicas e negras, outras azuis claras como os lilases, evolucionam cadentes, muito lentas, quase paradas... O sol, em rutilantes agulhas, trespassa a cortina daquelas, provocando cataratas no cimento. Ouvem-se risos desencontrados, acompanhados dos choros das crianças e dos ralhos das mães.

- Quero broa... Tenho fome... Dá-me, mãe, dá?...
- Já vai! Olha! Credo! Nem me deixas pousar o caneco! Santo Deus!

E as crianças calam o estômago com o pão de milho. (Crianças tão puras e inocentes! É pena que a necessidade, que é negra e triste, vos vá tornando más!).

Nas lajes do atalho, chocalham, agora, os socos de um camponês, à mistura com interrogações dezenas de vezes já repetidas.

- Pois é, Ti Tónio, a cava vai mal...
- 'Stá dura... Se chovesse... Mas não há meio de cair uma pinga d'auga...
- Deixe lá que se chovesse não era melhor. A rapaziada encharcava-se de lama...
- Pois é, mas no meio disto tudo que tal um copázio?!...
- Bá lá!... Já'agora!...

E o chocalhar dos socos, à mistura com conversas dezenas de vezes já repetidas, perde-se na distância, até se abafar na taberna do Manuel da Antónia.

Negros abelhões poisam e voam em procura do néctar das flores matizadas. Um pássaro, entontecido pelo lumaréu, ziguezagueia, espadanando as asas frágeis, as asas da sua liberdade. Poisa num galho da ramada e aí se queda, observando à volta a confirmar a segurança do pousio. O monodiar dos melros e pintassilgos, presos acolá naquelas gaiolas, entoando, talvez a esperança de amanhã poderem voar e cantar sem clausuras: nervosos, inquietos, para cá e para lá, olhando para todos os lados, como que desconfiados, chapinando na água, para depois se sacudirem donairosos. Na casota, o rafeiro ladra ao camarada que lhe roubou um osso e aqueles que parecem ainda mais inquietos.

Um pobre bate ao portão e pede uma esmola «pela alma de quem lá tem».

A criada enche os recipientes das aves burguesas com água e outros com painço. O papagaio tagarela. Os gatos espantam-se. E o Chico vem regar os limoeiros.

- Então o Zé?
- Foi p'ra França.
- Não me diga...
- Foi. Levou o Manel, tamém. Atão foram ver mundo!
- Há quanto tempo?
- Não me alembra bem, mas p'raí há dois meses. Pois foram. Já escreveram e dizem qu'stão muito bem.
- Melhor, melhor.
- Deus os ajude. Fartavam-se de trabalhar e não supria nada, agora vamos lá ver... Já que não se arranjaram cá que se arranjem lá. Aquilo são outras terras!

O Chico: camisa, calças e barba de oito dias, com uma carrada de filhos em casa: roxos, magricelas, semi-nús, a esburacarem o chão para mentirem à fome e que aguardam os primeiros contos de réis dos irmãos que estão em França para se vestirem e comerem mais à farta.

- Oiça lá, ó senhor Chico: não gostava de ir até França?
- 'Stá boa essa!... E a mulher e os filhos?... Isso é que mata tudo!... Se os tivesse já todos criados... Assim...

Não Matem A Esperança - Capítulo X
Não sei quando, onde e como protestaste para a vida. Conservo uma ideia vaga, uma ideia que, na sua vacuidade, me mostra a máscara de um sofrimento estranho, um sofrimento feito de humildade e amor que já é desta época.

Trabalhaste nas ruas e nos caminhos, calcorreaste as subidas dos montes da minha terra, o teu corpo habituou-se cedo, talvez cedo de mais, a sentir na carne a aspereza da vida. Nasceste pobre como a grande maioria daqueles que habitam este planeta, mas a tua pobreza deu-te a formosura de que os ricos se julgam possuidores. Cresceste nas dificuldades, espicaçada pela negrura da necessidade. Aos dezasseis anos caíste na cilada, como uma ave na ratoeira, armada pelos homens traiçoeiros. Aí ficaste cativa, debaixo da prisão do céu, com as nuvens destapando o sol e, ao longe, a melodia recriando-se por entre as escarpas, no fundo das quais, o rio corria manso, farto de vagar, lambendo os seixos e, no alto, mulheres rindo às gargalhadas e outras chorando, tingidas de luto. Já não eras tua. Tinhas-te dado. Foi amor? Loucura? Que foi? Pensaste muito e nada concluíste. É sempre assim: o repentino foge, corre-se atrás dele, mas depois vem a perpetuidade real, a dolorosa certeza de que a vida se prolonga para além das cordilheiras em que o sol morre e a lua nasce. E já não se pode voltar atrás. Há dois caminhos: ou se ergue a cabeça e se continua ou se a baixa e se cai depois; a mentira não se admite, o fingimento não serve. Continuaste. Porquê? Nem tu o saberás.

