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sábado, 28 de maio de 2011
LOUVOR À ASSOCIAÇÃO HUMANITÁRIA DE BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA
Dr. José Silva Pinto
Teve o Senhor Presidente da Direcção desta mais que centenária e prestigiosa Associação, a gentileza de convidar-me a elaborar um texto com os principais eventos que conheci desta e nesta Associação – a que estou a aceder com muita honra para mim e com o máximo prazer, visto que se trata de algo da minha terra natal. Aliás, esta e a Santa Casa de Misericórdia são as obras de carácter assistenciais e humanitárias, principais ou nºs 1 do Peso da Régua.
Vou tentar, se a memória me não trair, descrevê-los cronologicamente.
1. Conheci a existência da Associação quando, ainda miúdo, ouvia uns gritos estranhos e perguntei o que eram tais gritos. Explicaram-me o que era, donde vinha e o que iam fazer os “Bombeiros”. Fiquei muito e gostei do modo com que explicaram tudo, as alegrias e tristezas como as pessoas se exprimiram acerca da Associação e Bombeiros!
2. Vi, pela 1ª vez, o Quartel quando minha mãe me pediu, para vir ao chamado, então “cimo da Régua”, onde 1 agente da GNR, dirigia o trânsito automóvel, então em 3 sentidos. Vim à Casa Fortunato e à mercearia do Sr. José Pinto da Fonseca. Perguntou-me a que família eu pertencia e o lugar onde morava; lugar: então, “Cais de Baixo” ou “Fundo da Régua”; pelos meus pais, disse-me que ainda éramos parentes por parte de meu pai: “Pinto”. Aproveitei essa confiança e pedi-lhe para me indicar onde era o “Quartel dos Bombeiros”. Dispôs-se logo a vir comigo e indicou, e perguntou-me se eu queria entrar para o conhecer melhor. Aceitei. Senti-me pequeno dentro do edifício e das viaturas e alguns Bombeiros fardados! Gostei imenso e contei em casa.
3. Dali em diante, sempre que ouvia tocar a “sirene” e se podia, vinha, com outras pessoas, saber onde ocorria o incêndio; alguns viam-se, outros não, consoante o lugar onde aconteciam. Eu tudo admirava! Com a idade, o vir ao “cimo da Régua”, tornou-se mais frequente e entrar para admirar as viaturas, com o que me orgulhava e algo me satisfazia!
4. A 1ª vez que vi um incêndio, de perto e de altas proporções foi quando se deu esse incêndio na “Casa Viúva Lopes”, perto da CP. Vinha eu, minha mãe e minha irmã e outros vizinhos (as) da “Novena de Nossa Senhora do Socorro quando, perto do Largo dos Aviadores, ouvimos tocar a sirene. Olhamos e vimos o fumo que vinha dos lados da CP. O grupo dirigiu-se para lá, quando, já de longe, começamos a ver umas grandes labaredas, e (como eu nunca tinha visto), disseram o nome da “Casa …”, e fomo-nos aproximando, quando “Agentes da GNR” impediram toda a gente de se aproximar mais (a nascente e do poente). Ardia!... Ardia!... quando começamos a ver uma “chaminé” que começava a tombar e as pessoas a gritar!... Eis senão quando vimos a chaminé cair, aos poucos e, com um grande estrondo, se desfez onde parou – qual “gigante adamastor”! Inesquecível! Ninguém arredou pé sem saber se algum bombeiro teria sofrido algo. Quando tal, começou um sussurro a dizer que parecia que tinha morrido o Sr. “João dos Óculos”. Quando tal, confirmou-se a verdade do tal sussurro!... Era assim conhecido porque era o único bombeiro que, naquele tempo, usava óculos!... Eu conhecia-o bem – parece-me que ainda estou a vê-lo: de estatura média e muito mexido, respeitado e admirado.
5. No dia seguinte e seguintes, não se falava noutra coisa e, quando alguém lembrava o Sr. “João dos Óculos”, ninguém continha as lágrimas! Quando, num dos dias seguintes, se celebraram as “exéquias fúnebres”, a igreja matriz foi pequena para receber toda a gente que queria rezar, render-lhe a última homenagem e um dar-lhe “Adeus” sentido. O semanário local encheu-se só com este inusitado evento e com o “bombeiro mártir” do seu dever, generosa e exemplarmente cumprido. Estiveram presentes altas individualidades de todo o distrito. À entrada dele, na igreja, no momento da elevação da S. Hóstia e do S. Cálice, bem como no final, os clarins fizeram chorar todos os olhos e até pareceu que as santas imagens acompanharam este clamor! Sendo tudo “triste”, foi muito “bonito”!... o mesmo aconteceu quando a “urna” desceu à terra nua e fria!!!
6. Quando já eu passeava na Régua, lamentava, no meu interior, o novo Quartel continuar por acabar, o que, creio eu, levou dezenas de anos. Até que chegou a ocasião do uso de novo Quartel que, além do lugar e dos espaços, é, em arquitectura, um dos mais bonitos que tenho visto; ficando, assim a Régua com um Quartel adequado, além de ser a 1ª Associação Distrital de Bombeiros; vai fazer 131 anos, em 28.11.
7. Mais tarde, alguém se eco que a Associação necessitava de um novo “Estandarte”. Meu pai - Manuel Pinto - estava na Venezuela, como imigrante. Não se fez esperar muito. Enviou o custo para a sua aquisição, e a Direcção convidou-nos: minha mãe e os seus 5 filhos, a irmos vê-la. Minha irmã Maria de Fátima tinha o “curso de bordados da Singer” e disse que a Bandeira não estava perfeita. Perguntaram-lhe o que faltava. Respondeu: “o bordado em toda a volta”. Ficaram a pensar… Ela ofereceu-se para o fazer!... Ainda hoje é o Estandarte que embeleza a participação de Bombeiros na Festa Anual de Nossa Senhora do Socorro e outras festividades e eventos.
