terça-feira, 5 de abril de 2011

Para parar três badaladas

Neste ocaso da vida em que, como diria La Palice, quanto a nós não se antolha futuro, mas, tão somente, passado e presente, é-nos grato trazer a estas desataviadas linhas, evocações de factos, decorrentes de uma peregrinação terráquea que, como a nossa, ultrapassou, no tempo, aquela meta, susceptível de nos conferir a qualificação de sobrevivente. E somo-lo, no passo em que vimos, desaparecer, para além dos que particularmente, nos foram caros, homens cuja mensagem permanece, para exemplo das gerações presentes e vindouras, a quem incumbe promover a terra, que lhes deu o ser. Assim aconteceu com esses homens, para que aconteça com os de hoje, para que aconteça com os quais surgirão, na promissora madrugada.

Abordar o tema concernente a uma instituição, que celebra, com legítimo orgulho, o seu centenário, representa convite a mergulhar num mundo de pensamentos, mormente quando ela se vincula à História da Vila e Concelho do Peso da Régua.

Corria o último quartel do século transacto quando sob impulso do Infante D. Afonso - fundador de Voluntários da Ajuda - entraram de proliferar, aqui e além, adentro do âmbito nacional, corporações dotadas de orgânica afim, celebrizadas pela pena de Gervásio Lobato (1) e pelo lápis de Bordalo Pinheiro (2).

Para seu desvanecimento a Régua, mercê de um punhado de boas vontades firmes e válidas, não foi a última a ser dotada da que se passou a denominar Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.
Nascida no menos que modesto prédio (3), ainda existente no Largo dos Aviadores e provida de escasso material, que a edilidade reguense lhe cedeu, contou desde o início, no seu corpo activo, com homens (4) que, sob a responsabilidade do nome, passaram a gozar de um prestígio, que lhe advinha de actos beneméritos, em ordem a conferir à sua associação a fama que, ao actual corpo activo, cabe manter se não dilatar. Esta fama foi encontrá-la em Lamego, na recuada época da nossa adolescência, em que, naquela cidade, estanciámos durante sete anos. A rua de Almacave, no pendor de base do morro encimado pelo castelo medieval, em torno do qual se aninha o primitivo burgo, coetâneo de Fernando Magno, exibia prédios esventrados, portas e janelas como órbitas vazias, em paredes calcinadas, por apocalíptico incêndio.

Diga-se então, aí que, a não intervirem os bombeiros da Régua, a Olaria iria, de enfiada. Quanto pode uma minguada corporação em efectivos, bem comandados (5) em que a disciplina, livremente aceite, gera autênticos cidadãos! Escola de civismo foi, pois, e confiamos que o será, sempre, sem o qual as pátrias não são mais que expressões destituídas de sentido. E os reguenses ao admirarem, íamos dizendo, tais como chouans a Marie Jeanne (6), que cobriram de flores, uma bomba braçal (7) novinha em folha, que o quartel de cavalaria expunha, sentiram que estavam com os seus soldados da paz, como estes se identificavam, com eles.

Dizer do curriculum vitae da Instituição não é consentâneo com a índole de uma achega, que sofre, naturalmente, de limitações.

Hoje os nossos bombeiros dispõem de instalações, que honram a terra, onde se implantam. Catedral do bem, num ópido onde os valores culturais não abundam, emergentes, que são, de passado obscuro que, somente, nos últimos dois séculos se projecta em porvir auspicioso, luta e vai transpondo, com a persistência dos obstinados, os escolhos, que se interpõem, a quem demanda uma meta inatingível tal é a da verdade absoluta - peculiar às grandes reali­zações humanas. Hoje vem-lhe pela mão benemérita de um varão esclarecido (8), seu bairro, na qual a paz da consciência dará mão à ética social, que dignifica; amanhã, na sequência de um corpo vivo em expansão; será a mitose, propícia à nossa conterrânea Godim - quem sabe?

Existiram outrora, nos lares reguenses, no recesso dos oratórios dos antepassados, encaixilhados a preceito, sinais de incêndio, mediante os quais os soldados da paz e a população – que colaborava – ficavam cientes da zona em que se verificava o sinistro, sinais tangidos, pelos campanários locais. Estes sinais sobrepunham-se a uma notificação convencional – para parar três badaladas. Se a convenção era prática, não se compadecia, todavia com a realidade, pelo que o devoto abrenúncio nos vem à boca, nos termos em que Cervantes remata o preâmbulo da sua obra imortal, mediante o consabido.