Porque será que as pessoas são tão más? Más como a fome que degola os inocentes que nascem das relações sexuais dos seres humanos, más como as guerras que os interesses fabricam e os políticos teimosos e fanáticos e cegos e gananciosos e maus sustentam, más como a manhosice das pessoas que lidam connosco nos cruzamentos e nos «stopes» da vida, más como, etc. Viveste no meio de pessoas más (como todos nós viveremos sempre), mas nunca te renegaste. Sofreste tudo com a paciência e a capacidade de amor que sempre te acompanhou. Sofreste a acção do tribunal da sociedade (sociedade porca e imunda) sem te importares, fazendo disso o alento para aguentar a vida, uma vida curta (como todas as vidas).

Acartaste canecos de água e de vinho para o patrão que te possuirá. Nunca exigiste nada. As lágrimas ficavam para a noite, na solidão da tua cama, com a lua a fazer carícias nas telhas da casa.

Nasceu-te um filho. Um filho de pai rico e mãe pobre (que culpa temos nós da ato nascer-se assim. Vale mais nascer-se ou só de pais pobres ou só de pais ricos: há mais igualdade. Mas outros vieram e cada um havia de ser o que quisesse e as contingências permitissem. Não serias muito feliz se vivesses ainda hoje. Ver filhos partir às portas das tabernas a serem maltratados por este e por aquele é coisa que nenhuma mãe gosta de ver.

Trabalhaste sempre, não desistias. Punhas rodilhas nos pés para que sangrassem menos. (Eu queria escrever a tua história com a fungível possibilidade de ela ir ao além túmulo! É-me impossível e terás de me perdoar).

O senhor rico chamou-te. Deu-te o mesmo tecto. Mas antes não o tivesse feito; é que o vias ir, na escuridão da noite, ao encontro de outra mulher e até as portadas das janelas trancava com tábuas e pregos. Nada dizias, o coração fervendo, os vómitos do desgosto à flor dos lábios, os nervos ameaçando partir.

Para matares a fome àqueles que eram do teu sangue ou imploravam debaixo das janelas (fala Peche! Diz como era, caramba!), tinhas que o fazer às escondidas de modo a não caíres nas embirrices de quem mandava. E, no entanto, o senhor rico que te seduzira, deixaria mais tarde proventos a quem nunca os mereceu e nem sequer eram de sangue igual, sabiam latim, cultivavam malícia. Mas não importa, pois não? Contentem-se os famintos.

Morreste ingloriamente numa tarde inglória da minha infância. Pediram um padre para que te fosse pôr no chão onde todos acabamos por apodrecer e esquecer, mas não veio ninguém. É que tu não eras casada à face da Lei e da sociedade, Porquê? Não sei. Pergunta-lhes, talvez os pseudomoralistas deste mundo te saibam responder.
- Continua.

Imagens arqueológicas de Alijó na Net


A Câmara Municipal de Alijó disponibilizou on-line um site onde é possível aceder a imagens dos locais arqueológicos do concelho.

No total são 17 os roteiros arqueológicos de Alijó disponíveis no site, criados com recurso ao serviço Google Earth.

De acordo com a autarquia a iniciativa resulta da «implementação definitiva no terreno do projecto de sinalização dos arqueossítios do concelho de Alijó, uma vez que todos os arqueossítios referenciados agora on-line, encontram-se devidamente sinalizados no terreno».

