quinta-feira, 19 de março de 2015

Cartas de longe: Lembrando o PAI, o cidadão, o jornalista Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Testemunhos do tempo
À memória de Jaime Ferraz Rodrigues Gabão

Era Março de 1971.

Moçambique vivia os anos de brasa do conflito armado, em plena guerra colonial.

No batalhão militar de Pemba, constituído, na sua quase totalidade por jovens do recrutamento local, ia processar-se a graduação de um furriel em alferes.

Como convinha, na sua perspectiva, para incentivo e psico exploração junto das forças vivas locais, o comando militar preparou uma pequena cerimónia para a qual , além de muitas individualidades civis e militares, convidou as delegações dos órgãos de comunicação social.

Entre estes últimos encontrava-se um homem por demais conhecido na cidade, onde a par do seu trabalho na Sagal, desde que em 1957 viajara das terra durienses para aquele torrão africano, vinha promovendo através do diário (*Diário de Lourenço Marques-Página de Cabo Delgado) de que era representante, a cidade, os seus valores, os seus anseios, as suas gentes. Fazia-o de forma discreta, sem alardes, ele que era um homem discreto, adverso a fúteis protagonismos, mas com uma garra e uma capacidade de trabalho e dedicação, que não passava despercebido o seu espírito de iniciativa e labor em prol da urbe que o acolhera.

Tinha nome esse grande Homem: JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO, ele que era o chefe natural duma família de bem com nome gravado naquele chão macua; naquele chão que foi de luta, mas também de trabalho, de suor e lágrimas, mas também de alegrias e felicidades.

E foi este homem que me deixou na memória aquilo a que eu chamo um “pormenor” de comportamento, gravado na memória do tempo, desde esse dia, tão distante e tão próximo, da cerimónia no batalhão militar, na bela cidade, então Porto Amélia.

Findas as formalidades oficiais da cerimónia castrense de imposição de galões ao jovem alferes, o comandante convidou todos os presentes para um lanche/convívio no bar de oficiais.

Todos acorreram solícitos, inclusive todos os outros representantes dos órgãos de comunicação social, distribuindo os habituais sorrisos e lindas palavras de circunstância com as entidades civis e militares presentes.

E foi com alguma surpresa e interrogativos pensamentos que o jovem oficial, viu o senhor Gabão– como o conhecia, – em passada larga, denotando inusitada pressa, abandonar o local, sem se dispor a tomar parte no convívio e repasto “elegante” que se seguiu.

Inicialmente, estranhou a atitude e não conseguiu divisar o real motivo de tão apressado debandar.

Não questionou ninguém, mas também não seria necessário. A resposta concreta, sem palavras ou justificações circunstanciais, chegou-lhe logo no outro dia: o jornal diário do nosso repórter Gabão foi o único a publicar a reportagem do acontecimento. Os outros deram-no à estampa dois ou três dias depois.

O nosso homem, mais uma vez, fez jus àquilo que a cidade lhe já conhecia: primeiro a obrigação, o trabalho, depois a devoção. Melhor, primeiro a profissão, depois o camarão, os whiskys, os eventos de fachada.

Foi este o tal “pormenor”, que poderá sugerir uma banalidade circunstancial, mas que o jovem alferes não deixou escapar da sua memória, e que mais se foi avivando na medida em que foi aprendendo no tempo a reconhecer onde no concreto residem os valores das pessoas.

E por julgar um dever, aqui o deixa relatado para lembrar mais um grande homem que, por quase duas décadas, foi do Pemba, do Cabo Delgado, do Moçambique, que, como nós, aprendeu a amar.

Hoje, lembrei-me de ti, JAIME FERRAZ GABÃO...
- Em 14 de Janeiro de 2003 - por Francisco José Branquinho de Almeida Portugal.

Vamos, Jaime, vamos...

