segunda-feira, 6 de junho de 2011

Uma velha Estante


João de Araújo Correia

Quando o quartel dos bombeiros funcionou modestamente numa casa situada no actual Largo dos Aviadores, frequentei-lhe as salas recreativas com o meu pai - era eu rapazinho.

Na sala dos jogos, inofensivos jogos de cartas, dominó e quino, lembro-me de ver, encostada a uma parede, uma alta e larga estante de madeira rica, toda envidraçada e repleta de livros.

Creio que ninguém lhes tocava. Quem se entretinha com a sueca, o dominó e o quino talvez nem reparasse na volumosa estante, abarrotada de livros.

Reparava eu... E o meu regalo seria abrir aquela estante e colher de lá um livro para o folhear e ler antes de me deitar. Assim eu o percebesse. Era ainda tão novo… Teria onze, doze anos.

Os meus encantos, naquele clube, eram aquela estante. Mas, sempre fechada e muda. Até que uma noite, e em noites seguidas, a vi abrir. Um senhor, que usava óculos, ia retirando e colocando de novo, no seu lugar, rimas de volumes. Arrecadava-os depois de lhes escriturar os títulos num grande livro de papel almaço.

Procedia, a seu modo à catalogação dos livros da magnífica estante. Se fosse hoje, catalogaria em verbetes, mais fáceis de consultar que um bacamarte de papel pautado. Mas, em suma, aquele senhor de óculos, talvez inocente em bibliografia ou biblioteconomia, sempre tentou, o melhor possível o inventário dos livros.

Livros que nunca mais esqueci. Quando, depois de instalados os bombeiros no quartel novo, alguém me disse que todos esses volumes estavam à matroca, empilhados num monte, sem o mínimo vislumbre de arrumação, caiu-me a alma aos pés. E assim, esteve, de rastos uma porção de anos.

Até que ontem, dia que marquei com uma pedra, vim a saber que os livros já estão arrumadinhos na estante – bela estante de mogno.

Falta-me saber se já começaram a ser catalogados. Livros sem catálogo, para quem os quiser consultar, são inúteis ou pouco menos.
Qualquer biblioteca exige três catálogos: o onomástico, o didascálico, e o ideográfico.

O mais importante de todos, em minha opinião, é o onomástico. Poderá esperar, ate melhores dias, pelos outros dois.

A velha estante dos nossos bombeiros poderá prestar serviços a estudiosos se for catalogada. Mãos à obra? Agora, que os Bombeiros festejam o centenário, saúdo-os com este alvitre.

Nota: Esta crónica – de muito interesse para a história da AHBV do Peso da Régua - foi publicada no jornal O Arrais, de 4 de Dezembro de 1980.

- Colaboração de texto e imagem do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão para o blogue "Escritos do Douro". Clique na imagem acima para ampliar.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Recortes - RÉGUA, antes... RÉGUA, depois...

Peso da Régua - Largo do Cruzeiro
(Clique na imagem para ampliar)

Saudades da Natureza

João de Araújo Correia

Tenho saudades da natureza, que ainda conheci quando cheguei a este mundo. Pela maneira como a vão ferindo, penso que morrerá antes de mim. Levo essa pena para o outro mundo.

Agora, que é Primavera e demais poesias ma anunciavam. Mas, não sei para onde foram as andorinhas. As pessoas limpas substituíram-nas por andorinhas de caco, tão silenciosas, tão quietinhas e tão asseadinhas, que não incomodam ninguém. Debaixo dos alpendres, colam-se à parede, como enfeite fixo, para todo o ano. Aí ficam, dando as quem as vê o mais subtil exemplo de maneirismo bem procedido, satisfeito de si próprio e de tudo quanto existe, Dão um bonito exemplo.

Os pedreiros, primos das andorinhas, bons artistas, que andam pelas torres e pelas pontes a trabalhar, lançando-lhes imaginários fios, para não caírem, também se foram. Para onde? Talvez para França ou Alemanha, onde o trabalho de cada pedreiro é pago a peso de oiro.