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O benemérito António José Rodrigues



“Quem não vive para servir não serve para viver”
(Teresa de Calcutá)

Em 31 de Outubro de 1956, o Dr. Júlio Vilela - presidente da direcção da AHBV do Peso da Régua - e os directores Noel de Magalhães e Alfredo Baptista e o 2º Comandante António Guedes – o autor memórias dos bombeiros da Régua - acompanharam numa visita às instalações do edifício sede dos bombeiros, o Senhor António José Rodrigues – carinhosamente chamado por “Mumu”- um simpático ancião e um generoso benemérito, a quem mostravam o andamento das obras no primeiro piso do edifício-sede, na parte projectada para ser um majestoso Salão Nobre, onde se realizassem as reuniões dos associados e as cerimónias oficiais.

No percurso sinuoso, com mais de um século de história, com momentos de dificuldades financeiras, os bombeiros da Régua podiam destacar o contributo de muitas pessoas que, desde a sua fundação até ao presente, os ajudaram com donativos, viaturas e equipamentos, de forma desinteressada e altruísta. Se tivessem de evocar os benfeitores que fizeram doações seriam muitos nomes que teriam de louvar e dignificar a sua atitude como verdadeiro exemplo cívico para a sociedade.

Sobreviveram os sacrifícios, a adversidades e a grandes e complicados obstáculos os bombeiros da Régua para nunca desistirem da sua missão. Com coragem e determinação venceram todas as contrariedades. Cada uma delas foi entendida sempre como um desafio e um estímulo para se fazerem mais e melhor, tornarem a associação mais eficiente e cada vez maior, na fidelidade aos princípios que inspiram a sua fundação.

Foram grandes os entraves para terem uma infra-estrutura condigna para exercerem seu trabalho e guardarem os seus equipamentos e veículos como, em 1930, aconteceu ao iniciarem a construção do quartel. Tiveram de passar 25 anos para que esse sonho se tornasse real. Só foi possível aguentarem uma espera tão longa devido à persistência dos briosos soldados da paz, directores, associados e, sem dúvida, esses anjos salvadores que tem o nome de beneméritos. Se os bombeiros da Régua estão instalados num dos edifícios mais emblemáticos da cidade, não restam dúvidas que o devem, em parte, à ajuda de um velho e generoso reguense, o senhor António José Rodrigues, ou como lhe chamavam, o “Mumu”.

A generosidade é um sentimento que pode trazer felicidade para sempre, alguém escreveu. Esta citação vem ao encontro do espírito desse benemérito, que para nós é digno, sem desconsideração para os demais, de uma menção especial. Os seus donativos serviram para melhorar o funcionamento e a prestação de serviços dos bombeiros à comunidade com mais qualidade, conforto e segurança.

Foi graças ao “Mumu”, um antigo comerciante de confecções e lanifícios numa loja da Rua dos Camilos - onde hoje está a “Chama Lar” – que os bombeiros da Régua encontraram a ajuda necessária para resolver algumas dificuldades. Em 1955, o seu donativo de 50.000$00 – uma avultada quantia para a época – serviu para que se fizessem as obras que faltavam no quartel.

O senhor António José Rodrigues está esquecido na sua terra. A Régua comercial, como antigo balcão do Largo da Estação até ao Salgueiral, não sabe quem foi o “Mumu”, nem o bem que ele fez. Apenas alguns, o recordam e falam dele com emoção. É o caso de um seu empregado, o senhor Pinto, ainda a exercer o comércio no “Caeiro”, que com ele apreendeu os segredos do negócio, e a velha clientela, gente de um outro tempo, que comprava os riscados e as fazendas no seu estabelecimento comercial.

Os bombeiros da Régua é que não o podem esquecer. Para eles, o “Mumu” foi um homem extraordinário. Sempre os ajudou quando tinham dificuldades. Era, naquele tempo, o principal mecenas. Ao contrário de muitos outros, soube ser generoso e contribuir com parte da sua riqueza para melhorar a vida dos bombeiros. Contribuiu com muito dinheiro. Legou, em testamento, a sua casa de habitação e um armazém de vinhos - neles está a Salsicharia Real e o Restaurante Cacho De Oiro - sitos na Rua D. Branca Martinho, para serem valorizados como património da associação.