- Peso da Régua, 12/8/80 - José António de Sousa Pereira. 
(1) Gervásio Lobato, in Lisboa em Camisa. 
(2) Rafael Bordalo Pinheiro, in Almanaques. 
(3) Seria oportuna a aparição, no imóvel, de uma placa comemorativa da efeméride. 
(4) Para além do primeiro comandante, Manuel Maria de Magalhães, José Joaquim Pereira Soares Santos, Joaquim de Sousa Pinto, José Afonso de Oliveira Soares, Camilo Guedes Castelo Branco, Joaquim Maria Leite e Álvaro Rodrigues da Silva, nomes que são uma legenda da Associação. 
(5) Ao tempo por José Afonso de Oliveira Soares. 
(6) Primeira peça de artilhada capturada aos azuis - tropas da Convenção Nacional -  pelos vendeanos, chefiados pelo Cavaleiro de La Charette, activos contra aquela, após o suplício de Luiz XVI (Victor Hugo, in  Noventa e Três). 
(7) Quando a C. P. organiza museus com material primitivo, ao longo da sua rede, lamentamos que este e outro espécime, da mesma natureza, tenham sido vendidos. 
(8) Dr. Aires Querubim Menezes Soares, ao presente governador civil do distrito.

NOTAS:
1 - Esta erudita crónica do ilustre médico reguense, “um dos homens que mais amou a sua Régua e o Alto Douro”, para quem “a sua vida foi um constante caminhar para a verdade”, “lutou pela liberdade”, e “como homem liberto seguia o seu próprio caminho, sem vergonha, sem medo e sem oportunismo” e “ morreu como um justo” (nas palavras do Sr. Dr. Aires Querubim de Menezes Soares), em 1981, foi publicada na Revista do Centenário da AHBV do Peso da Régua, em 1980.
2 - A autarquia reguense homenageou a sua memória ao atribuir a uma rua da cidade o seu nome como era conhecido pelo povo: “Rua Dr. José de Sousa”, aquela começa precisamente onde os bombeiros da Régua têm instalado o seu Edifício Multiusos.  
3 - É tema desta crónica, para além da evocação a história dos bombeiros da Régua, dos seus primórdios até 1980, uma intervenção dos bombeiros da Régua, sob o comando de Afonso Soares, no incêndio que ocorreu na noite de 27 de Junho de 1911, na Rua de Almacave, em Lamego, que se destacaram pela sua intervenção corajosa, rápida e eficiente no combate às  “chamas devastadoras” .
Colaboração de J. A. Almeida - Régua, para "Escritos do Douro" em Abril de 2011. Clique nas imagens acima para ampliar.

Para Parar Três Badaladas
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 31 de Março de 2011
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Para Parar Três Badaladas

Recortes: Régua, antes... Régua, depois...

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COVELINHAS - Estação dos Caminhos de Ferro

Imprensa do Brasil - Sabor de vinho do Porto no curso do Douro

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Do Jornal "O Estado de São Paulo" - Brasil:

A mais antiga região vinícola do mundo, criada pelo Marquês de Pombal em 1756, revela-se perfeita para apreciar os prazeres mais simples: beber, comer e dormir bem