8. Pouco depois, a Associação adquiriu uma nova Ambulância. A Direcção teve a amabilidade de convidar a minha irmã do meio – a Maria Celeste (Celestinha) para ser a madrinha. Ainda há pouco apareceu na foto de umas destas utilíssimas Histórias, de véu branco, como era costume então, em actos religiosos, na bênção… e “branco”, pois era adolescente.
9. O fim no meu “curso teológico” teve celebração solene na Matriz. 4 Bombeiros abrilhantaram-na: 2 tocaram cornetim (?), lindamente, por ocasião das “comemorações e elevações”; 2 outros levantaram o estandarte, os outros 2 estenderam o pano lindo a bandeira.
10. Uma palavrinha dirigida ao Senhor Presidente da Direcção, Dr. JOSÉ ALFREDO ALMEIDA. É um HOMEM, todo motivado e dedicadíssimo à Nobre Causa dos BOMBEIROS. Pertence também à Direcção Distrital, bem como a nível Nacional, e tem sido incansável em aumentar a nossa Associação, cada vez melhor e maior, a todos os níveis, recebendo todo o respeito, gratidão e admiração de todos os reguenses!
À POPULAÇÂO REGUENSE
11. Para que consigamos melhor o referido escopo, façamo-nos todos “SÓCIOS” dos BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS REGUENSES. Como diz o slogan muito usado “AJUDEMOS PARA SERMOS AJUDADOS QUANDO NECESSITARMOS”!
NOTA: Agradecemos ao Dr. José Silva Pinto por ter colaborado neste nosso “arquivo” com um inédito sobre as suas memórias dos bombeiros da Régua que não deixam de ser um contributo muito importante de quem viveu e presenciou factos que interessam à história da Associação.
Como revela neste seu escrito, os bombeiros não esquecem o gesto de generosidade do seu pai, Manuel Pinto que, quando esteve emigrado na Venezuela, ofereceu o actual Estandarte da Associação, nem o de sua irmã Maria Celeste Pinto, uma “madrinha” numa cerimónia festiva.
O nosso bem-haja pelo “LOUVOR” que atribui á Associação e aos seus bombeiros da Régua. Eles sentem-se gratos e reconhecidos pela sua generosa atitude.
- José Alfredo Almeida em Maio de 2011 - Escritos do Douro.
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terça-feira, 24 de maio de 2011
O DESERTOR
Saíra de Pargal, com os Pais, ainda o orvalho vestia os montes. Almoçaram em Coimbra, num restaurante para os lados de Santa Clara, com as ruas repletas de capas a caminho do Municipal. Teve vontade de dizer-lhes que ficava ali, que não ia para Quartel nenhum, porque o seu tempo era de fogo e não de cinza.
Engoliu o bife que o estômago pedia numa necessidade animal, mas, lá fora, estava a alegria que lhe saciava todas as fomes. Quando recomeçaram a viagem, qual penitência sem pecado, os ecos estudantis soaram-lhe como um desaforo na imensidão do seu descontentamento.
Aqueles não se localizavam ali, mas na Baixa Portuense, nos Cafés Piolho, Diu ou Estrela, na Cedofeita das meninas das sapatarias ou na Santa Catarina dos discos e do Majestic. Eram, porém, iguais, porque o desafio da liberdade amordaçada não tinha cores nem diferenças.
Durante a viagem, o Pai, apagado funcionário público na Repartição Concelhia, preleccionava sobre o brio e a honra de servir a Pátria. A Mãe, Professora Primária na aldeia da sua nascença, cansada de berrar às impertinências da canalhada, geria o silêncio como se poupasse a voz para a obrigação profissional. De vez em quando, num hífen de abrandamento, lá aconchegava: «Há-de correr tudo bem, meu Filho. Vais ver...», num tom de resignação. Ele ia calado, encostado ao vidro, com o braço apoiado no bordo do assento traseiro, a mão no queixo, olhando lá para fora, a chuva a ameaçar, pensando para si. O que lhe apetecia não o deveria dizer; fora criado numa natural tradição familiar que é, muitas vezes, um filicídio ético mas sempre imaculado, pois nenhum dolo ou aversão cabem no amor do sangue. Filho único, educado em Colégios Jesuíticos e frequência interrompida na Faculdade de Economia do Porto, aprendera que a filiação, mais do que uma circunstância, é uma procedência e uma mercê. Para os Pais, sem bens ao luar ou cofre de segredo, Silvestre fora o seu sonho e a sua razão que, com a soma de ordenados parcos, lhe exemplificavam a generosidade sem preço. Mais que reverência, devia-lhes gratidão que é um afecto dobrado. Abdicara, por eles, de uma deserção aventureira sem data de regresso e o Povo, grosseiro, a atirar-lhes com o ferrete: «Olha os Pais do cagão!»
O jantar, na Ponderosa, foi despachado e silencioso. Compraram um pão de ló húmido, imagem de marca da casa, para lhe adoçar as primeiras horas. Aproximava-se o fim da viagem, Torres Vedras estava perto, e ele até pedia que a estrada não tivesse fim.
À entrada de Mafra, no cruzamento para a Ericeira, recebeu-os uma chuva tão impiedosa, forte e perversa, que nunca mais esqueceu aquela noite de domingo: 11 de Janeiro de 1966. A força da água, com um barulho ensurdecedor, fazia temer pela capota do velho Opel. O nevoeiro, que aquela levantava no Largo da Vila, mal deixava ver os contornos da ostentação de El-Rei D. João V. Só as luzes de dois cafés-restaurantes, do lado contrário, esbatidas pelas montras vaporadas, davam sinal de vida.