No tempo certo, os bombeiros reconheceram gratidão ao seu benemérito. No quartel, o Salão Nobre recebeu o seu nome: “Salão António José Rodrigues”. Ao mesmo tempo, era colocado nesse Salão um seu retrato pintado a óleo. Aconteceu em 3 de Maio de 1957 essa cerimónia. Foi convidado o jovem António Caeiro, afilhado do benemérito, então estudante de direito em Coimbra – recentemente falecido - para descerrar o retrato. A direcção da associação sugeriu ainda que lhe fosse concedida a comenda da Ordem da Benemerência. Aceite pelo Governo como justa tal distinção, o Senhor António José Rodrigues foi condecorado, na Câmara Municipal da Régua, pelo Ministro do Interior, Dr. Trigo de Negreiros, o qual lhe expressou este elogio: "Que o seu exemplo admirável frutifique e que Deus lhe conserve a saúde preciosa para continuar a praticar actos de beleza moral tão grandes como aqueles que vem praticando."

Foi declarado um outro elogio ao senhor António José Rodrigues, no jornal “Vida por Vida”, de 1971, em que o autor, em nome da direcção e do corpo de bombeiros, o considera “o maior benemérito da nossa associação”, do qual transcrevemos a parte seguinte:

"Em, plano extraordinariamente acima dos outros seres que povoam o nosso Universo, o Homem encontra-se neste Mundo para cumprir um destino (…) Talvez o Homem vulgar não se importe, no fim de contas, com estas coisas.

Mas existem, felizmente, outros HOMENS, que pensam e executam à sua maneira - à maneira como todos tinham a obrigação de pensar…Mas o fundamento da sua actuação estará o cumprimento do destino para que fora criado.

Surgem-nos estas ligeiras meditações, a propósito dum facto, deveras notável: a doação dos seus bens imóveis, feita pelo Grande Benemérito, Senhor António José Rodrigues, à nossa Associação.

Deveríamos, por isso mesmo, ter começado por onde afinal acabamos. Mas preferirmos deixar para o fim o verdadeiro significado deste escrito que é o de agradecer Aquele que passou a ser o MAIOR BENERMÉRITO DA NOSSA QUERIDA ASSOCIAÇÃO.

O Senhor António José Rodrigues é credor de toda a nossa admiração, pois ao longo da sua vida tem sabido interpretar o verdadeiro significado da palavra HUMANIDADE. Não tem sido só para esta Casa que as suas generosas dávidas têm sido destinadas. O mesmo vem acontecendo para a Santa Casa da Misericórdia, instituição pela qual, o Senhor António José Rodrigues, nutre o mesmo carinho e mesma admiração.

Ao doar os seus bens à nossa Associação, afirmou tão grande Benemérito: Quero o engrandecimento da nossa Corporação para bem da minha querida Régua.

MUITO OBRIGADO SENHOR ANTÓNIO JOSÉ RODRIGUES. Oxalá que Deus o restitua à vida normal por muitos anos, pois as duas instituições – BOMBEIROS e HOSPITAL - que tanto lhe devem, necessitam da sua caridade – que é grande é sincera."

"A AHBV da Régua nasceu e desenvolveu-se assente em três pilares: o associativismo, o voluntariado e o mecenato. Existe, com identidade própria, numa permanente ligação aos cidadãos”.

Quando se enaltece o exemplo do voluntariado e do associativismo pretende-se motivar as pessoas para o apoio à actividade dos bombeiros. Este é sempre essencial quando os auxílios de quem de direito são poucos ou escasseiam. Com o empenho, boa vontade, espírito de solidariedade, cooperação de pessoas generosas os bombeiros sentem-se mais responsáveis no seu papel social na sua comunidade. Os bombeiros da Régua têm beneficiado muito da generosidade da população, especialmente, de bons beneméritos. É um sinal positivo que favorece a coesão social e dá-nos confiança e uma perspectiva gloriosa nos tempos vindouros.

O “Mumu” soube cumprir o melhor destino: serviu durante a sua vida os bombeiros. Evocá-lo é uma forma de hoje se reconhecerem os demais beneméritos que estão bem dentro do coração dos bombeiros da Régua.
- Peso da Régua, Dezembro de 2009, J. A. Almeida.
(Clique nas imagens acima para ampliar e visualizar melhor)

