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segunda-feira, 26 de março de 2012

Antão de Carvalho - O retrato de uma paixão pelo Douro

“A Régua nunca avaliou o seu grande talento, embora o estremecesse carinhosamente” 
Pina de Morais (Noticias do Douro, 1948)

     Quando visitei, pela primeira vez, o Museu dos Bombeiros da Régua surpreendeu-me ver exposto um retrato de Antão de Carvalho na galeria dos sócios beneméritos. Confesso que desconhecia, por completo, que tivesse qualquer afinidade pessoal ou institucional de relevância na história da associação.
     O que eu sabia da biografia do Dr. Antão Fernandes de Carvalho em nada o relacionava com factos ou acontecimentos da história da Corporação dos Bombeiros. Sabia que era natural de Vila Seca de Poiares, onde nasceu em 1871 e que se tinha formado em Direito pela Universidade de Coimbra. Proprietário rural e viticultor exercera com fama a profissão de advogado e desempenhara funções políticas relevantes, entre as quais, as de Presidente da Câmara do Peso da Régua, Deputado da Nação e Ministro da Agricultura.
        Conhecia-lhe referências da sua acção como paladino do Douro, o mais combativo, reivindicativo e devotado defensor regional, e o fervor pelas ideias do regime republicano, o qual que representou politicamente na Régua ainda no tempo da monarquia. Coubera-lhe a missão de, no dia 10 de Outubro de 1910, em substituição do monárquico presidente da câmara ler, no salão nobre dos Paços do Concelho, com a assistência de muito povo, forças militares, autoridades civis e representantes de associações locais – aqui, quase de certeza, estariam presentes os directores da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários - o texto de proclamação da República.
       Com a queda da monarquia, Antão de Carvalho assumiria a presidência da câmara da Régua e, no cumprimento dessas suas funções, suspeitei eu que tivesse concedido significativo auxílio e cooperação à Corporação de Bombeiros, fundada em 28 de Novembro de 1880 e, agora, comandada por um intelectual de mérito, José Afonso de Oliveira Soares. Embora distinguida por “Real Associação” pelo Rei D. Luís, na instituição o espírito republicano sentia-se presente em muitos associados e bombeiros que professavam os ideais do novo regime. Por certo, estes bombeiros voluntários esperavam que Antão de Carvalho fomentasse mais apoio, já que careciam de materiais para os fogos e de instalações apropriadas para a sua sede e o quartel. 
       A ter assim acontecido, o que eu não tinha a certeza, estava estabelecido o elo de ligação de Antão de Carvalho e o Corpo de Bombeiros para que, mais tarde, fosse distinguido o como Sócio Benemérito. O meu entendimento precisava de ser confirmado com um testemunho credível, mas as pesquisas foram infrutíferas. Com valor e interesse encontrava uma carta manuscrita pela D. Zélia Carvalho, sua irmã, a agradecer a gratidão dos bombeiros pelas dávidas e, no Salão Nobre, estava uma pintura do retrato do cunhado António Fernandes Carvalho.
    De qualquer forma, sentia-me orgulhoso por esta figura histórica de importância nacional, dotado de valores e de humanismo, o activista militante na defesa de região duriense, estar presente na história dos bombeiros. Sinceramente até deixei de considerar importante saber qual terá sido o seu contributo para com os bombeiros mas, para mim, estaria relacionado com a sua acção como presidente da câmara, no período de 1915-1925, Julgava eu - e bem, afinal - que poderia ter prestado à corporação uma valiosa colaboração institucional, assim garantindo às populações a protecção e o socorro de bens e vidas.
     Mas quando eu menos esperava, ao consultar edições antigas do jornal Notícias do Douro, encontrei a justificação para que aquele retrato de Antão de Carvalho estivesse guardado no museu dos bombeiros. O essencial estava narrado numa notícia que dava o seu falecimento, no dia 13 de Agosto de 1948. Assim, nestes termos simples: “...que à Presidência do snr. Dr. Antão ficou devendo valiosos serviços, entre os quais, quais a instalação do seu quartel da Rua dos Camilos.”
      Foi nesse quartel, uma velha casa sem condições, onde os carros e as ambulâncias mal cabiam, que os bombeiros estiveram instalados, desde 1923 até 1954. Tiveram de esperar muito tempo, nesse local, para abrirem as portas do novo quartel, uma construção de raiz, projectada por arquitecto famoso, mas conseguiram realizar o objectivo que ficará por concretizar nos mandatos de Antão de Carvalho na presidência da Câmara.
       Quando morreu Antão de Carvalho, o Douro e a Régua ficaram de luto. As principais instituições que ele estivera ligado, como a Câmara Municipal, a Casa do Douro e o Grémio dos Vitinicultores, colocaram bandeira a meia haste. O mesmo fez a Associação Humanitária em sinal de respeito pela perda do seu distinto Sócio Benemérito. Os directores e um piquete de bombeiros fizeram-se representar nas cerimónias fúnebres. Os bombeiros carregaram com a sua urna aos ombros até ao pronto-socorro Buick que a transportou para Vila Seca de Poiares, onde o seu corpo foi repousar, por alguns momentos, na velha casa de família, a Casa Amarela. Por fim, sempre acompanhado pelos bombeiros, o cortejo retomou o caminho em direcção do cemitério de Poiares e aí foi sepultado.