Contornaram o terreiro, virando à esquerda na direcção da Porta de Armas, e encostaram na confiança de que a bátega amainasse. Numa porta lateral frinchava uma luz morrediça de velório. Soube que era por ali que teria de entrar quando um táxi se lhes encostou para largar um rapaz de mala na mão. Devia-se apresentar até à meianoite; não tinha vontade nenhuma de se apressar, mas, quando a chuva passou a morrinha, despediu-se dos Pais, pegou na mala, “se tem de ser que seja!“ , correu para a porta, deu-lhe um pontapé, ficou um instante a dizer adeus, e fechou-a com o calcanhar. Deparou-se-lhe, num cheiro de gruta bafienta, uma encenação farsista: do tecto, alto e arqueado, pendiam redes mosquiteiras; no chão, de lajes polidas por muitas botas, grupos de mauzers ensarilhadas com capacetes que vira nos filmes da segunda guerra mundial; pelas paredes escorria uma humidade sórdida, exsudando salitre e desolação. O Sargento que o recebeu tinha uma cara de cera e uma barriga de momo.
Entregou-lhe a guia e o bilhete de identidade, assinou uns papéis e ouviu: «A partir de agora passa a ser o soldado cadete 779 barra 66! Escutou bem o que lhe disse ou esses cabelos tapam-lhe as orelhas?! Ó pá! – virando-se para um soldado - leva aqui o nosso cadete à caserna 8!» Silvestre, sem pronunciar uma letra, olhou-o bem, leu-lhe o nome escrito no dólmen, pegou na mala e seguiu o soldado como um perdigueiro, percorrendo corredores e subindo escadas de catacumba, de luzes tão mortiças que pareciam morrões, enquanto repetia o nome do Sargento até o fixar: Franklim. Quando entrou no dormitório, de beliches alinhados, a varanda estava escancarada e o frio da noite misturava-se com os restos de lixívia. Enfiou o malão debaixo da cama, depois de tirar o pijama, perguntou se alguém se opunha a que fechasse as portadas, pendurou a roupa numa maçaneta do beliche, disse um «Boa noite, malta!», a aparentar desinibição, e deitou-se. Os lençóis tinham a tesura do gelo e o colchão o ruído e o cheiro da palha. O parceiro de cima não parava de se mexer e receou que aquela geringonça de ferro lhe desabasse em cima. Fechou os olhos e as lágrimas salgaram-lhe as olheiras. Desde aquela noite que Silvestre soube que nada, mesmo nada, seria como dantes.
No final de Junho, aprovado no Curso de Oficiais Milicianos, deram-lhe uma bicha de Aspirante e uma guia de marcha para ir, no Regimento de Infantaria 13, em Vila Real, ensinar recrutas com o que aprendera. Antes de partir, foi à Secretaria despedir-se do Sargento Franklim. «Felicidades!», disse-lhe. «Falta o cumprimento militar!», retorquiu Silvestre. Quando o Sargento, de sorriso trocista, lhe bateu a continência, correspondeu cheio de formalismo, deu meia volta e nunca mais lhe veria a cara nos seus anos de forçado.
Entre a Instrução e o toque de ordem o tempo passava célere que, bem vistas as coisas, comandar jovens obedientes e retardados entusiasmava e não crescia tempo para pensamentos reversivos. Depois, entre a Gomes, a Toca da Raposa e o Liceu Camilo Castelo Branco, era o deslizar dos flirts e das banalidades conversadas. Quando a discussão se atrevia por atalhos de mais leituras e contendas de alguma inteireza, o cansaço matava a vontade e desprezava a curiosidade. Silvestre, a pouco e pouco, dando-se conta mas sem fuga possível, engordurou a polidez, deixando-se arrastar para a vulgaridade reinante. Aos fins de semana, tirando aqueles em que a escala de serviço lhe impunha a clausura, metia-se na Cabanelas ou aproveitava a boleia do NSU do Quim, que, de gasolina dividida, não se importava de andar mais dez quilómetros para o deixar à porta de casa. Era a sua vingança. Dormia até lhe apetecer, comia o que a Mãe já sabia que ele gostava, lia o que ficara a meio, pensava e era feliz no silêncio da aldeia, deserta aos domingos. Às segundas feiras acordava de madrugada para, às oito, se apresentar, diante do Comandante da Companhia, com o pelotão alinhado.
Quando já pensava que se tinham esquecido dele, deram-lhe uns galões de Alferes e outra guia de marcha para se apresentar na Amadora, apeadeiro da viagem para Angola.
Esteve lá três meses a formar Companhia, com muita Ordem Unida para cimentar o espírito de corpo, umas sessões de tiro na Fonte da Telha, duas semanas de nomadização na Carregueira, uns crosses à volta da Reboleira e muita vadiagem no Cais do Sodré e pelo dédalo do Bairro Alto. Numa madrugada de Março, a parada encheu-se de Berlietes, atiraram lá para dentro com os trastes que restavam - os maiores já tinha ido, na noite anterior, para os porões do Pátria – e, cheios de café com leite a cheirar a mentol e pães com planta, foram em bando para o embarque.
Em Luanda mandaram-nos para o Grafanil e, ao fim de duas semanas, estava a caminho de Carmona.
Uma poeira vermelha envolvia a coluna que avançava sob um barulheira infernal de motores, os rostos dos homens mascarados por películas de espanto e de medo. Costas com costas, as coronhas das armas apoiadas nos beirais dos bancos corridos, colados às caixas das viaturas, todos sentiam que agora era a sério; os treinos e as teorias estavam enterradas no outro lado do mar. Sem divisas nem galões, despidos de carimbos graduados, o mando e a obediência eram feitos de nomes, conhecimentos antigos e, acima de tudo, de responsabilidades assumidas. Silvestre ia na cabina descoberta de um Unimog, perdido no meio da coluna, farolando o capim e a floresta de mistérios ocultos.
A restolhada das aves e os guinchos dos chimpazés disfarçavam a gelidez vertebral que lhe acrescentava um enjoo de agoniado; estava borrado de medo naquele corredor ocre e verde; olhou para trás e só o Cubano lhe piscou o olho num rosto de menino apreensivo.
