terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Não Matem A Esperança - M. Nogueira Borges - Capítulos VI e VII


Não Matem a Esperança - Capítulo VI
Procuro no poço da minha memória, vasculho as pedras rugosas, esgadanho a terra movediça e apalpo a tua recordação. Foste pobre. Trabalhaste que nem um desalmado, criaste calos nas mãos e na alma. Foste rico. Apertaste a bolsa furiosamente com um nagalho, amontoaste, quiseste fazer fortuna. Morreste. E o sonho de uma grande fortuna morreu contigo. E lá do teu mundo em que te esqueces, perguntarás: «Para quê?». Sim, para quê? Todas as fortunas servem para nada. Todas as fortunas se esvaiem. Conheci-te já velho. Eras um velho alto, forte, corado no rosto e amparavas-te a uma bengala e bebias o vinho por uma cabaça. Gastavas um cesto de vindima por ano, sentando-te todas as tardes, além, no fundo do quintal, com a tua bengala ao pé. Eu fugia para junto de ti quando alguém me batia pelas asneiras que a minha irresponsabilidade de criança cometia. Reconhecia-te autoridade para o meu refúgio. Fazia-te festas, colocavas-me no teu colo e beijavas-me, roçando o teu bigode na minha cara imberbe. Gostava de ti, sabes? Só não gostava quando te pedia um brinquedo e tu dizias que era um por ano. Tu lembras, não lembras? E eu, então, pegava num pedaço de cana e fazia-te a barba... E tu gostavas e davas-me tostões para rebuçados. Em casa, as criadas, tiravam-te, sem tu saberes, azeite e batatas, por que davas tudo por ração e a ração não chegava. Eu vi muitas vezes minha mãe chorar, à mesa, por que tínhamos que comer batatas sem azeite havendo tanto na dispensa. E as lágrimas de minha mãe eram o azeite. Era demais. Tu não reconhecias isso? E para quê? Morreste e cá deixaste. Dos que originaste nem todos te souberam seguir. Estavam habituados a pouco e depois de tu morreres, quando se viram commuito, estragaram. De nada valeu trabalhares que nem um galego e poupar que nem um avarento. Tu saberás perdoar-lhes como perdoaram a ti. Uma mulher te amou e sofreu e morreu a sofrer por ti. Deste-lhe um tecto igual ao que te cobria, mas não lhe deste o carinho, o amor, a lealdade que ela queria e merecia. Foste mau. Muito mau. Não te admires da minha sinceridade. Sabes, muita gente não gosta de mim porque não sei fingir e digo a verdade. E têm medo de mim assim, chamam-me antipático, bruto. O que eles queriam era que eu dissesse sempre que sim com eles, lhes aparasse todo o jogo. Mas eu não me acobardo naquilo que mais nobre e puro há no homem: a sua integridade moral. Não me importo que me detestem os mentirosos, os interesseiros (os que gostam mais deste ou daquele consoante lhes enchem mais ou menos a bolsa insaciável), os bonecos de luxo de estimação, os que batem com uma mão no peito e roubam com a outra, os que dão beijos pela frente e lançam punhais pela retaguarda. Não me interessa de nada. Antes assim, com a tranquilidade consciente, do que viver no meio desta escumalha toda sendo como eles. A esses mando-os dar uma voltinha pelo Marão da vida a ver se aprendem mais alguma coisa do que aquilo que a sua tacanhez lhes ensinou. Mas porque foste assim tão mau para com a tua mulher que sempre te guardou lealdade, te deu os TEUS filhos, para aquela mulher que nos tempos da sua juventude te entregou a reputação, cega por um amor puro? E porque não calaste as bocas porcas e ignorantes e incivilizadas do mundo, levando-a a uma Igreja para um padre vos pôr as alianças que se compram nas ourivesarias em negócio regateado? Sabes, a sociedade é assim. Faz-se porque é bonito, porque é o bem, porque a tradição manda, porque os preconceitos tapam os olhos da inteligência. Mas eu não te censuro por não teres ido à Igreja, o que eu te censuro é teres atraiçoado um amor autêntico (daqueles que não precisam de carimbos nem de selos), um amor do qual te vieram os filhos da tua vida. Isso não se faz. Uma mulher que é nossa é-o sempre até morrer. Não te rias dessa maneira. Repara que choro. E nós nunca devemos rir dessa maneira para uma pessoa que chora como eu, agora.