Faz um ano que me deixaste. O 18 de Junho é mais uma data da minha memória. Como este Mundo ainda não me arrancou o coração do peito nem me chupou o sangue onde ferve a minha alma, aqui estou a escrever-te para que me ouças na transcendência da comunicação espiritual que os laicos materialistas não entendem, mas fingem aceitar quando lhes interessa para o alcançar das efémeras ambições urdidas na penumbra das intrigas.

Venho convidar-te para irmos ao outro lado do mar, esse mar das Descobertas, do escorbuto, dos sofrimentos e da morte. Vamos revisitar a África onde uma geração caminhou, lutou e morreu sem saber que, um dia, o seu sacrifício seria espezinhado nas alcatifas dos sapatos de pelica.

Anda, Jaime, vamos a Porto Amélia, à cidade ondulada, a mirar-se no espelho do Ìndico, tão linda e tão calma que nem a tempestade lhe arranca as palmeiras. Vamos à praia das areias prateadas, mergulhar nas águas mornas e transparentes, com os corais ali à mão e o sal lá em frente, na linha do horizonte, quase a querer dormir, acariciando-nos os corpos. Caminharemos pela estrada de terra vermelha enquanto, ao longe, na temba isolada junto ao farol, o tam-tam do batuque vai crescendo, num frenesim de sensualidade e de suor, de crença e de dor, de delírio e de espanto.

Vamos a tua casa ver se ela ainda está rodeada de acácias, se a porta se abre e se há mesa para comermos papaias e mangas e ananases e cocos e toda a fruta nascida da virgindade do mato.

À noite, com a lua iluminando a baía, daremos uma volta pelo bairro, diremos "Olá" aos cipaios, tomaremos um café no "Polo Sul" e conversaremos sobre a Régua e as suas gentes, o meu Pai teu companheiro de Escola, as saudades das uvas com broa.

O cais estará vazio porque não é dia de S. Vapor, apetece-nos uma "Laurentina" no Marítimo, passaremos pelo Niassa até nos quedarmos no pequeno terraço da Pensão Miramar com os teus Amigos a contarem histórias do algodão e a fumarem "LM". Então, o cacimbo, virá como um nevoeiro, do lado do mar; o Paquitequete encher-se-á de ruídos e de corridas labirínticas, o Gary Cooper não dará mais tiros aos índios no barracão cinema dos monhés, subiremos a Rampa ou as Escadinhas e saudar-nos-emos com um abraço "Até amanhã".

Anda, Jaime, não hesites, vamos lá, a Porto Amélia, onde ficaram as lágrimas da tua despedida, obrigado a partires quase sem nada, fazeres as malas à pressa porque não querias ver os teus amigos de ontem transformados, repentinamente em revolucionários de sempre, porque te enojou a cobardia de uns tantos que julgavam ser possível apanhar o maximbombo do novo poder.

Vamos a Moçambique gritar que nós não temos culpa do que fizeram uns senhores que chegaram a Lisboa feitos heróis, idolatrados como salvadores, que nunca vestiram uma farda nem sabiam onde ficava África; que, por ideologias e parentescos internacionais, voltaram as costas a milhares de Portugueses que julgavam ter merecido a dignidade e a honra de reconstruirem nas matas e nas cidades a grandeza de uma Pátria.

Vamos, Jaime, vamos a Porto Amélia, dizer àqueles que, muito depois de teres vindo, te continuaram a escrever cartas de estima, que a culpa não é nossa, que não fomos refractários nem desertores, que não os abandonamos, mas nos impuseram o abandono.

Vamos, Jaime, vamos...
- Por M. Nogueira Borges-Porto-1992

QUEM FOI JAIME FERRAZ RODRIGUES GABÃO

Nasceu na cidade de Peso da Régua em 13 de Abril de 1924. Com 68 anos, depois de uma vida plena de altruismo, na alegria de fazer e conservar Amigos, dedicado à família e à sua terra, a cidade de Peso da Régua, mesmo quando residente em Moçambique, em Porto Amélia, onde ganhou o respeito, a admiração e a gratidão de todos - pelo que sempre a recordava como um apaixonado - Jaime Ferraz Gabão, Delegado do nosso jornal naquela cidade, faleceu a 18 de Junho, Dia do Corpo de Deus, em Lisboa - onde, há uns dois meses, se submetera a melindrosa intervenção cirúrgica.