Num sopapo, lá à frente – pareceu-lhe ser na cabeça da coluna -, ouve-se um estrondo de terra esventrada, as pernas dos que iam adiante saltaram para as bermas da picada, ele, pulando do assento, fez o mesmo e atulhou-se no meio de corpos em que o terror e o suor se confundiam. As rajadas para o desconhecido cessaram como quem refreia uma precipitação; uma serenidade absurda paralisou o lugar e um acre de pólvora elevou-se do chão. Silvestre não contou as horas que demoraram a reajustar o rebenta-minas, enquanto os enfermeiros cuidavam das pernas dos dois sorteados, nem da penetração na espessura da mata, mais cautelosa que ofensiva. O que Silvestre aprendeu, nessa tarde, foi que só há futuro quando se tem consciência da morte.
Em Março de 1969, novamente em Luanda, iniciou, no Vera Cruz, a viagem de regresso. Surpreendentemente, já nem sabia se ir ou ficar. A saudade do sangue misturava-se com um apelo insólito de aventura, uma paradoxal tentação de abismo, só dubiamente explicada pela rotina da violência e que dominou com as expectativas de uma vida para viver. Para trás ficava um passado que se lhe afigurou desnecessário, de mortos e feridos contabilizados para a estatística da guerra. Safara-se da vergonha desertora e das curvas de um mau fim. Sentia-se aliviado, mas, uma urgência de dúvida entristecia-lhe o olhar. Talvez fosse uma premonição ou um constrangimento de encarar o tal futuro que confiscara na sua intimidade.
No Porto, ainda voltou à Faculdade, mas ele já se deixara vencer pela servidão repetida, o desvanecimento dos olhos vidrados e o sangue coalhado dos corpos mutilados. Diante daquela verdura de generosa rebeldia, sentia-se fora de cena, envelhecido precocemente, invejoso, até, por recusarem o que ele aceitara. Por vezes, tinha vontade de esbofetear aquelas caras de magma que lhe davam a aparência de uma traição; outras, apetecia-lhe pegar num megafone, subir para os estrados e incendiar de malignidade tanta desorganização que criava ídolos de anfiteatros mas dispersava propósitos. Faltava-lhe a frequência do meio que se alimenta do que vem de trás, sem anciloses de experiências diferentes; sentia-se evitado pelos que lhe conheciam a condição como se ele pudesse ser um delator infiltrado em tamanha comunhão libertária.
Quando, numa manhã de Maio, abraçou, diante da porta da Faculdade, o Capitão que comandava a Polícia de Choque, seu amigo guerrilheiro de Angola, percebeu que o seu relógio se atrasara definitivamente. O coro de assobios e impropérios que ouviu, deram-lhe o golpe final. Silvestre entendeu que, mesmo na grandeza solidária, há inocentes agrilhoados.
Foi colaborador desportivo de um Jornal que o mandava, aos domingos de manhã, fazer reportagens de Atletismo e, à tarde, nos fins dos jogos, ouvir aquelas declarações patéticas dos futebolistas e treinadores num ambiente de vapor de água e óleos de aquecer músculos; revisor de provas num Editora especializada em livros vermelhos e publicitário sem jeito para vender detergentes. Concorreu, então, ao totobola bancário, inscrevendo-se em todos os Bancos da Praça. Bateu, em vão, a algumas portas e gabinetes, de muitos galões em cima dos ombros, a que acedia por interposições de menor graduação. Quando o Pai se convenceu de que a desistência académica não era uma birra, falou com um seu antigo Chefe, agora colocado em Repartição Distrital, irmão de Administrador Financeiro. Ao fim de oito dias, feitos os exames psicotécnicos, entrava, de fato e gravata, no Banco. Silvestre ficou a saber que, num empenho, vale mais a sobriedade certeira do que o alarde disperso.
Deram-lhe uma secretária, um telefone, uma máquina de escrever e puseram-no a fazer débitos de letras. As teclas caíam no papel com tanta força que cortavam os químicos, parecia que tinha chumbo nos dedos. Na Agência, sem grande espaço, localizada numa zona de forte implantação industrial, havia dias em que uma longa fila se estendia, na rua, diante da porta. Quando ajudava ao balcão, o seu sorriso não se esforçava, antes se expandia numa satisfação recém-profissional. Conhecia pessoas e feitios, abastanças e dificuldades, modéstias e soberbas. Era espantoso observar o modo diferente como se lhe dirigiam os endinheirados e os desprovidos. Os primeiros, julgando-se donos do Banco, queriam logo tudo numa truculência de trato que raiava a humilhação; os segundos, como se pedintes dele, exageravam numa candura que o desajeitava. Quantas vezes, sem o distinguir, se achava entronizado de um poder que a gerência de dinheiro alheio intruja. Sentia-se pertença de uma casta respeitável que amarujava a especulação e a carência, simbiose que permite a coroação do mandato, a conjectura de que, além de útil, se é importante.
Um dia, a Luísa tomou-lhe o coração. Vinha de uma Agência de província em que muitas assinaturas eram feitas com a tinta dos carimbos nos dedos e «a menina não se importa de me preencher a livrança que eu mal sei assinar o nome?». Cegou-se com aqueles olhos de tranquilidade, duas evidências cerúleas que lhe lembraram os entardeceres sobre as águas calmas da baía de Luanda, quando, aproveitando todos os motivos, se safava à depressão de lá de cima. Calhou que ela se sentasse na sua frente e tivesse que lhe dar a conhecer as rotinas da função. Os seus olhares, sem cuidados de esconder franquezas, colaram-se na recíproca contemplação: o coup de foudre decidia-lhes as vidas. Encerradas as portas ao público, por entre pressas do fecho da Caixa e o adianto do expediente acumulado, deleitavam-se num jogo de sedução com ela a não conseguir disfarçar um rubor que para, Silvestre, era uma senha de docilidade e uma contra-senha de abrasamento. Começaram por almoçar juntos, ir e vir no mesmo autocarro, escolher os filmes mais condizentes com a paixão em crescendo, enriquecer a Companhia Telefónica com telefonemas de tempo esquecido e as gasolineiras com passeios de fim de semana em que o único rumo era um recato para matar a sede de um ardor sufocante.
