sábado, 12 de fevereiro de 2011

OS FRONTEIRÓMETROS - 3




Os risos encolhidos explodiram como champanhe, mas logo o Boaventura cortou:

- Ó pá vocês não se riam nem saiam da sala, porra! Se os tipos vêem a malta a rir-se fode-se tudo!

Pouco depois, tal uma carga de cavalaria, ouviu-se um tropel de botas a descer.

- Lá vêm as cavalgaduras! – disse o Bandeira.
- Formem em fila! - mandou o Boaventura. – Para começo – olhando o relógio – não está mal! Atendendo a isso, não há flexões para ninguém. Vamos, então, dar início à vossa prova de aptidão. O nosso Aspirante Ornelas é o encarregado de orientar o primeiro teste.

Este, armado da cara mais séria que pôde arranjar, plantou-se diante deles:

- Atenção! Firme! Sé...ópe! Dá licença, meu Tenente? – fazendo tremer o braço numa continência espectacular.
- Pode mandar! No fim da aula apresentem-se neste mesmo local – ordenou o Boaventura.
- Esquerda... vooolver! Passo de corrida, em frente... marche!

Passados uns minutos, o grupo abandonou a sala, atravessou a Parada e foi assistir à sessão, disfarçado no morro sobranceiro ao campo de obstáculos, atrás de um renque arbustivo, num esforço incrível para recolher os risos com os lábios e as mãos. O Ornelas parecia que estava a dar instrução ao seu pelotão: mandou-os correr em círculo, intervalando com flexões em frente, abdominais e saltos de canguru, rastejar sob o arame farpado, saltar a vala, a paliçada e o galho, subir às cordas, ficando de fora o pórtico. Tudo num silêncio só entrecortado pelo farfalhar dos corpos e a voz autoritária daquele. Uns soldados que passavam, estranhos pelo que ouviam àquela hora, aproximavam-se curiosos, mas, sobressaltados, viram o Bandeira a afastá-los. Suados, cheios de terra e a bufar, troaram no átrio. Alguns tinham o ar de quem não cria no que lhes estava a acontecer.

- Então, nossos fronteiros, gostaram da instrução que o nosso Aspirante vos deu? Sim ou não?
- Sim, meu Tenente...
- Mais alto! Sim ou não?
- Siiim, meu Tenente!
- Porra!, parece que estão a morrer... Um caçador especial grita sempre alto, com genica e alegria! GOSTARAM OU NÃO?!
- SIIIIMMM, MEU TENENTE!!!
- Óptimo! Muito bem! Gosto de vos ver felizes... Nosso Aspirante Alves dê um passo em frente. Vou-lhe dar – entregando-a - uma ordem de patrulha que todos devem cumprir sem uma falha. Tem anexado um croqui para não haver dúvidas acerca do vosso objectivo. Nem precisam de bússola... Quero avisá-los de que até à Casa Amarela, onde se acoita o inimigo, temos informações de que há bandos terroristas dispersos que vos podem surpreender. Agora vão à Companhia da Formação, onde, na Caserna 8, o Cabo quarteleiro já está avisado para vos fornecer uma FBP a cada um. Bem vão precisar delas... Podem ir e, nunca antes nem nunca depois da meia noite, devem-se apresentar com a missão cumprida. Na Porta de Armas já estão avisados da vossa missão, o nosso Aspirante Alves só tem que comunicar ao nosso Sargento da Guarda. Sigam...

Depois daqueles transporem os portões, uns deixaram-se ficar, entretidos com a televisão, a leitura, o bilhar ou a sueca, alguns foram ao Cinema e o João, o Altino e o Ãngelo, passada uma boa hora, meteram-se no carro para irem ver o movimento dos praxados, passando-os quando eles se encontravam a conversar, sentados nuns pinocos longe, ainda, da Casa Amarela...

Quando a patrulha regressou, à hora indicada, mais minuto menos minuto, já todos estavam a postos, ansiosos pelo bródio que se seguiria.