Era uma criança quando morreste. O corpo ia-te pesando e a bengala já mal aguentava. E caíste um dia na cama para nunca mais te levantares. Eu vi-te. E chorava muito por saber que ias morrer (sim, eu já sabia que ias morrer, pois o meu sentido de criança pressentia-o). E tu querias sorrir para mim, mas a paralisia não te deixava. E eu ia-te beijar nos meus intervalos de brincadeira (perdoa-me o ter brincado com os meninos pobres da minha idade, enquanto tu morrias aos poucos). E as lágrimas (lágrimas de arrependimento e saudade que a morte sempre traz) saltavam-te para as faces ao veres-me na tua frente. Pensavas o que seria eu mais tarde, mais tarde quando o teu corpo frio e digno (não há posição mais digna que a morte) estivesse já nas fezes dos bichos subterrâneos. E pedias papel para escrever, mas a letra não se percebia, as mãos estavam-te presas pela inércia dos nervos; quererias emendar alguma coisa de que te tivesses arrependido? Há momentos assim: em que já é demasiado tarde para voltar atrás. Os que te amavam fizeram tudo para que vivesses. Os que te invejavam fizeram tudo para que morresses. Vieram médicos da família para te ver. Algumas pessoas que antigamente te batiam nas costas impediram que outros, vindos de longe com a sua fama aos ombros, diagnosticassem a tua doença; tinham medo que eles te salvassem. Mas deixa lá que já estás vingado – a morte é «privilégio» de todos. Morreste que nem um santo, dizem os que assistiram ao teu adeus (já reparaste que toda a gente morre como um santo?). E lembro-me do ambiente do dia da tua morte. Tenho ainda nos ouvidos os gritos de minha mãe que me cobriu toda com seu corpo a esconder-me da verdade e eu agarrei-me a ela e chorei também. E vi pessoas vestidas de negro que se mexiam em bicos de pés e cochichavam umas com as outras e se mostravam muito atenciosas para minha mãe. Tive nojo e medo dessas pessoas e estive mesmo para gritar (mas eu não podia, ainda era criança): «Cuidado!». Esses vultos entravam pela porta dentro, uns atrás dos outros, como se estivessem todos na rua à espera de que morresses. Depois trouxeram um tabuleiro, daqueles em que mandavas pôr os figos a secar, e depositaram-no em cima duma caixa. Vestiram-no bem, com gravata e tudo (a sociedade tem a preocupação de vestir os mortos como se vestem os políticos para botar discurso), puseram-te no tabuleiro e taparam-te com um lençol branco, enquanto umas velas (sempre detestei as velas, fazem lembrar os mortos), de pavios tristes, alumiavam o silêncio do teu corpo. Nessa noite dormi mais agarrado a minha mãe. Tive medo. Um medo que me dava ganas de gritar que eras nosso, de berrar àquela gente que me passava as mãos pela cara e dizia: «Meu menino, coitadinho!...» que se fosse embora velar os seus mortos lá em casa. Quando acordei já estavas na urna (tudo calculado, tudo calculado), uma urna bonita, cara, toda forrada, de não sei quantos contos de réis e até tinha uma chave dourada (hás-de-me dizer se resta alguma coisa disso). E aqueles vultos negros, de mulheres principalmente, cirandavam à volta como moscas zunindo. E levaram-te, numa tarde, com homens engravatados a pegarem-te no caixão e gritos desesperados de quem te via partir sem a esperança de que voltasses. E pela estrada fora, a gente que te acompanhava, ia de chapéus nas mãos com o ar de quem cumpria um ritual, muitos indo lá só com o receio do que os outros dissessem se não tivessem ido. Eu fiquei impávido, vendo-te levado por outros homens e não disse nada. Olhei sempre, sempre, até a multidão desaparecer no fundo da recta. Voltei, pelas mãos de minha mãe, à casa que ficou vazia sem ti. Sentia-se que faltava alguém, mas esse alguém nunca mais voltou.

Não Matem a Esperança - Capítulo VII
Uma dessas famílias de saltimbancos que arrastam, de terra em terra, de feira em feira, sofrimento e miséria, pousou na aldeia. Armou sua barraca de pano. Simples a operação: um lençol que já fora branco e, agora, nem branco nem negro, não tinha cor, um pau espetado e aí está a cónica cortelha. Uns por cima dos outros ali dormirão seres humanos.