Casaram-se, a um sábado de Agosto, numa Igreja Românica mais afamada pelos reptos paroquiais que pela memória das pedras. Cumpriram os lusitanos costumes e as práticas religiosas. Convidaram familiares e amigos de um lado e do outro; transmitiram felicidade – ela de véu e grinalda, ele de gravata de seda e fato preto quase smoking - a quem veio e a quem via; esgotaram-se rolos de fotógrafos; consumiu-se a cascata de marisco nos primeiros cinco minutos da boda; esticaram-se as horas nas apresentações e nas danças de salão. Quando, para lá das janelas, a noite se anunciou, escapuliram-se, legalizados que estavam perante o mundo, e só mudaram de roupas num hotel coimbrão. Viveram no calor da terra e do mar algarvios a realização do sonho, amaram-se até ao tutano e trocaram juras de amor eterno.
Regressaram às lides do Banco como dois guerreiros reconciliados no armistício de uma refrega carnal.
Durante algum tempo compartilharam o mesmo espaço, mas, tiveram que aceitar a transferência de um deles - a Luísa escolheu – para outro poiso, que a simultaneidade conjugal e funcional não era – disse-lhes quem mandava - boa conselheira nas apreciações hierárquicas. Silvestre retirou outro ensinamento: nada vence a frieza da lógica empresarial.
Quando o filho lhes nasceu já tinha nome, escolhido nos conciliábulos da espera: Júlio. Acorreram todas as ascendências e parentelas mais chegadas para palpitarem parecenças e aconselharem procedimentos num entusiasmo que só os nados conseguem juntar. Júlio cresceu, durante os primeiros anos, na alternância de uns avós que competiam na melopeia dos enlevos e lhe disputavam a afeição. Os Pais via-os de manhã sempre cheios de pressa e à noite sempre fartos de cansaço. O quarto, a abarrotar de brinquedos, era um hiato no seu trajecto dividido pelas casas avoengas. Para onde quer que fosse, encontrava sempre um novo mimo como uma aliciação que ele não racionalizava, mas, chantagiava em perrices sempre contentadas.
Chegada a idade escolar foi para um Colégio que o levava e trazia numa carrinha. Por lá andou até os primeiros pêlos lhe despontarem na cara. Exigiu roupas de marca e serviram-nas; pediu moto e teve-a; desejou férias de Páscoa nas discotecas algarvias e foi; pediu vezes sem conta dinheiro e deram-lho, desrespeitou horas de chegada nos sábados da Ribeira, da Foz ou da Via Norte e ninguém se atreveu a lembrá-lo; havia manhãs de domingo em que a cama estava intacta e quando os Pais almoçavam ele ia dormir.
Silvestre, a pouco e pouco, sentiu-se atraiçoado como se uma navalha lhe dilacerasse a boa fé. Virava-se para a mulher a berrar que o tinham estragado, mas, esta, como se um fanatismo lhe impedisse o discernimento, recriminava-o pelo exagero e até fazia por esquecer a falta de umas peças em ouro que nunca mais voltavam à sua cómoda. Silvestre fingia normalidade. Os hábitos de fim de semana, porém, transformaram-se nos dias todos. O Júlio chegava a casa macerado, inquieto, enfermiço, de olhar turvo e longínquo, escudando a recusa de comer com a abundância de um lanche tardio, uma dor de cabeça destemperada, um namoro desfeito, uma necessidade de estar só. Quando o alarme tocou, deram-se conta de que haviam acordado tarde. Da caixa do correio retirou uma carta colegial em que lhe eram comunicadas as repetidas faltas do filho. No dia seguinte, telefonou para a Agência a dizer que estava doente, estava mesmo, e seguiu os passos do Júlio. Desabafou com o Director Escolar as suas perplexidades, aliviou-se um pouco quando lhe confirmou a presença do filho nas aulas, mas, entendeu as palavras entremeadas daquele.
Sentou-se no Café da esquina a observar os passantes e atento ao relógio. O Júlio transpôs os portões no fim da manhã, confundido no turbilhão das correrias e dos risos. Apartado, num grupo de mais três, tinha o ar de quem não pertencia ali. Subitamente, Silvestre viu-se no meio de muitas sirenes e campainhas de que desconhecia o som, gelado e a transpirar como quando o paludismo o prostrou, sem forças, numa cama africana, em delíquio nunca esquecido; julgou-se a correr para o filho, arrancar-lhe aquele cigarro, mas ele continuava colado à cadeira, sem reacção, estupidificado, uma confusão de gritos a rebentar-lhe na cabeça e no peito. Aquele cigarro do filho não era como os que ele fumava, o papel parecia uma tira ressequida, mal embrulhada, e o fumo, que lhe saía da boca e das narinas, meio azulado. Reparou que o grupo se desviou para um esconso do muro, que dava para um descampado de silvas, faziam gestos de trocas, que não conseguiu ver, e metiam as mãos nos bolsos.
Mal a Luísa chegou, ao fim da tarde, comunicou-lhe, depois das explicações do que vira, que iria afrontar o filho. A algazarra foi só dele. Ela, calada e chorosa, o filho, fechado e ausente, ouviram um Silvestre desesperado, que tanto esganiçava o seu ódio à sorte como implorava o amor do Júlio, até se deixar cair no sofá, enrodilhado em pranto. «Pai, quero-me tratar...», balbuciou ele, passados uns instantes, numa naturalidade tão seca que parecia uma decisão antiga, muitas vezes adiada e, finalmente, assumida. Uma interrupção de síncope esmagou a sala; eles incrédulos e mudos, o Júlio de olhos perdidos na alcatifa. O tempo parou dentro daquelas quatro paredes; ouviram-se os estalos da madeira como se os móveis se esticassem; a televisão, de som cortado, mostrava uma bulha de galos. Silvestre, recuperando do sufoco, ganhara uma esperança, mas, perdera a ilusão de que, afinal, tudo fosse mentira. Bem lá no fundo, misturada com a desconfiança, ele ansiava por uma réstia que lhe mostrasse o seu engano; aquele «Pai, quero-me tratar...» era a confirmação do seu temor.