No meu rincão, à parte o cheiro da vinha, tão delicado, também as ribanceiras, os valos e cômoros anunciavam, com miríades de flores, a Primavera. Os cardos, a macela, o rosmano e a alcachofra desafiavam, da sua humildade, a altivez do espinheiro. Hoje, não desafiam ninguém nem desafiam nada. Parece que provaram, antes de florir, a dose de herbicida espalhado na vinha para evitar a cava. Quando chegar o São João, quem quiser saltar a uma fogueira não poderá fazê-la com uma erva aromáticas. Terás de se remediar com o gás Cidla.

Vem aí o Verão. Quem é muito novo pode ser muito bonito e até usar cabelo de mulher, mas, não sabe o que foram, à beira rio, as noites de Verão. Eram noites de Walt Disney. Eram sinfonias de ralos e rãs à beira-rio. Seriam uma guisalhada de mil machos alegres numa viagem sem fim. Mas, toldando a concha duriense, de montanha a montanha, não incomodavam o ouvido. Parece que o acalentava como canção natural. Hoje, tão fantástica emudeceu para deixar roncar os automóveis, os bêbados e os altifalantes. Cultiva-se o ruído, cuidando que é progresso.

Em sítios selváticos, pelo passavam pelo céu esquadrilhas de mochos reais. Nunca mais se viram nesses lugares bravios, porque a selva cedeu à mão civilizada, que não pode ver matas. Vendeu-as todas para apurar dinheiro.

As pegas e os tordos, que vinham a seu tempo visitar o Douro, para comer azeitona e o mais que pudessem, demandam agora, como turistas enfastiados, outras regiões. Se ainda existem, irão à procura de frutos que não saibam a insecticidas. Que os encontrem é o voto de quem perdoa às pegas o vício da ladroíce e outras manhas como perdoará aos tordos, por amor à finura e à disciplina, a abusiva maquia de moleiros na safra da azeitona.

Em cada quintal, empoleirado num lodo ou num loureiro, cantava às tardes um melro. Deixou de cantar ou é milagre que cante, à míngua de poleiro e até à míngua de cantor. Tão raro é agora o melro negro como o fragoeiro.

Passarinhos miúdos podiam encher, em menos de um amém, a bolsa do naturalista. Este desgraçado, se hoje a quiser encher, terá de papar muita légua. Pintassilgos e pintarroxos, tentilhões e verdilhões, piscos e cotovias voaram para sempre. Só se vêem como ilustrações de calendário. Mas, não cantam.

O ar puro era puro. Os automóveis, que passavam por quem ia a pé, tinham tomado chá em pequenos. Eram incapazes de abrir o escape. Hoje, até na face dos polícias fazem o serviço. O ar, grosso e compacto, corta-se à faca para o peão abrir caminho. Mas, não se livra de levar nos pulmões o contrapeso.

Se mergulharem no rio, só encontraremos alguma boga e algum barbisco. Sável, enguia e lampreia desertaram. No tempo da desova ou do passeio, rio acima, eram uma delícia e a fartura de quase todos os durienses. Hoje, só se vêem próximo da foz. De Entre-os-Rios para riba, temem o diabo feito açude. Só a poder de muito pulso o poderão transpor. Se ninguém lhe acudir, diga-se adeus às famosas pescarias do Alto Douro. Diga-se adeus a S. João da Pesqueira.

Onde quer se condena uma árvore sem julgamento. Não há poeta nenhum que não se lembre de cedro, castanheiro ou plátano abatido por ser árvore. Não haverá regedor, em Portugal, sem delitos de arboricida na pasta administrativa. Os mais ingénuos contam como glórias os arvoredos sacrificados. 
……………………………………………………………………………………………… 
À última hora, há quem procure salvar a natureza com técnicas perfeitas. Se tal se conseguir, já aqui não está quem se desesperou.

- 9-5-70 - In livro “Pó Levantado”, edição da Imprensa do Douro, 1974, Peso da Régua. Colaboração do Dr. José Alfredo Almeida e edição de J. L. Gabão. Imagem acima do Dr. João de Araújo Correia recolhida da internet livre e editada para o blog "Escritos do Douro". Clique na imagem para ampliar.