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos VI e VII


Não Matem a Esperança - Capítulo VI
Procuro no poço da minha memória, vasculho as pedras rugosas, esgadanho a terra movediça e apalpo a tua recordação. Foste pobre. Trabalhaste que nem um desalmado, criaste calos nas mãos e na alma. Foste rico. Apertaste a bolsa furiosamente com um nagalho, amontoaste, quiseste fazer fortuna. Morreste. E o sonho de uma grande fortuna morreu contigo. E lá do teu mundo em que te esqueces, perguntarás: «Para quê?». Sim, para quê? Todas as fortunas servem para nada. Todas as fortunas se esvaiem. Conheci-te já velho. Eras um velho alto, forte, corado no rosto e amparavas-te a uma bengala e bebias o vinho por uma cabaça. Gastavas um cesto de vindima por ano, sentando-te todas as tardes, além, no fundo do quintal, com a tua bengala ao pé. Eu fugia para junto de ti quando alguém me batia pelas asneiras que a minha irresponsabilidade de criança cometia. Reconhecia-te autoridade para o meu refúgio. Fazia-te festas, colocavas-me no teu colo e beijavas-me, roçando o teu bigode na minha cara imberbe. Gostava de ti, sabes? Só não gostava quando te pedia um brinquedo e tu dizias que era um por ano. Tu lembras, não lembras? E eu, então, pegava num pedaço de cana e fazia-te a barba... E tu gostavas e davas-me tostões para rebuçados. Em casa, as criadas, tiravam-te, sem tu saberes, azeite e batatas, por que davas tudo por ração e a ração não chegava. Eu vi muitas vezes minha mãe chorar, à mesa, por que tínhamos que comer batatas sem azeite havendo tanto na dispensa. E as lágrimas de minha mãe eram o azeite. Era demais. Tu não reconhecias isso? E para quê? Morreste e cá deixaste. Dos que originaste nem todos te souberam seguir. Estavam habituados a pouco e depois de tu morreres, quando se viram commuito, estragaram. De nada valeu trabalhares que nem um galego e poupar que nem um avarento. Tu saberás perdoar-lhes como perdoaram a ti. Uma mulher te amou e sofreu e morreu a sofrer por ti. Deste-lhe um tecto igual ao que te cobria, mas não lhe deste o carinho, o amor, a lealdade que ela queria e merecia. Foste mau. Muito mau. Não te admires da minha sinceridade. Sabes, muita gente não gosta de mim porque não sei fingir e digo a verdade. E têm medo de mim assim, chamam-me antipático, bruto. O que eles queriam era que eu dissesse sempre que sim com eles, lhes aparasse todo o jogo. Mas eu não me acobardo naquilo que mais nobre e puro há no homem: a sua integridade moral. Não me importo que me detestem os mentirosos, os interesseiros (os que gostam mais deste ou daquele consoante lhes enchem mais ou menos a bolsa insaciável), os bonecos de luxo de estimação, os que batem com uma mão no peito e roubam com a outra, os que dão beijos pela frente e lançam punhais pela retaguarda. Não me interessa de nada. Antes assim, com a tranquilidade consciente, do que viver no meio desta escumalha toda sendo como eles. A esses mando-os dar uma voltinha pelo Marão da vida a ver se aprendem mais alguma coisa do que aquilo que a sua tacanhez lhes ensinou. Mas porque foste assim tão mau para com a tua mulher que sempre te guardou lealdade, te deu os TEUS filhos, para aquela mulher que nos tempos da sua juventude te entregou a reputação, cega por um amor puro? E porque não calaste as bocas porcas e ignorantes e incivilizadas do mundo, levando-a a uma Igreja para um padre vos pôr as alianças que se compram nas ourivesarias em negócio regateado? Sabes, a sociedade é assim. Faz-se porque é bonito, porque é o bem, porque a tradição manda, porque os preconceitos tapam os olhos da inteligência. Mas eu não te censuro por não teres ido à Igreja, o que eu te censuro é teres atraiçoado um amor autêntico (daqueles que não precisam de carimbos nem de selos), um amor do qual te vieram os filhos da tua vida. Isso não se faz. Uma mulher que é nossa é-o sempre até morrer. Não te rias dessa maneira. Repara que choro. E nós nunca devemos rir dessa maneira para uma pessoa que chora como eu, agora.