Recorreram a Médicos amigos e desconhecidos afamados, gastaram o que tinham e empenharam-se para o internar nos Centros mais díspares e caros. Correram para lá durante meses em calvário já encarado numa irremediabilidade. Era como se fossem visitá-lo a uma Cadeia. A Luísa, com o passar dos dias, perdia o seu olhar marinho que umas olheiras, de covas fundas, ajudavam a enegrecer; arranjava-se já não só por hábito, mas, acima de tudo, para aparentar normalidade. Não gostava que lhe tocassem no assunto e, nos mais chegados, vertia todo o fel do seu infortúnio. Lembrava muito os seus tempos de infância feitos de bonecas de pano que a Mãe lhe fazia nas tardes mortas, dos passeios pelos caminhos da serra e das gargalhadas do Pai. Parecia-lhe que a vida passara depressa, abreviando-lhe a felicidade numa morte anunciada. Sobre Silvestre desabara o peso da cisma, a cólera que lhe consumia as entranhas, o ódio – um ódio terrível – que lhe sustentava uma gana de desforço. Foi a um acampamento cigano comprar uma pistola e guardou-a por detrás de uma prateleira de livros. Esperaria a hora, o instante que só o Júlio podia ditar: se se erguesse ainda podia perdoar, se a decadência não tivesse solução iria a qualquer covil, dos muitos que já ouvira falar, onde se traficava a mistela, e atiraria sem ver, de olhos fechados, só pedindo que nem um tiro falhasse para não ir para a prisão com remorsos de deixar algum vivo. Faltaram-lhe as palavras, tinha dias em que só lhe apetecia ficar na cama, o pior era que não dormia, de nada lhe serviam os comprimidos que o Psiquiatra lhe receitara, a travesseira encharcava-se de choro como uma baba demencial.
Entre Silvestre e Luísa, sozinhos, numa casa que mais se assemelhava a uma capela mortuária, instalou-se um surdo desencanto que uma inútil troca de acusações fez crescer. Esmiuçavam facilitismos e encobrimentos antigos num passar de culpas mútuas; travavam discussões de uma inaudita violência verbal, sem um arrependimento, como se fossem escapes para os fumos das suas amarguras; às vezes, tentavam salvar a relação que nascera com tanto ardor e felicidade, mas esse esforço era, em si mesmo, já um sinal de termo.
Suportavam-se, cada um à espera que o outro desistisse porta fora, a paixão e o amor eterno estilhaçados nos muros dos seus mutismos. Não se desejavam e as noites eram uma frivolidade penosa. Silvestre nunca pensara que a desgraça de um filho afastasse quem o gerara, fosse possível o desfazer de tantas ilusões, e nenhum futuro – nem mesmo o mais natural e lógico – estivesse certo nos projectos de vida.
Trabalhavam porque o Júlio existia e existiam pela esperança da sua cura.
O telefone da sua secretária tocava tantas vezes ao dia que o seu atendimento se tornara maquinal. Quando reconheceu, do outro lado da linha, a voz do Médico que orientava o Centro onde o filho desintoxicava, estremeceu, pensando que a libertação chegara. Mas não, aumentara o cativeiro: o Júlio fugira, já o haviam procurado, mas, sem êxito. Levantou-se como um furacão, o João gritou-lhe «Olha a carteira!», voltou atrás, e desapareceu diante da compaixão dos colegas.
Iria ao sítio onde o filho estoirara as mesadas e os acrescentos familiares. Antes, porém, pegaria na arma para solucionar, de vez, a sua alienação. Num dos cruzamentos da longa avenida onde morava, na bicha que aguardava o fim de um semáforo vermelho, viu o Júlio, desfigurado, dobrado, sonâmbulo, mal vestido, um farrapo, a estender a mão às esmolas dos carros. Enlouquecido, vergastado pelo lume da vergonha, esmigalhado nas derradeiras nervuras da sua resistência, arrancou louco, deixando atrás de si um coro de buzinadelas, não viu as cores nem as passadeiras, meteu o carro na garagem, não correspondeu à saudação do vizinho do quarto esquerdo e mandou o elevador para o sétimo frente. Sentou-se no velho sofá que a Mãe lhe oferecera quando fizera trinta anos, onde costumava ler e escrever para o boletim da comissão fabriqueira da sua paróquia aldeã. Não ouvia o eco dos carros, os apitos agressivos, a chiadeira das travagens, o grito lancinante de uma ambulância a querer romper a confusão, a algazarra das crianças no infantário das traseiras do prédio. Não tinha uma lágrima, nem uma lembrança, nem uma vontade, não tinha nada, nem se tinha a si, nem sequer a certeza de que o destino pode ser adiado. Silvestre esqueceu a parabellum, pegou num papel e escreveu: «Não merecia isto. Vou desertar.» Colocou-o na credência do hall de entrada, abriu a janela e deixou-se cair como um pássaro chumbado.
- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória". O livro "O Lagar da Memória" foi apresentado dia 12 de Março último na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia . Informações para compra aqui. Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". A imagem ilustratrativa acima foi recolhida da internet livre e editada. Clique na imagem com o "rato/mouse" para ampliar.
- *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua - Portugal.
quinta-feira, 19 de maio de 2011
Bombeiros Voluntários do Peso da Régua - Os Estatutos da Associação
(Estatutos de 1880 - Clique na imagem para ampliar)
Os Estatutos da Associação
- Dos primeiros aos actuaisNão se perdeu a acta da reunião em que os vinte e sete cidadãos, constituídos numa Comissão Instaladora da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua, discutiram e aprovaram os primeiros estatutos e regulamento do corpo de bombeiros.
Essa acta que fomos encontrar nos arquivos do Governo Civil de Vila Real, permite-nos conhecer alguns dos pormenores que levaram à fundação da Associação.
Por esse documento, sabemos que essa reunião teve lugar na casa da extinta Associação Comercial da Régua que se situava na Rua da Boavista – a actual Rua Serpa Pinto - no dia 25 de Junho de 1880. E, que estiveram presentes os sócios fundadores e o Excelentíssimo Doutor Joaquim Claudino de Morais, advogado e, ao tempo, Presidente de Câmara Municipal da Régua. Encontrava-se naquela assembleia como presidente da comissão que tinha elaborado o projecto de estatutos da associação e regulamento do corpo de bombeiros.