“O Dr. Antão de Carvalho ocupa um lugar primancial na galeria dos grandes homens de todos os tempos que o Douro tem tido”- Júlio Vasques (A Defesa do Douro,1930)

     Antão de Carvalho não morreu, se pensarmos que ficou a sua obra que construiu com empenho cívico, determinação, inteligência e muita paixão a pensar no bem colectivo. Como o mais carismático e eminente dos paladinos do Douro fez parte de elite social, económica, cultural e política que dirigiu um movimento de defesa dos lavradores do Douro: a disciplina da produção, o aumento dos preços e o escoamento do vinho do Porto. Ele foi líder principal de uma reforma institucional do sector vitinícola duriense. Na sua casa, no Largo Sacadura Cabral, nº61, na Régua, redigiu as bases e depois o contra-projecto que criou na Régua, em 1932, uma organização associativa para representar interesses da lavoura, a Federação Sindical dos Vitinicultores do Douro - Casa do Douro.
        Os amigos chamaram-lhe o “João das Regras” do Douro e que representava a “Voz do Douro”.Pina de Morais, escritor nascido em Valdigem seu contemporâneo, com quem conviveu na defesa da mesma causa, definiu-o como um “Jurista Romântico”. Escreveu numa brilhante crónica, depois da sua morte, a lamentar a sua perda irreparável para o Douro, onde sintetizou a razão do qualificativo: “Jurista romântico escrevi eu. Era de facto um jurista romântico, pois aliava a estrutura rígida da lei, o romantismo dos homens de 1820 e o seu sonho infinito que nimba as almas que se dão inteiramente ao torrão onde nasceram.”
       O escritor João de Araújo Correia traçou-lhe o génio nestas palavras: “Pertencia a uma raça hoje extinta à superfície da terra portuguesa. Era orador. Como advogado, tinha desenvolvido o verbo congenial na prática forense. Fora da teia eleva-o à sublimidade num comício em prol do Douro. Tão orador era, que não sabia escrever. Só sabia ditar.” (..) Antão de Carvalho, homem de palavra tão fácil, que subia com ela ao céu da fantasia numa tertúlia de gente positiva, manteve-se no foro e na política  sem o mínimo desvio. Foi ministro sem deixar de ser jurisconsulto. Se se desgarrava, durante uma conversa, nunca se desgarrou a inquirir testemunhas nem a rezar o credo democrático”
       O seu talento e a sua paixão pelo Douro mereceram do autor do romance Sangue Plebeu, onde evoca o motim de 1915, em Lamego, esta nota de apreciação: “Teria uma biografia brilhante, excepcional, se tivesse ficado nos grandes meios ao serviço do seu país. Tanto melhor para o Douro, porque este não teve nunca, que eu saiba, quem puzesse tanto coração, quem se identificasse e vibrasse com as suas alegrias e sofresse com as suas dores…” 
       A paixão pelo Douro e à sua terra natal, à Régua foi o estado de alma permanente de Antão de Carvalho que o próprio exarou no seu testamento público: “Coerente com os princípios morais, sociais e políticos que dominaram a minha agitada vida e pelos quais indefectivelmente lutei, afirmo, neste solene momento, a minha concordância com a moral cristã na República e o meu anseio de que esta se adapte ao imperativo do progresso, em marcha para uma mais perfeita e justa organização social. No isolamento em que actualmente vivo, tenho sempre presentes no espírito e no coração esta sagrada Região Duriense e a linda terra da Régua, bem como acima de tudo a modesta aldeia em que nasci, dando por bem empregados o trabalho e sacrifícios de toda a ordem que durante anos lhe consagrei.