- Então nosso Aspirante, como decorreu a operação? – interrogou o Boaventura.
- Meu Tenente, mal saímos do Quartel, logo a seguir à curva do muro, como ouvimos uns ruídos esquisitos, resolvemos, para nos precavermos, montar a segurança - explicou o Alves, todo gestos.
- E depois? O que viram?
- Verificámos, afinal, que eram pessoas pacíficas, moradores na zona...
- E como é que souberam? Não me diga que são bruxos?!...
- Falavam de futebol e...
- Mas que perigo, nosso Aspirante! Mas que perigo! Falar de futebol e logo à noite! Não pensou que isso podia ser uma armadilha? Então não sabe que o futebol é o ópio do povo? Vocês podiam ter sido anestesiados como criancinhas! Mas diga, diga...
- Depois continuamos a marcha - o Alves molhava os lábios para contrariar a secura da boca -, sempre guiados pelo croqui, até que, num morro, voltamos a montar a segurança para observação do terreno que ficava em baixo. Estava tudo calmo, era já numa zona desabitada...
- E bateram esse terreno, claro...
- Não vimos ninguém...
- Ai queriam que o inimigo estivesse à vossa vista, a dizer estamos aqui, fodam-nos! Mas que merda de caçadores são vocês?! Tinham que ir lá, procurá-los como furões à caça de coelhos! Mas para isso é preciso ter os colhões no sítio!...
- Mas ó meu Tenente...
- Mas ó meu Tenente o caralho!... Continue, continue...
- Deixámos - nos estar ainda um bocado a ver se havia algum movimento suspeito...
- As folhas a mexer...
- Algum vulto, algum...
- Que viesse ao vosso encontro?!... Meu Deus... Avance, nosso Aspirante, avance...
- Não vimos nada e ...
- Tiveram sorte não levarem umas fogachadas no cu...
- Tinha sempre três homens a caminhar de costas, de frente para o caminho...
- Esses, então, levavam-nas nos tomates...
- Meu Tenente, olhe que a gente...
- Olhe uma merda!... - Continue lá com a descrição...
- Quando chegámos ao cruzamento...
- Montaram a segurança...

Começava a ser difícil conter os risos. Eles ameaçavam estralejar como trovoada em noite abafada de Verão.

- O sítio era perigoso e, antes de o atravessarmos – prosseguiu o Alves, mais confiante e a entrar bem no papel -, tínhamos que ver bem como o fazer. Como mandam as regras, montámos, de facto, a segurança. Dividi a patrulha em dois grupos, um para a esquerda, outro para o direita, e atravessámos, depois, em pontos mais afastados do cruzamento. Prosseguimos a marcha e, como o pessoal estava já um pouco cansado, resolvemos descansar um pouco e montámos a segurança...
- Parou nosso Aspirante! Chega! Porra!, ainda não chegaram a meio do objectivo e quantas vezes já montaram a segurança? Andam cem metros e montam a segurança, andam mais duzentos e montam a segurança.... Foda-se! Tem que me apresentar essa PUTA da SEGURANÇA que eu, também, a quero montar!... Acabaram de chegar e já se fartaram de montar!... Vocês devem ter um tesão do caralho!...Se as catraias sabem disso não vos largam a Porta de Armas!... O que vocês precisavam era – virando-se para o aparelho de televisão – fazer a patrulha no lugar onde aqueles galgos estão a correr atrás da lebre... Sabe como se chama aquilo?...
- É uma corrida de galgos...
- Que novidade! Queria que fosse de coelhos?!... Como se chama o recinto onde eles estão a correr?... - Meu Tenente, aquilo – olhando fixamente para o televisor – é um pavilhão...
- E como se chama?...
- ...
- Diga-me uma coisa, se fossem cavalos a correr como é que lhe chamava?...
- Hipódromo...
- Então, e galgos?!...
- Não sei meu Tenente...
- Galgómetro, nosso Aspirante!... Galgómetro!...

As gargalhadas, já impossíveis de reprimir, soltaram-se como uma prateleira de cristal estilhaçada, alguns agarrando-se às barrigas, as lágrimas deslizando nas faces por um sufoco há muito controlado. Trocaram-se abraços, esvaziou-se uma garrafa de Logan, discutiram-se as peripécias da brincadeira e conheceram-se origens por entre risos intermináveis.

Ia adiantada a hora quando o João, erguendo um copo, gritou: «Malta! A partir de agora somos os fronteirómetros de Chaves!»
Final.

- De M. Nogueira Borges* extraído com autorização do autor de sua obra "O Lagar da Memória".
  • Também pode ler M. Nogueira Borges no blogue "ForEver PEMBA". *Manuel Coutinho Nogueira Borges é escritor nascido no Douro - Peso da Régua. A imagem ilustratrativa acima, recolhida da internet livre é composta/editada em PhotoScape, poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.

PASSOU POR AQUI

Por: João de Araújo Correia

Passou por aqui, por esta vila comercial, (1) o escritor Tomás de Figueiredo. Melhor dizendo, passava por aqui e aqui se demorava duas ou três horas, à espera de carro ligeiro ou camião de carreira que o levasse a casa do amigo Fausto, onde se hospedava, às temporadas, para escrever, ir à caça ou não fazer nada. Encontrou encantos na velha Aldeia de Cima - pátria do amigo Fausto. Parece que encontrou ali restos de povo em estado puro e deles se enamorou. Vocábulos antigos e costumes antigos, ainda válidos, encontrou-os ali e ali os saboreou. Deles extraiu bom sumo, boa essência, para a sua escrita. 