05 de abril de 2011 | 8h 00 - Nathalia Molina, PESO DA RÉGUA


Sobe, desce, o rio. Desenhos como tranças a repartir as montanhas, sobre o rio. Caminhos sinuosos, num esconde-esconde com o rio. Vilas, à beira do rio, mirantes, do alto do rio. O Douro corre a nos acompanhar, como se guiasse ele mesmo o carro entre os vinhedos.
Percorrer a mais antiga região vinícola demarcada do mundo é se deixar levar pela água. E pelo vinho. Beber bem, comer bem, dormir bem. Seguir o curso natural, seduzido pelo rubi da taça e pelo verde ao redor. "Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza", como descreveu o escritor Miguel Torga (1907-1995), em seu Diário XII, em trecho reproduzido num painel de azulejos no Miradouro de São Leonardo da Galafura, perto de Peso da Régua, no Vale do Douro.
O solo de xisto, as assimetrias das encostas e o trabalho do homem desenharam o Alto Douro Vinhateiro, declarado Patrimônio Mundial pela Unesco em 2001. A antiga região vinícola demarcada foi instituída por Marquês de Pombal, em 1756. Dali sai o vinho do Porto, licoroso conhecido mundialmente - não vá embora sem o seu exemplar.
De Mesão Frio (distante 85 quilômetros do Porto) a Freixo de Espada-à-Cinta (a 180 quilômetros da mesma cidade), o Vale do Douro se divide em três sub-regiões. Área verde de grande produtividade, o Baixo Corgo inclui Mesão Frio e Peso da Régua.
Cenários. Seguindo o rio rumo ao leste, a paisagem ganha tons de pedra no Cima Corgo, que se estende de Pinhão a São João da Pesqueira. De lá a Freixo de Espada-à-Cinta, fica o Douro Superior, onde há menos produtores e os vinhedos convivem com oliveiras e amendoeiras.
As principais quintas estão na área entre as cidades de Mesão Frio e Pinhão, passando por Peso da Régua, onde está localizada a sede da Associação de Aderentes da Rota do Vinho do Porto. Criada em 1998 para desenvolver o roteiro lançado dois anos antes, reúne atualmente 78 participantes ligados à cultura do vinho, entre produtores, restaurantes, hotéis e empresas de turismo.
Por ali, você encontra lugares convidativos como a Casa Torres de Oliveira, em Mesão Frio, que oferecem aos visitantes tanto a prova de vinhos quanto a acomodação. Na associação, é possível marcar visitas a caves e vinhedos e agendar a participação nos eventos mais tradicionais: a colheita (vindima) e a pisa da uva (lagarada). E ainda pode reservar serviços de hospedagem, alimentação e transporte.
Passeio no tempo. Peso da Régua, como você vai perceber, é uma espécie de capital da região. Destacou-se na produção e no comércio do vinho do Porto desde que o Marquês de Pombal fundou ali a Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro.
Em pipas, a bebida era levada pelo curso do Douro até chegar à Vila Nova de Gaia, que concentra as caves dos produtores, na margem oposta do rio em relação à cidade do Porto. O meio de transporte eram os barcos rabelos, inspiração para o docinho de mesmo nome, encontrado em Peso da Régua. Feito com farinha de arroz, amido de milho, ovos, açúcar, canela, amêndoa e vinho do Porto, tem a forma das antigas embarcações. E o melhor de tudo: é uma delícia.
Hoje turistas podem navegar pelo Douro em cruzeiros a partir da cidade do Porto ou em trechos menores entre Peso da Régua e Pinhão, por exemplo. Empresas como a Douro Azul e a Barcadouro trabalham com esses passeios.
Quem, ao invés de usar um carro alugado, preferir explorar o país de transporte público, pode sair da cidade do Porto de trem. No caminho até Douro, há paradas em Régua, Pinhão, Tua e Pocinho. Na estação de Pinhão, repare nos painéis de azulejos, decorados com cenas do processo produtivo do vinho e paisagens dos arredores.
Durante a vindima, que ocorre nos fins de semana de setembro, a Comboios de Portugal oferece programa especial de um dia, incluindo visita a uma quinta e participação na pisa da uva. De 23 de julho a 1.º de outubro, um trajeto da empresa pelo Douro chama atenção: uma locomotiva a vapor, do início do século 20, leva os passageiros em vagões de madeira de Régua ao Tua. Sobre trilhos, montanhas, vinhedos, o contorno do rio.

Saiba mais
Passagem: O trecho São Paulo-Lisboa-São Paulo custa desde 640,66 na Iberia; R$ 1.590,7 (cerca de 688,50) na KLM; 725,43 na British; 886,50 na TAM em voo direto; 898 na TAP, também em voo direto e 920,45 na Lufthansa .
Pedágio: Há cobrança nas estradas administradas por concessionárias. Ao entrar na rodovia, retire o bilhete eletrônico na cabine automática. O pagamento é feito na saída, de acordo com o trecho
Trajeto: Antes de defini-lo, vale consultar o site. Clique em ‘Mapas’ e depois em ‘Calcular itinerário’.
Aluguel de carro: Uma semana em Lisboa custa a partir de 163,46 na Avis e 220,88 na Hertz.

Veja também:

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Adolfo Pauman

Com este título Uma excursão a Vigo, António Guedes escreveu no extinto Vida por Vida, em finais de 1970, uma deliciosa crónica dos seus tempos de bombeiro.

Na crónica evoca uma história fantástica de uma viagem dos bombeiros da velha guarda da Régua que fizeram com os bombeiros voluntários do Porto à cidade galega de Vigo. Apenas não referiu a data exacta em que aconteceu aquela viagem, mas terá sido entre 1910-20.