O meu funeral será feito à vontade do meu testamenteiro, dos adiante nomeados, que aceitar desempenhar o respectivo cargo. Desejo no entanto, que ele seja modesto e simples, espelho do que fui em vida, sem convites ou sugestões e que o meu corpo vá repousar no jazigo de família, ereto no cemitério de Poiares, deste concelho, junto de meus pais e irmãos, como tal considerando o meu bom cunhado António, passando se assim entenderem, na ridente aldeia de Vila Seca, onde nasci, estando ou não depositado algum tempo na velha “Casa Amarela”, relíquia familiar, ou na formosa capelinha de que minha irmã Zélia é desvelada protectora.
Será a ronda do morto sem descanso como na atormentada vida se viu.”
      Razão terá, certamente, João de Araújo Correia, que no artigo “Dois Paladinos” (in Comércio de Porto, de 30-10-65), faz uma enérgica apologia aos históricos defensores da região: “ O Douro, sempre em crise latente, podia contar com os seus paladinos. Confiava neles, secundando-os com os seus vivos e assinaturas. Hoje, se não tiver alguém que o alumie, não sabe donde lhe vem o mal nem de que lado lhe virá o remédio”. Como é verdade quando diz que o Douro de hoje precisa de o voltar a escutar sobre as eterna questão duriense: “Sempre que o Douro sofre, com vinhos por vender ou à espera de pagamento, vou ao cemitério do Peso entrevistar Júlio Vasques. Subo ao cemitério de Poiares para conversar como Dr. Antão de Carvalho. Fora de fantasia, é capaz de me apontar o bom caminho…”.
        Se hoje a sociedade esquece ou ignora os seus melhores, aquele retrato de Antão de Carvalho evoca as memórias de um homem singular que deixou marcas que perduram no nosso tempo. Agora que os lavradores do Douro vivem outra grave crise e que a Casa do Douro por ele idealizada, se encontra quase à beira do fim, percebemos quanto importante e necessário foi este homem para a região duriense, para todos nós que dependemos da economia do vinho.
     Aquele seu retrato está no lugar certo, no lugar daqueles se entregam ao bem, num exemplo de dedicação, altruísmo e generosidade incessante para com o seu semelhante, valores e princípios que Antão de Carvalho defendeu apaixonadamente na sua passagem muito intensa pela vida Significa também dos bombeiros gratidão a um benemérito que em muitos pequenos gestos, tão pequenos que não ficaram registados em nenhum lugar, a não ser numa página de um jornal, mas que tanto significaram para os bombeiros. Quem sabe, se não foi graças, a essa velha casa adaptada a Quartel que lhes permitiu o sonho de construírem um quartel, nesses difíceis anos 30 no Douro e no país, que é o mais belo edifício da cidade do Peso da Régua.
      Se os bombeiros devem muito a Antão de Carvalho, a Régua e região duriense devem-lhe muito mais – ele que foi o maior defensor do Douro e do Vinho do Porto.
- *José Alfredo Almeida, Março de 2012
Parte 1


Parte 2

*O Dr. José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também cronicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária e fatos do passado e presente da bela cidade de Peso da Régua.
Clique nas imagens para ampliar. Este texto está também publicado nas edições do semanário regional "O Arrais" de 22 e 29 de Março de 2012Texto e sugestão de J. A. Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Março de 2012. Este artigo pertence ao blogue Escritos do Douro. Todos os direitos reservados. É proibido copiar, reproduzir e/ou distribuir os artigos/imagens deste blogue sem a citação da origem/autores/créditos.