Era uma criança quando morreste. O corpo ia-te pesando e a bengala já mal aguentava. E caíste um dia na cama para nunca mais te levantares. Eu vi-te. E chorava muito por saber que ias morrer (sim, eu já sabia que ias morrer, pois o meu sentido de criança pressentia-o). E tu querias sorrir para mim, mas a paralisia não te deixava. E eu ia-te beijar nos meus intervalos de brincadeira (perdoa-me o ter brincado com os meninos pobres da minha idade, enquanto tu morrias aos poucos). E as lágrimas (lágrimas de arrependimento e saudade que a morte sempre traz) saltavam-te para as faces ao veres-me na tua frente. Pensavas o que seria eu mais tarde, mais tarde quando o teu corpo frio e digno (não há posição mais digna que a morte) estivesse já nas fezes dos bichos subterrâneos. E pedias papel para escrever, mas a letra não se percebia, as mãos estavam-te presas pela inércia dos nervos; quererias emendar alguma coisa de que te tivesses arrependido? Há momentos assim: em que já é demasiado tarde para voltar atrás. Os que te amavam fizeram tudo para que vivesses. Os que te invejavam fizeram tudo para que morresses. Vieram médicos da família para te ver. Algumas pessoas que antigamente te batiam nas costas impediram que outros, vindos de longe com a sua fama aos ombros, diagnosticassem a tua doença; tinham medo que eles te salvassem. Mas deixa lá que já estás vingado – a morte é «privilégio» de todos. Morreste que nem um santo, dizem os que assistiram ao teu adeus (já reparaste que toda a gente morre como um santo?). E lembro-me do ambiente do dia da tua morte. Tenho ainda nos ouvidos os gritos de minha mãe que me cobriu toda com seu corpo a esconder-me da verdade e eu agarrei-me a ela e chorei também. E vi pessoas vestidas de negro que se mexiam em bicos de pés e cochichavam umas com as outras e se mostravam muito atenciosas para minha mãe. Tive nojo e medo dessas pessoas e estive mesmo para gritar (mas eu não podia, ainda era criança): «Cuidado!». Esses vultos entravam pela porta dentro, uns atrás dos outros, como se estivessem todos na rua à espera de que morresses. Depois trouxeram um tabuleiro, daqueles em que mandavas pôr os figos a secar, e depositaram-no em cima duma caixa. Vestiram-no bem, com gravata e tudo (a sociedade tem a preocupação de vestir os mortos como se vestem os políticos para botar discurso), puseram-te no tabuleiro e taparam-te com um lençol branco, enquanto umas velas (sempre detestei as velas, fazem lembrar os mortos), de pavios tristes, alumiavam o silêncio do teu corpo. Nessa noite dormi mais agarrado a minha mãe. Tive medo. Um medo que me dava ganas de gritar que eras nosso, de berrar àquela gente que me passava as mãos pela cara e dizia: «Meu menino, coitadinho!...» que se fosse embora velar os seus mortos lá em casa. Quando acordei já estavas na urna (tudo calculado, tudo calculado), uma urna bonita, cara, toda forrada, de não sei quantos contos de réis e até tinha uma chave dourada (hás-de-me dizer se resta alguma coisa disso). E aqueles vultos negros, de mulheres principalmente, cirandavam à volta como moscas zunindo. E levaram-te, numa tarde, com homens engravatados a pegarem-te no caixão e gritos desesperados de quem te via partir sem a esperança de que voltasses. E pela estrada fora, a gente que te acompanhava, ia de chapéus nas mãos com o ar de quem cumpria um ritual, muitos indo lá só com o receio do que os outros dissessem se não tivessem ido. Eu fiquei impávido, vendo-te levado por outros homens e não disse nada. Olhei sempre, sempre, até a multidão desaparecer no fundo da recta. Voltei, pelas mãos de minha mãe, à casa que ficou vazia sem ti. Sentia-se que faltava alguém, mas esse alguém nunca mais voltou.

Não Matem a Esperança - Capítulo VII
Uma dessas famílias de saltimbancos que arrastam, de terra em terra, de feira em feira, sofrimento e miséria, pousou na aldeia. Armou sua barraca de pano. Simples a operação: um lençol que já fora branco e, agora, nem branco nem negro, não tinha cor, um pau espetado e aí está a cónica cortelha. Uns por cima dos outros ali dormirão seres humanos.

No dorso da burra, de pé, em equilibrismos e decorados falarios, aumentados por um funil, ergue-se o chefe.