Este antigo chefe dos bombeiros da Régua recorda os bombeiros da velha guarda, com os quais teve a ventura de se acamaradar, como Afonso Soares, Camilo Guedes, Joaquim de Sousa Pinto, Lourenço Medeiros, Luís Maria da Cunha Iharco, José Vicente Ferreira da Cunha, João Pinto Cardoso - conhecido por João “Latas”- , Justino Lopes Nogueira, Aires Saldanha, José Maria de Almeida e José da Silva Bonifácio (pai),  o  médico, o farmacêutico privativos e o capelão, o Padre Manuel Lacerda de Oliveira Borges.

Quem também seguiu naquela excursão a Vigo foi Adolfo Pauman, actor dramático de nacionalidade espanhola que, sob o comando de Afonso Soares, se alistara também como bombeiro voluntário, depois de fixar a sua residência na Régua.

E do ilustre actor já aqui se tinham deixado umas breves notas, mas não sabíamos nada mais da vida. Não sabíamos e desconhecíamos o que na crónica, o António Guedes tinha revelado algo mais que iluminava a sua vaga sombra. Conta-nos que o actor Adolfo Pauman abandonou as artes cénicas para se dedicar ao comércio na Régua. Para ganhar o seu sustento, possuiu uma moderna relojoaria e instalou-a numa casa que ainda existe na esquina da Rua João de Lemos com a Rua Marquês de Pombal.

O actor Adolfo Pauman não ficou conhecido. A Régua comercial não recorda a sua existência, nem sabe que teve um antigo actor famoso à frente de um ramo de negócio, do seu passado mais distante, como um dos seus pioneiros.

Se os reguenses não querem saber quem foram os seus antepassados no comércio local, hoje também não sabem que Adolfo Pauman foi actor e bombeiro voluntário. Aqueles que, na sua época, gostavam de ir ao teatro para o ver e lhe aplaudir as suas interpretações, não deixaram memórias. Com o decorrer tempo, o grande actor foi esquecido como se tratasse de um comum mortal. A associação dos bombeiros, por sua vez, não guardou nada que o permita evocar como um dedicado voluntário. O seu nome, como outros exemplares cidadãos, quase ia ficando esquecido na pedra de algum túmulo do cemitério.

Se o seu nome chegou à posteridade, foi porque alguém destacou o seu nome como essencial para se estudarem os primórdios do teatro na Régua. No seu livro da história vila e concelho do Peso da Régua, Afonso Soares, que o admirava, elogiou-o e divulgou-lhe uma fotografia do seu rosto e pose de meio corpo.
Quem observar voltar aquela fotografia pode reparar que o António Guedes não se enganou ao descrevê-lo como um ancião que com “os seus cabelos cumpridos e receitáveis barbas brancas, mais parecia um velho patriarca das Índias…”. Basta juntar a imagem às suas palavras, completam-se como se fossem uma única visão deste homem que, por adopção, se tornou como nós, um reguense.

Nessa excursão a Vigo, entre as divertidas peripécias, Adolfo Pauman não deixou que aquele grupo de velhos garbosos bombeiros da Régua fosse alvo de uma tentativa de burla de um galego nada escrupuloso. Pensando que ele, que o falar espanhol seria um trunfo intercedeu pelos reguenses, mas os anos que já levava a viver na Régua tinham-no feito perder o sotaque da sua língua. Para o seu compatriota galego, Adolfo Pauman era mais um português…! Apanhou, pelo seu gesto, um valente susto…

Se querem saber o resto do episódio passado com o Adolfo Pauman e aqueles “imortais” bombeiros devem continuar ler a crónica bem escrita e repleta de humor do Chefe António Guedes.


Apenas, para concluir, gostava de repetir a sua nostálgica conclusão: “Passou-se isto há muitos anos! Já todos desapareceram do número dos vivos”. Desta vida efémera sim, mas não desaparecem da nossa memória colectiva o Adolfo Pauman – o actor famoso, o bombeiro solidário e o comerciante de relojoaria – nem os bombeiros da velha guarda … Enquanto alguém olhar de frente o seu passado.


- Colaboração de J. A. Almeida* - Régua, para "Escritos do Douro" em Abril de 2011.
- Leia também "O actor que foi bombeiro". Clique nas imagens acima para ampliar.
  • *José Alfredo Almeida é advogado, ex-vereador (1998-2005), dirigente dos Bombeiros Voluntários de Peso da Régua entre outras atividades, escrevendo também crónicas que registram neste blogue e na imprensa regional duriense a história da atrás citada corporação humanitária, fatos do passado da bela cidade de Peso da Régua.

ADOLFO PAUMAN
Jornal "O Arrais", Quinta feira, 17 de Março de 2011
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ADOLFO PAUMAN