Iniciada a sessão pelo presidente da Comissão Instaladora, Manuel Maria de Magalhães que tinha a secretariar José Joaquim Pereira Soares dos Santos, foi ouvido o Dr. Claudino – como era conhecido - que se escusou de fazer comentários sobre documentos e, como não podia participar, “pediu para ser dispensado em razão dos seus muitos afazeres, protestando auxiliar a instituição tão civilizadora, humanitária e útil em tudo o que estivesse ao seu alcance, tanto como particular como na qualidade de presidente de câmara deste concelho”.
Lido o projecto dos estatutos da Associação, composto por 44 artigos, pelo sócio fundador António Roberto Pinto, foi colocado à discussão e não havendo quem pedisse a palavra, foi posto à votação, primeiro na generalidade e, depois, na especialidade, tendo sido aprovado, por unanimidade, apesar de esse facto não ter sido registado na referida acta. O mesmo se passou quanto à discussão e a aprovação do regulamento do Corpo de Bombeiros, também aprovado por unanimidade.
Cumpridas as formalidades, os estatutos e o regulamento foram enviados ao Governo Civil de Vila Real que, nos termos das leis administrativas em vigor, deu a sua aprovação pelo Alvará de 12 de Agosto de 1880, assinado pelo Dr. José Ayres Lopes, Governador Civil Substituto de Vila Real.
Vale a pena destacar alguns dos aspectos dos primeiros estatutos da Associação.
A) Dos Fins
No artº1 estava consagrado socorrer os habitantes desta vila e das povoações limítrofes por ocasião dos incêndios ou suas consequências.
Artº4 acrescenta que pode ser recreativa, havendo casa de leitura, bilhares e mais jogos lícitos, quando as circunstâncias do cofre o permitam.
B) Da Categoria de Sócios
Estavam previstas quatro categorias: sócios honorários, contribuintes, activos ou de trabalho e auxiliares.
Os sócios honorários eram os que pela sua posição social ou pelos serviços que tenham prestado à associação for conferida essa honra. Estes não são obrigados ao pagamento de da jóia ou quota mensal, porém tem a obrigação moral de correrem para o desenvolvimento da Associação empenhando para isso todo o seu valimento. Sob proposta da Direcção ou de qualquer sócio deviam ser eleitos em Assembleia –Geral.
Ficaram, desde logo, nomeados sócios honorários desta associação: O Governador Civil de Vila Real, O Deputado do Circulo, o Administrador do Concelho, o Presidente da Câmara Municipal, o Abade da freguesia e todos os Comandantes ou Chefes das associações desta natureza.
Os contribuintes eram os que não podiam trabalhar na extinção dos incêndios e que prestam auxílio pecuniário, o qual consistia na quantia de 500 reis pela admissão e na quota mensal de 200 reis. Estes eram propostos por outros sócios e eram aprovados pela Direcção.
Os sócios activos ou de trabalho eram os que faziam parte da Companhia de Incêndios, mas que tinham atribuições marcadas no respectivo regulamento. Estes sócios eram nomeados pelo Comandante, segundo o seu número e graduação.
Os sócios auxiliares eram os que, não tendo residência na Régua, podiam prestar auxílio à Companhia de incêndios aos serviços que lhe sejam indicados pelo Comandante. Estes eram nomeados pelo Comandante.
(Estatutos de 1935 - Clique na imagem para ampliar)
C) Da admissão de sócio
Podiam fazer parte da associação todas as pessoas de ambos os sexos, tanto nacionais como estrangeiros, sendo que os menores precisavam de autorização dos seus pais ou tutores e as mulheres casadas de autorização de seus maridos.
D) Dos deveres e direitos
Os sócios activos e os contribuintes eram elegíveis para todos os cargos sociais.
Os sócios activos não pagavam mensalidade nem jóia, mas tinham o dever de se fardarem à sua custa.
E) Da competência dos órgãos sociais
A Assembleia-geral residia o poder supremo da Associação que era a reunião dos sócios honorários, activos e contribuintes. A esta competia eleger bianualmente, por escrutino secreto, entre os candidatos ao exercício dos órgãos socais, discutir e votar os relatórios e pareceres Da Direcção, Conselho Fiscal ou Comissões Especiais e conhecer e tratar de qualquer assunto de interesse da Associação.
A Direcção, composta de um presidente, um vice-presidente, primeiro e segundo secretários, tesoureiro, do primeiro comandante e do fiscal da Companhia, devendo, pelo menos três membros pertencer à classe dos sócios contribuintes, competia-lhe fazer cumprir os estatutos, deliberações da Assembleia e todos os regulamentos da Companhia, estando obrigada a prestar anualmente à Assembleia Geral as contas da sua gerência.
Ao Conselho Fiscal, composto por cinco membros, cabia examinar as contas prestadas pela Direcção e dar o seu parecer sobre o relatório de gerência.
F) Das penas disciplinares
As penas aplicadas aos sócios activos e auxiliares seriam aplicadas nos termos do regulamento, não podendo a pena de multa exceder a quantia de 1000 reis por cada transgressão.
G) Da dissolução da Associação
A Associação não podia ser dissolvida a não ser por dois terços da Assembleia-geral. E sendo essa a deliberação, quaisquer fundos da Associação reverteriam em beneficio da família de qualquer sócio activo que houvesse sido vitima de algum incêndio ou se tivesse inutilizado ou se estivessem em precárias circunstancias e, quando isso não se verificasse, entrariam para o fundo do Hospital D. Luís I.