Era casado com D. Nailde Soutelinho Vieira Ferraz Gabão; pai dos srs. Jaime Luis V. Ferraz Gabão (Brasil) e Júlio Manuel Ferraz Gabão (Régua); irmão de Margarida Ilharco Ferraz (falecida Porto), António Jorge Ilharco Ferraz (falecido-Régua) e Henrique Ferraz R. Gabão (Costa da Caparica); avô de três netas e um neto.

Jaime Ferraz Gabão, decano dos jornalistas da Imprensa Regional (em Trás-os-Montes e Alto Douro), começou carreira na Imprensa do Douro, tendo colaborado em jornais como "Jornal da Régua" (extinto), "Noticias do Douro" (Régua), "Noticias da Beira" (Beira-Moçambique), "Diário de Moçambique" (Beira-Moçambique), "Diário de Lourenço Marques" (Lourenço Marques-Moçambique), etç. Era delegado de "O Jornal de Matosinhos" (Matosinhos) e do "Primeiro de Janeiro" (Porto), e redactor de "O Arrais" (Régua) e de "A Voz de Trás-os-Montes" (Vila Real).

Funcionário da Estação Vitivínicula do Douro, diretor de vários clubes desportivos em Porto Amélia, foi distinguido como Sócio de Mérito do Sport Clube da Régua e homenageado pela Câmara Municipal de Porto Amélia, onde colaborou no Emissor Regional de Cabo Delgado.

Foi ainda agraciado com um "Diploma de Louvor" da Presidência do Conselho de Ministros (sob proposta do nosso jornal), com um "Diploma da Cruz Vermelha Portuguesa", pelo seu trabalho na Delegação da Régua e homenageado pelo Clube de Caça e Pesca do Alto Douro e pelo Rotary Clube da Régua, etç.

Vida, assim, intensamente vivida, em exemplaríssima dedicação à Comunidade, bem merece que o seu nome seja perenizado na sua Cidade-Berço. De resto, parece ter sido esse o sentir da multidão que o acompanhou à última jazida, depois da Missa de Corpo Presente, na Igreja Matriz, a que presidiu, por deferência do Pároco, sr. P. Gouveia e do seu Coadjutor, Sr. P. Vital (que celebrou), o Director de "A Voz de Trás-os-Montes", particular e dedicado Amigo de Jaime Ferraz Gabão.
- A Voz-de-Trás-os-Montes de 25 de Junho de 1992.

(Transferência de arquivos do sitio "Peso da Régua" que será desativado em breve)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

28 de Novembro

A  AHBVPR celebra hoje o seu 134º aniversário, o que faz dela a mais antiga do Distrito e uma das mais antigas do País, motivo de orgulho para todos nós.
De 23 de Abril de 2010:
(Clique na imagem para ampliar)

Dedicado ao Bombeiro Auxiliar Zé Penajóia.
28 de Novembro… é o dia do aniversário da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua e mais um dia de festa para a cidade.

