Neste ocaso da vida em que, como diria La Palice, quanto a nós não se antolha futuro, mas, tão somente, passado e presente, é-nos grato trazer a estas desataviadas linhas, evocações de factos, decorrentes de uma peregrinação terráquea que, como a nossa, já ultrapassou, no tempo, aquela meta, susceptível de nos conferir a qualificação de sobrevivente. E somo-lo, no passo em que vimos, desaparecer, para além dos que particularmente, nos foram caros, homens cuja mensagem permanece, para exemplo das gerações presentes e vindouras, a quem incumbe promover a terra, que lhes deu o ser. Assim aconteceu com esses homens, para que aconteça com os de hoje, para que aconteça com os quais surgirão, na promissora madrugada.
Abordar o tema concernente a uma instituição, que celebra, com legítimo orgulho, o seu centenário, representa convite a mergulhar num mundo de pensamentos, mormente quando ela se vincula à História da Vila e Concelho do Peso da Régua.
Corria o último quartel do século transacto quando sob impulso do Infante D. Afonso - fundador de Voluntários da Ajuda - entraram de proliferar, aqui e além, adentro do âmbito nacional, corporações dotadas de orgânica afim, celebrizadas pela pena de Gervásio Lobato (1) e pelo lápis de Bordalo Pinheiro (2).
Para seu desvanecimento a Régua, mercê de um punhado de boas vontades firmes e válidas, não foi a última a ser dotada da que se passou a denominar Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Peso da Régua.
Nascida no menos que modesto prédio (3), ainda existente no Largo dos Aviadores e provida de escasso material, que a edilidade reguense lhe cedeu, contou desde o início, no seu corpo activo, com homens (4) que, sob a responsabilidade do nome, passaram a gozar de um prestígio, que lhe advinha de actos beneméritos, em ordem a conferir à sua associação a fama que, ao actual corpo activo, cabe manter se não dilatar. Esta fama foi encontrá-la em Lamego, na recuada época da nossa adolescência, em que, naquela cidade, estanciámos durante sete anos. A rua de Almacave, no pendor de base do morro encimado pelo castelo medieval, em torno do qual se aninha o primitivo burgo, coetâneo de Fernando Magno, exibia prédios esventrados, portas e janelas como órbitas vazias, em paredes calcinadas, por apocalíptico incêndio.
Diga-se então, aí que, a não intervirem os bombeiros da Régua, a Olaria iria, de enfiada. Quanto pode uma minguada corporação em efectivos, bem comandados (5) em que a disciplina, livremente aceite, gera autênticos cidadãos! Escola de civismo foi, pois, e confiamos que o será, sempre, sem o qual as pátrias não são mais que expressões destituídas de sentido. E os reguenses ao admirarem, íamos dizendo, tais como chouans a Marie Jeanne (6), que cobriram de flores, uma bomba braçal (7) novinha em folha, que o quartel de cavalaria expunha, sentiram que estavam com os seus soldados da paz, como estes se identificavam, com eles.
Dizer do curriculum vitae da Instituição não é consentâneo com a índole de uma achega, que sofre, naturalmente, de limitações.
Hoje os nossos bombeiros dispõem de instalações, que honram a terra, onde se implantam. Catedral do bem, num ópido onde os valores culturais não abundam, emergentes, que são, de passado obscuro que, somente, nos últimos dois séculos se projecta em porvir auspicioso, luta e vai transpondo, com a persistência dos obstinados, os escolhos, que se interpõem, a quem demanda uma meta inatingível tal é a da verdade absoluta - peculiar às grandes realizações humanas. Hoje vem-lhe pela mão benemérita de um varão esclarecido (8), seu bairro, na qual a paz da consciência dará mão à ética social, que dignifica; amanhã, na sequência de um corpo vivo em expansão; será a mitose, propícia à nossa conterrânea Godim - quem sabe?
Existiram outrora, nos lares reguenses, no recesso dos oratórios dos antepassados, encaixilhados a preceito, sinais de incêndio, mediante os quais os soldados da paz e a população – que colaborava – ficavam cientes da zona em que se verificava o sinistro, sinais tangidos, pelos campanários locais. Estes sinais sobrepunham-se a uma notificação convencional – para parar três badaladas. Se a convenção era prática, não se compadecia, todavia com a realidade, pelo que o devoto abrenúncio nos vem à boca, nos termos em que Cervantes remata o preâmbulo da sua obra imortal, mediante o consabido.
- Peso da Régua, 12/8/80 - José António de Sousa Pereira.
(1) Gervásio Lobato, in Lisboa em Camisa.
(2) Rafael Bordalo Pinheiro, in Almanaques.
(3) Seria oportuna a aparição, no imóvel, de uma placa comemorativa da efeméride.
(4) Para além do primeiro comandante, Manuel Maria de Magalhães, José Joaquim Pereira Soares Santos, Joaquim de Sousa Pinto, José Afonso de Oliveira Soares, Camilo Guedes Castelo Branco, Joaquim Maria Leite e Álvaro Rodrigues da Silva, nomes que são uma legenda da Associação.
(5) Ao tempo por José Afonso de Oliveira Soares.
(6) Primeira peça de artilhada capturada aos azuis - tropas da Convenção Nacional - pelos vendeanos, chefiados pelo Cavaleiro de La Charette, activos contra aquela, após o suplício de Luiz XVI (Victor Hugo, in Noventa e Três).
(7) Quando a C. P. organiza museus com material primitivo, ao longo da sua rede, lamentamos que este e outro espécime, da mesma natureza, tenham sido vendidos.
(8) Dr. Aires Querubim Menezes Soares, ao presente governador civil do distrito.
NOTAS:
1 - Esta erudita crónica do ilustre médico reguense, “um dos homens que mais amou a sua Régua e o Alto Douro”, para quem “a sua vida foi um constante caminhar para a verdade”, “lutou pela liberdade”, e “como homem liberto seguia o seu próprio caminho, sem vergonha, sem medo e sem oportunismo” e “ morreu como um justo” (nas palavras do Sr. Dr. Aires Querubim de Menezes Soares), em 1981, foi publicada na Revista do Centenário da AHBV do Peso da Régua, em 1980.
2 - A autarquia reguense homenageou a sua memória ao atribuir a uma rua da cidade o seu nome como era conhecido pelo povo: “Rua Dr. José de Sousa”, aquela começa precisamente onde os bombeiros da Régua têm instalado o seu Edifício Multiusos.
3 - É tema desta crónica, para além da evocação a história dos bombeiros da Régua, dos seus primórdios até 1980, uma intervenção dos bombeiros da Régua, sob o comando de Afonso Soares, no incêndio que ocorreu na noite de 27 de Junho de 1911, na Rua de Almacave, em Lamego, que se destacaram pela sua intervenção corajosa, rápida e eficiente no combate às “chamas devastadoras” .