Os estatutos permaneceram inalterados até 1935. Mas, em 19 de Outubro de 1892, uma comissão presidida pelos director José Joaquim Pereira Soares dos Santos, Camilo Guedes, Padre Manuel de Lacerda Oliveira Borges e o Comandante Manuel Maria de Magalhães apresentava em reunião à direcção um projecto de reforma que foi aprovado por unanimidade, “depois de alguma discussão e algumas emendas”. Competia aos associados em Assembleia–geral fazer a aprovação final, o que não chegou a acontecer na sessão realizada em 14 de Novembro de 1892, tendo sido a discussão para nova reunião, que nunca veio a acontecer. Surgiram várias demissões do órgão directivo, o que poderão explicar o desinteresse para concluir a reforma estatutária. Porém, um novo regulamento para os Sócios Activos – hoje equivalente ao Corpo de Bombeiro – seria aprovado na Assembleia-geral realizada em 6 de Março de 1893.
A Direcção, presidida por Roberto Augusto Marinho, decidiu convocar no dia 7 de Maio, uma Assembleia-geral Extraordinária para discutir e aprovar uma alteração parcial.
Na justificação foram apresentados os argumentos seguintes: “que há muito se reconhece a vantagem dos seus Estatutos serem reformados ou alterados, de acordo com as necessidades modernas” e que “ é preciso interessar os elementos oficiais do concelho no sentido que à benemérita Associação lhe não faltem os meios de bem poder desempenhar a sua missão de humanitarismo” e que a reforma “ se impõe neste momento com uma urgência bem merecida” foram alterados os artº 3, 4, paragrafo único do artº 20 e os artº 35, 36 e 48.
Esta alteração parcial foi aprovada pelo Alvará de 18 de Março de 1935, assinado pelo Governador Civil de Vila Real, Horácio Assis Gonçalves. Nesse documento, fez constar que “as referidas alterações estão de harmonia com as disposições legais e se ajustam ao que está preceituado sobre os direitos de reunião e de associação”.
Em nossa opinião, os princípios dessa alteração estatutária revelam-se incongruentes com o escopo associativo, se não forem as circunstâncias políticas e económicas dessa época. Os preceitos alterados, muito embora, possam estar em conformidade com a legislação em vigor, o que duvidamos, não se entendem as razões dos associados terem atribuído à Câmara Municipal da Régua, o poder de tomar a protecção da organização da Associação e ainda a responsabilidade para decidir quanto à sua administração e disciplina. Aquela demissão associativa só pode ser compreendida pelas existências de grandes dificuldades financeiras da Associação.
Em 1966, o regime jurídico estabelecido pelo Código Civil para as pessoas colectivas, impõe que sejam modificados os estatutos em vigor. Na Assembleia -Geral Extraordinária realizada em 7 de Junho de 1969 foram aprovados novos estatutos. Contudo, por razões que desconhecemos, a Direcção não procedeu à alteração pela forma legal exigida, a escritura pública. Por esse motivo, tal alteração dos estatutos não entrou em vigor e, como tal, mantiveram-se os estatutos de 1880.
Em 1989, a Direcção presidida por José Manuel Moura, toma a decisão de elaborar os novos estatutos. Na Assembleia-Geral Extraordinária, realizada em 17 de Novembro de 1989, os associados aprovavam uma reforma global dos estatutos. Passavam a ser compostos por sessenta e um artigos com uma nova redacção que se adaptavam as exigências e as transformações sociais que, entretanto, ocorriam na sociedade. Começaram a produzir efeitos jurídicos desde que passaram a constar da competente escritura pública, outorgada em 26 de Abril de 1990, no Cartório Notarial do Peso da Régua.
Aqueles estatutos, de 1990, regeram a vida associativa até 2009, muito embora começasse a ser sentida pela dinâmica e mais participação em actos eleitorais dos associados quando havia mais de uma lista a concorrer aos órgãos sociais. Com a entrada em vigor da Lei nº 32/2007, de 13 de Agosto, que aprovou um novo regime jurídico das associações humanitárias, esta reforma foi imposta para que fosse feita num máximo prazo de dois anos, de forma os estatutos se adequarem às novas exigências previstas nessa lei.
Cumprindo as formalidades de uma legislação inovadora no sector associativo, a Direcção presidida pelo Dr. José Alfredo Almeida, nomeia uma comissão onde para além de se fazer representar, incluiu a directora Eng. Sónia Coutinho, Francisco Cardoso, Manuel Carlos Osório, Dr. Bruno Miguel Lachado e o Dr. José Alberto Marques, presidente da Mesa da Assembleia-Geral. Na sua tarefa, adoptaram um modelo-tipo de estatutos previamente elaborado pela Liga dos Bombeiros Portugueses. Depois de os adequar às necessidades especificas da Associação, ao condicionalismo da sua génese e matriz histórica, elaboraram uma proposta de alteração total dos estatutos que foi discutida e aprovada, por unanimidade, na Assembleia -Geral Extraordinária, realizada em 12 de Março de 2009.
Aquela alteração dos estatutos da Associação, compostos de 94 artigos, tornou-se válida e eficaz com a realização da escritura pública, no dia 22 de Junho de 2009, celebrada no Cartório Notarial do Peso da Régua, (cf. previsto no artº5 da citada lei).
São estes Estatutos de 2009, a lei fundamental da Associação que a consagra como uma entidade com vida e uma personalidade própria. São eles que estabelecem ainda todas as regras fundamentais que asseguram aos associados realizar com objectividade e rigor os fins e ideias definidos pelos fundadores e continuar a manter activa e operacional a sua missão principal, a de ser detentora de um Corpo de Bombeiros Voluntários e, muito recentemente, de cinco bombeiros profissionais, integrados numa Equipa de Intervenção Principal. Procurando responder aos desafios do futuro, e as mudanças da sociedade, os associados mantêm vivos, e sempre renovados, os ideais dos fundadores que a constituíram em 1880, para ser uma útil e benemérita Associação.
- Colaboração de J. A. Almeida* - Régua, para "Escritos do Douro" em Maio de 2011.
- *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua.
Os Estatutos da Associação - Dos primeiros aos actuais - Parte 1
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 2 de Junho de 2011
(Dê duplo click com o "rato/mouse" para ampliar e ler)
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