O programa, ao longo dos anos, é quase sempre o mesmo, é por norma inalterável, apenas muda circunstancialmente quando há inaugurações de benfeitorias no património e a bênção de novos carros de fogo e de ambulâncias. Acima de tudo, nesse dia, a população espera nas ruas da cidade, o desfile do corpo de bombeiros, com os sons e colorido da fanfarra a abrir, faça sol, frio ou chuva. Mas, começa-se sempre com a alvorada de fogo de morteiros. Depois, com os directores dos corpos sociais presentes, erguem-se no mastro as três bandeiras: a da associação, a do município e a de Portugal. De seguida, caminha-se para os cemitérios de Godim e do Peso, para em sinal de respeito se deixar uma flor nas sepulturas de bombeiros e directores falecidos. Assiste-se à celebração da Missa Solene na Igreja Matriz com muita fé e grande devoção divinal. Perto do meio-dia, recebem-se na entrada do quartel as principais autoridades municipais e nacionais, os representantes das colectividades locais, os amigos e velhos beneméritos. No Salão Nobre, quase sempre cheio de convidados, o ritual persiste nos agradecimentos e nas cortesias e ouvem-se bons discursos a exaltar o voluntariado e os generosos bombeiros de todos os tempos. Não se esquece o mérito e dedicação dos mais assíduos que são reconhecidos com medalhas de louvor. Finalmente, a festa prolonga-se no tradicional almoço de confraternização entre bombeiros, directores, associados, benfeitores e muitos amigos convidados.

Em cada aniversário, a cidade aproxima-se mais dos seus bombeiros. É isto mesmo que recorda o Dr. Manuel Augusto Escaleira, como antigo director do jornal “O Arrais”, no interessante texto “Vida por Vida”, em que expressa da melhor firma o significado de um aniversário dos Bombeiros da Régua, o festejado 103º. da Associação:

“Não é preciso ser angélico para verificar que, no mundo em que vivemos, campeia o ódio, o egoísmo e a inveja. Poderíamos também notar que os homens esquecidos da sua dignidade, são frequentemente um… para o seu semelhante.

Por isso, é reconfortante ver os exemplos de doação ao serviço, por parte de um punhado de almas generosas que tudo dão, sem nada esperar em troca.

(…)

Dentre eles destacam-se os Bombeiros Voluntários.

O seu trabalho merece o reconhecimento de rodas as pessoas de carácter e o seu realce nos meios da comunicação social.

Talvez, não seja a pessoa mais indicada para o fazer, mas sinto por estes homens desprendidos, abnegados e corajosos um respeito extraordinário.

Imagino-os numa festa familiar, num convívio de amigos ou durante o sono repousante. Toca a sirene… Eis que correm, como para ganhar um prémio, em direcção ao Quartel. Aí, num ápice, equipam-se e partem.

Vão sem uma palavra de revolta ou um gesto de enfado, para se entregarem totalmente ao trabalho, não pensando na fadiga, nem olhando a perigos.

Quantas vezes não foi a sua chegada pronta que impediu a destruição total dos bens ou a perda de vidas humanas!...

E, quando regressam, cansados, sinto-lhes no rosto sereno, a alegria do dever cumprido. Por tudo isto estes Homens merecem o nosso apreço, compreensão e estima.

Não admira, portanto o entusiasmo que anualmente se gera à volta do Aniversário dos Bombeiros Voluntários da Régua. Os nossos bombeiros completaram o seu 103º Aniversário.

Foi um dia de festa, mais uma festa íntima, como é próprio da família unida. A vila e o concelho do Peso da Régua estão com os seus bombeiros, porque os bombeiros estão com os reguenses.”

Costumam os bombeiros aproveitar o aniversário da associação para tirar fotografias das cerimónias mais brilhantes e de fazerem o seu retrato pessoal do seu agrado, numa posse de desvanecimento individual, para o guardarem em casa numa moldura, a avivar as memórias do seu passado. Foi o que fez o bombeiro José de Matos de Carvalho – o Zé Penajóia, como os seus amigos o tratam - fardado a rigor, junto ao Mercedes Baribbi, o carro de fogo que sempre gostou de conduzir, ao deixar-se fotografar num dia festivo, que será da década de 1980.