O Tomás gostava de me ver. Quando descia à Régua, logo me telefonava para combinarmos o nosso encontro, conversarmos um rato - sentados lado a lado no banco de uma livraria. Creio que nos aproximavam as nossas diferenças de pensar e até o modo de sentir a coisa literária. Ele, com o nariz arrebitado, era uma espécie de lutador glorioso. Eu, com o nariz humilde que Nosso Senhor me deu, era e sou uma espécie de antena desconfiada ou meio desiludida de quanto vai pelo mundo. Certo é que o seu feitio e a minha falta de feitio se atraíam e estimavam. Eu também gostava de o ver e de conversar com ele, sentado a seu lado, no banco da livraria, que ele denominava, com latente orgulho de escritor aguerrido, banco dos régulos.

Eu, se fui reisete, fui um reisete vencido. O Tomás, sempre de lança em punho, fazia do nosso banco um trono partilhado. Mas, como era belo, a meus olhos, aquele bom Tomás... Sempre muito lavado, muito escanhoado, muito alvadio, ia debitando, à minha beira, ecos de coisas minhas desconhecidas. Assim me enriquecia e deleitava. 

Má língua, o Tomás! Por ele percebi como é ruim, lá em baixo, a luta literária. Tinha ressentimentos, remoía queixas de bons escritores e pendurava na lua escritores somenos. Mas, não era ele... Era a vítima, era o produto de meio inquinado a voz que assim esconjurava ou bendizia.

Para temperar o Tomás, propunha-lhe um café... Em menos de amém, punha-o diante de nós, numa banqueta, o primeiro balcão da livraria, a chefe Maria Ângela, que morria por ele, pelo Tomás, tanto como as caixeirinhas suas subordinadas. O ladrão tinha artes de as cativar com fidalguias pouco usadas, numa vila comercial. Morriam por ele, mas, sem sombra de pecado. Cativavam-se do seu bom modo.

Sobre o café, vá de fotografia... Tomás, bem disposto, queria que os dois régulos se retratassem juntos. Armava a maquineta, que trazia na mão, como turista inglês, e pedia à Maria Ângela, ou à Eduarda, que desse ao gatilho.

Não sei como terão ficado, no papel eterno, os dois régulos sentados no banco da livraria. O Tomás levou-os para o outro mundo.

Tinha alma de escritor o demo do Tomás. Deus me livrasse de lhe chamar doutor - como se visse a meu lado, no banco da 1ivraria, o antigo notário de Tarouca, de pena aguçada para lavrar uma escritura.

- Então eu, que tanto suei, para ter nome nas letras, sou doutor? Porque é que você me não chama Tomás de Figueiredo?

E eu, que sou humilde, fazia-lhe a vontade. Tinha até pena de não poder pronunciar com Z o nome próprio do homem, que assinava Tomaz, à moda antiga. Pelava-se por tudo o que fosse passado. Por vontade dele, suponho que ainda haveria capitães-mores e outros anacronismos. Era esse o filão da sua poesia...

Mas, no amor a Camilo, à linguagem castiça e ao povo castiço, ainda viçoso em Aldeia de Cima, éramos parceiros no mesmo jogo ou compadres na mesma freguesia.

Eu preferia o Tomás em verso. Na prosa, para meu gosto, era demasiado rico e emaranhado. Eu, que tenho poucas forças, tinha de as fazer com as minhas fraquezas para lhe romper a espessura. No verso, o Tomás dispersivo entrava em forma. O verso, que desapareceu do mercado, faz falta. Era uma boa poda. Só deixava, na vara, os olhos úteis.

Tive pena, muita pena, do Tomás de Figueiredo... Morreu grávido ou em puerpério... Morreu grávido do último livro ou depois de o ter dado ao mundo. Ao despedir-se de mim, da última vez que passou por aqui, percebi que o escritor andava ocupado, que trazia um filho no ventre. Morreu dele, quanto a mim, porque a gestação artística, de todas as gestações, é a mais esgotante. Pode matar de gestose. Assim aconteceu com o Tomás de Figueiredo, que já não era novo, embora o remoçasse todos os dias, vestindo-o de claro, a sua fé literária.

O Tomás deixou por aqui muitas saudades. Prendia esta gente comercial com o seu trato, que era fino sem ser mesureiro. Saía-lhe da arca sem artifício. Era um claro fio de água na sede de quem trabalha. A Régua é trabalhadora.

Também ele amava a Régua, estes montes, que se tingem de todas as cores quando o Outono os enfeita para uma espécie de morte olímpica. Entrou na livraria, uma vez, com um braçado de folhas coloridas.

- Que é isso, Tomás?

- É um presente, que vou mandar para Lisboa. Veja estas folhas...

Era poeta, sensível à poesia das folhas moribundas, o Tomás de Figueiredo. 

(1) - Régua ou Peso da Régua 
11-7-70

- Nota: Está crónica faz parte do livro “Pó Levantado”, edição da Imprensa do Douro, Régua, 1974. Matéria enviada por J. A. Almeida para "Escritos do Douro 2011".  Referências - Direção Regional de Cultura do Norte e Wikipedia. A imagem ilustrativa acima recolhida da internet livre, é composta/editada em PhotoScape e poderá ser ampliada clicando com o mouse/rato.