No dorso da burra, de pé, em equilibrismos e decorados falarios, aumentados por um funil, ergue-se o chefe.

- Venham ver! Venham dois irmãos: um de sete outro de nove anos,fazerem maravilhas; fazem o salto mortal, dão cambalhotas e muitas mais coisas que só à vista se acreditam!

O povo escuta e interessa-se. A sua monotonia estremece. A indiferença transforma-se em curiosidade. Tudo que desperte estes espíritos adormecidos e mofosos tem atenção. O que esta gente precisa é, de vez em quando, de uns murros na sua rotina. São os velhotes, troncos curvados pelos anos, colete a boldrié, arrastando os tamancos, que se levantam das soleiras e dos bancos das tabernas e das casas a apreciar o «circo»; é o rapazio que deixa de esgadanhar o chão e brincar às escondidinhas para ir ver os «trapezistas»; os moços adultos ou adolescentes que abandonam a sueca ou o sete-e-meio e deixam de gritar «coringas!» no andor da capela para observarem os «saltimbancos». Em breves comenos, o terreiro está apinhado. Empurram-se uns aos outros na busca do melhor sítio.

- Bá, ó Zé, nada de empurras, ouviste?! Lá ver!...
- Tu é que és o gordo ou quê?! Até parece que não cabes! Olha o catano!...

Os mais idosos não procuram as melhores posições: dão-lhas. Têm direito à primeira fila, como família burguesa que marca de tarde as cadeiras da plateia para a sessão da noite. A garotada fura, de gatas, pelas pernas da assistência.

- Que raio de canalha esta! Que andais aqui a fazer?! Ide para casa, ide!

«A canalha», porém tem o direito de ver. Querem admirar as «maravilhas» dos «artistas».
No cimo do animalejo, o chefe anuncia: «Atenção! Vamos começar o nosso espectáculo!». Desce. Pega num bombo e ataca-o com marteladas furiosas e estridentes. Dois rapazitos, troncos-só-ossos, olheirentos, faces amantinas, saiem da barraca. Perfilam-se. Fazem vénias de agradecimento aos assistentes que batem palmas. Um, deita-se numa manta, erguendo ao mesmo tempo os braços e encolhendo as pernas, o outro finca as mãos nos joelhos, os ombros nas mãos daquele e, num salto, fica erecto, pernas retesadas até a assistência se cansar de aplaudir. Levantam-se. Num imprevisto, o que parece ser o mais novo, dobra-se, no ar, num salto que deixa o povo boquiaberto.

- Viste Chico? Fantástico! Isto é que é um salto mortal! Sim senhor! É objecto!

O miúdo desfaz-se em mesuras. O bombo, triunfante, trepida ainda mais. Agora muda de tom, silencia, quase. Aparece uma corda. Os rapazitos pedem que alarguem o círculo. O povo cede e afasta-se exageradamente. Um daqueles envolve a cintura na corda. O outro agarra a extremidade e faz girar o irmão num carrossel, a princípio lento, em seguida acelerado. O tamboril aumenta. Rufa. Com força. Mais força ainda. Mais ainda. Diminui. O carrossel humano roda devagar já. Aquele decresce até ao silêncio. O «artista» endireita a cabeça. Toca os pés na terra. Pára. A gente grita: «Bravo!». Aproveitando o entusiasmo, uma mulher, de saia e blusa pintadas de remendos, comida nas carnes, aparece, estendendo humilde, demasiado humilde, um prato. Aprimeira dádiva tilinta. A dois assobios um cão indolente e careca torna-se presente. Uma vergasta rodopia em retorces rápidos.

- Biscoito levante-se!

O cão ergue as patas dianteiras. Sem convicção. Maquinalmente.

- Quieto Biscoito!

O canídeo não se mexe.

- Salta Biscoito!

Assim fez. Ao retardador. Empoleirou-se nos ombros do garoto. De novo mais palmas. O Biscoito não agradece. O «Domador» acariça-o e cospe-lhe nas ventas. A mulher-mãe aparece com o prato das esmolas, como na missa um ajudante, e recolhe-se envergonhada, silenciosa, triste. O chefe-pai anuncia que «a primeira parte do espectáculo terminou. A segunda parte é daqui a alguns instantes.».

Enquanto as gentes comentavam, fumavam e zaragateavam, ele retirou-se e foi abafar os seus gritos onde ninguém lhe pudesse escutar as asneiras da revolta.
- Continua.

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