O Zé Penajóia foi um dos últimos bombeiros do quadro de especialistas e auxiliares. Essa classificação, como estava definida no velho regulamento dos corpos de bombeiros, foi legalmente extinta. Alguém que desconhece a riqueza do voluntariado entendeu que não eram necessários. Assim, deixou de ser permitido que muitas pessoas não possam dar a sua ajuda como especialistas de uma actividade. Até há bem pouco tempo, por exemplo quem era médico ou enfermeiro prestava no seio dos bombeiros os cuidados de enfermagem e de saúde e quem era motorista profissional conduzia as ambulâncias e os veículos de fogo. O quadro de bombeiros especialista e auxiliares não devia ter acabado, faz falta às corporações, pelo que tem de ser recuperado. O exemplo do Zé Penajóia prova como, através do voluntariado, certas pessoas podem ser úteis. No seu caso, ele alistou-se por volta de 1976 e serviu nos bombeiros até Março de 2010. Desde então, passou a integrar o chamado Quadro de Honra da Associação, o lugar para os bombeiros mais antigos e que deixaram a prática da actividade.

Durante 34 anos, o Zé Penajóia foi bombeiro auxiliar motorista. Sempre que os fogos apertavam era chamado para conduzir os veículos pesados. Muitas vezes, o Comandante Cardoso pediu a sua colaboração. Mas, conduziu também as ambulâncias de transporte de doentes quando não havia profissionais disponíveis para tanto serviço. Chegou a ir a Espanha, a Valhadolid, para trazer de volta um doente que aí se encontrava hospitalizado. Era a primeira vez que uma ambulância dos bombeiros da Régua tinha de passar as fronteiras do país. Não havia bombeiros que quisessem fazer esse serviço. Ele não hesitou em aceitar a missão. A viagem correu-lhe bem, sem nenhum percalço pelo caminho. Alguns anos depois, voltava a fazer nova viagem a Espanha, para transportar de ambulância um cidadão internado numa clínica.

Este é um dos muitos serviços que cumpriu com dedicação, zelo e sacrifício. A Direcção e o Comando da Associação distinguiram e louvaram-no com a atribuição de algumas medalhas: Cobre (1985), Prata (1991), Ouro (1994, 2000 e 2007), pelo tempo de bons e assíduos serviços e de dedicação e efectivos serviços prestados à causa do bombeiros portugueses.

Quem conhece o Zé Penajóia sabe que é um homem de certezas. A paixão pelos bombeiros transmitiu-a ao seu filho Marco Paulo, sapador no Batalhão do Porto e as suas duas netas, à Liliana e à Margarida, uma estagiária e a outra infante, na corporação da Régua. Tem 70 anos, mas possui uma indomável genica, que não lhe faz aparentar tanta idade. É um dos mais velhos e mais conhecidos chaufferes de táxi com o que ganha a vida. Tem uma casa de pasto, a Adega Penajóia, no Largo do Tanque Redondo, no Salgueiral, apreciada por servir bom vinho do Douro e refeições económicas confeccionadas com os sabores antigos. Nesse seu “santuário” gosta de evocar memórias de pessoas que não se esquecem, de velhos bombeiros e Comandantes que lhe marcaram o resto da sua vida.

Este homem não é indiferente ao presente, tem-lo visível numa fotografia que mostra o Corpo de Bombeiros da Régua, exposta ao olhar do público na sua adega. Não há ninguém que não se sinta seduzido pelos valores humanos que ali permanecem imutáveis. É mais um sinal da sua admiração pelos bombeiros. Embora haja quem desconheça, o Zé Penajóia encontra-se presente no meio desses anónimos bombeiros simples e humildes, que com o seu exemplo de coragem, abnegação, altruísmo e amor ao próximo, podem não figurar com o seu nome nas páginas da história, mas são os únicos verdadeiros heróis da nossa vida.
- Peso da Régua, Abril de 2010, J. A. Almeida.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Em conversa com Nogueira Borges - LEMBRANÇA DE NATAL

Fixo-me nesta pedra tumular, branca-escura de quantos lustres, ervas à espreita misturadas com cera derretida e flores campestres caídas de uma jarra. Debruço-me no gradeado que delimita o jazigo e penso:

“A minha geração paternal está toda aqui, com o meu Pai à frente, há mais tempo do que eu tenho de vida. Estão no silêncio da eternidade, indefesos, noites e dias sem uma Avé-Maria, sequer um ciciar dos que não esquecem. Uns, partiram, ainda jovens, sem a oportunidade de um arrependimento, um adeus; outros, velhos, cansados de tanto esperarem. O meu Pai foi sem ouvir o meu primeiro vagido (imaginou-me apenas), derrotado pela doença maldita a que chamam prolongada. Morreu sem me beijar, fazer uma festa na moleirinha, pegar-me ao colo, imaginar parecenças, mudar-me uma fralda, alvitrar um nome baptismal, embalar um sono, viver a maior seriedade amorosa da existência.

O que faz, afinal, a ilusão da vida? O que a dimensiona na escassez ou na lonjura dos anos? É a substância da dádiva e do amor, mesmo na brevidade biológica, ou o vazio desafectado no prolongamento biográfico? A vida nem ao menos tem lógica. Há quem morra sem uma ruga, com o sol e o pranto a adornar a despedida; há quem parta encolhido por remorsos velhos sem uma réstia de deixar saudades.

Morreu-me antes do tempo, sem tempo para lhe pedir um conselho, uns tostões para rebuçados ou para uma bola de futebol, para divergirmos quando não estivéssemos de acordo, para nos amarmos, sempre, até o sangue secar.

Aqui estou, só, com um sol fraquinho encoberto pelas nuvens de Dezembro a lembrar o Natal. Um Natal que nunca partilhei com ele e já nada me diz porque o transformaram numa hipocrisia, numa feira de vaidades, num símbolo pagão, materialista, sem solidariedade e sem virtude. Resta-nos as cruzes dos Cristos vivos e mortos, exemplos e memórias contra o ódio e a inveja que nos consomem. Um dia aqui estarei desde o nascimento sem ti até à morte contigo “.

Um vento agreste varre o alto da Corredoura. O sussurro da folhagem dos eucaliptos acentua o abandono do palacete envelhecido onde brinquei em criança, diante do qual encolho um grito inominável e pergunto por que vendem os homens as histórias das suas vidas? Lá ao fundo, para os lados de Rio Bom, há uma paisagem amarelecida, desamparada, com os fumos das chaminés a acentuar o deserto dos caminhos. O Douro, esse, não morre, continua a correr, leva nostalgias, sonhos e destroços. Há muitos Meninos Jesus na encosta-presépio de Loureiro, mas eu nunca tive um Pai Natal Vivo.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". (Atualização daqui)

Pode ler M. Nogueira Borges neste blogue e no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor e poeta do Douro-Portugal. Nasceu no lugar de S. Gonçalo, freguesia de S. João de Lobrigos, concelho de Santa Marta de Penaguião, em 5.10.1943. Faleceu em 27 de Junho de 2012 na cidade de Vila Nova de Gaia. Está sepultado em Cambres - Lamego. Frequentou o curso de Direito de Coimbra, cumpriu o serviço militar obrigatório em Moçambique, como oficial miliciano e enveredou pela profissão de bancário. Tem colaboração dispersa por diversos jornais, nomeadamente: Notícias (de Lourenço Marques); Diário de Moçambique (Beira), Voz do Zambeze (Quelimane), Diário de Lisboa, República, Gazeta de Coimbra, Noticias do Douro, Miradouro, Arrais e outros. Em 1971 estreou-se com um livro de contos a que chamou "Não Matem A Esperança". (In 'Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses', coordenado por Barroso da Fonte. Manuel Coutinho Nogueira Borges está no Google.

Clique  nas imagens para ampliar. Edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro" em Dezembro de 2012. Em homenagem ao saudoso Amigo MANUEL COUTINHO NOGUEIRA BORGES. Também publicado neste blogue em 19 de Dezembro de 2010. Este artigo pertence ao blogue Escritos do DouroSó é permitida a reprodução e/ou distribuição dos artigos/imagens deste blogue com a citação da origem/autores/créditos.