- Venham ver! Venham dois irmãos: um de sete outro de nove anos,fazerem maravilhas; fazem o salto mortal, dão cambalhotas e muitas mais coisas que só à vista se acreditam!

O povo escuta e interessa-se. A sua monotonia estremece. A indiferença transforma-se em curiosidade. Tudo que desperte estes espíritos adormecidos e mofosos tem atenção. O que esta gente precisa é, de vez em quando, de uns murros na sua rotina. São os velhotes, troncos curvados pelos anos, colete a boldrié, arrastando os tamancos, que se levantam das soleiras e dos bancos das tabernas e das casas a apreciar o «circo»; é o rapazio que deixa de esgadanhar o chão e brincar às escondidinhas para ir ver os «trapezistas»; os moços adultos ou adolescentes que abandonam a sueca ou o sete-e-meio e deixam de gritar «coringas!» no andor da capela para observarem os «saltimbancos». Em breves comenos, o terreiro está apinhado. Empurram-se uns aos outros na busca do melhor sítio.

- Bá, ó Zé, nada de empurras, ouviste?! Lá ver!...
- Tu é que és o gordo ou quê?! Até parece que não cabes! Olha o catano!...

Os mais idosos não procuram as melhores posições: dão-lhas. Têm direito à primeira fila, como família burguesa que marca de tarde as cadeiras da plateia para a sessão da noite. A garotada fura, de gatas, pelas pernas da assistência.

- Que raio de canalha esta! Que andais aqui a fazer?! Ide para casa, ide!

«A canalha», porém tem o direito de ver. Querem admirar as «maravilhas» dos «artistas».
No cimo do animalejo, o chefe anuncia: «Atenção! Vamos começar o nosso espectáculo!». Desce. Pega num bombo e ataca-o com marteladas furiosas e estridentes. Dois rapazitos, troncos-só-ossos, olheirentos, faces amantinas, saiem da barraca. Perfilam-se. Fazem vénias de agradecimento aos assistentes que batem palmas. Um, deita-se numa manta, erguendo ao mesmo tempo os braços e encolhendo as pernas, o outro finca as mãos nos joelhos, os ombros nas mãos daquele e, num salto, fica erecto, pernas retesadas até a assistência se cansar de aplaudir. Levantam-se. Num imprevisto, o que parece ser o mais novo, dobra-se, no ar, num salto que deixa o povo boquiaberto.

- Viste Chico? Fantástico! Isto é que é um salto mortal! Sim senhor! É objecto!

O miúdo desfaz-se em mesuras. O bombo, triunfante, trepida ainda mais. Agora muda de tom, silencia, quase. Aparece uma corda. Os rapazitos pedem que alarguem o círculo. O povo cede e afasta-se exageradamente. Um daqueles envolve a cintura na corda. O outro agarra a extremidade e faz girar o irmão num carrossel, a princípio lento, em seguida acelerado. O tamboril aumenta. Rufa. Com força. Mais força ainda. Mais ainda. Diminui. O carrossel humano roda devagar já. Aquele decresce até ao silêncio. O «artista» endireita a cabeça. Toca os pés na terra. Pára. A gente grita: «Bravo!». Aproveitando o entusiasmo, uma mulher, de saia e blusa pintadas de remendos, comida nas carnes, aparece, estendendo humilde, demasiado humilde, um prato. Aprimeira dádiva tilinta. A dois assobios um cão indolente e careca torna-se presente. Uma vergasta rodopia em retorces rápidos.

- Biscoito levante-se!

O cão ergue as patas dianteiras. Sem convicção. Maquinalmente.

- Quieto Biscoito!

O canídeo não se mexe.

- Salta Biscoito!

Assim fez. Ao retardador. Empoleirou-se nos ombros do garoto. De novo mais palmas. O Biscoito não agradece. O «Domador» acariça-o e cospe-lhe nas ventas. A mulher-mãe aparece com o prato das esmolas, como na missa um ajudante, e recolhe-se envergonhada, silenciosa, triste. O chefe-pai anuncia que «a primeira parte do espectáculo terminou. A segunda parte é daqui a alguns instantes.».

Enquanto as gentes comentavam, fumavam e zaragateavam, ele retirou-se e foi abafar os seus gritos onde ninguém lhe pudesse escutar as asneiras da revolta.
- Continua.